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Lucian Michael Freud (1922-2011) era filho do arquiteto Ernst L. Freud e neto do psicanalista Sigmund Freud. Quando Lucian tinha 11 anos, em 1933, os pais emigraram de Berlim para Inglaterra, escapando à ascensão do nazismo. O pai Ernst foi o primeiro dos Freud a partir com a mulher e os três filhos, ciente do perigo que os espreitava por serem judeus, tanto pelo lado alemão da mulher Lucie (Brasch) como pelo lado austríaco (Freud). Em Londres, passaram a viver numa casa modernista em St. John’s Wood, Hampstead, na qual o pai instalou o atelier de arquitetura, no mesmo bairro que o avô Sigmund Freud escolheria quando finalmente se decide a largar Viena na sequência da anexação da Áustria pela Alemanha.
Em 1938, um Sigmund Freud adoentado junta-se ao filho e netos no exílio, na sua última morada, uma casa vitoriana, atual casa-museu Freud, onde o pai da psicanálise morre no ano seguinte. Ainda nesse ano, o seu neto Lucian obtém a cidadania britânica, quatro dias antes de o Reino Unido declarar guerra à Alemanha. Já cidadãos britânicos, os três irmãos Freud alistam-se para lutar durante a Segunda Grande Guerra, servindo Lucian na Marinha Mercante britânica. Tal como o artista revelou ao biógrafo William Feaver com quem conversou quase diariamente ao longo de 40 anos, a ideia de que poderia ter morrido com os irmãos nos fornos crematórios de Hitler nunca o abandonou. Quem sabe reside aí a chave para a sua obra; e a capacidade que a mesma tem de sugerir a vida em face da morte ou o que representa habitar um corpo, uma experiência visceral, psicológica e emocional finita e mortal.
No Reino Unido, o artista faria o percurso típico dos filhos da elite, educado nos colégios internos de Dartington Hall School em Devon, com reputada excelência no campo artístico, e na liberal Bryanston School, em Dorset, da qual foi expulso por comportamento desordeiro. De 1942 a 1943, frequentou o Goldsmiths College, em Londres, passou ainda pela Central School of Arts and Crafts impulsionada pelo conhecido movimento de William Morris e pela Slade School of Fine Arts.
Lucian Freud emergiu na década de 1940, e sobretudo no pós-guerra, um período de turbulência e incerteza quanto ao papel da arte, ao longo do qual os artistas sentiram a pressão de tomar partido, assinar manifestos, assumirem uma responsabilidade social. A posição de Freud, como a de vários outros artistas, foi a de resistir às pressões e ao que entendia ser uma moda ou uma cooptação da arte ao serviço de agendas. O seu único desejo era produzir imagens que pudessem falar para lá do tempo. E foi o que nos deixou: desenhos e pinturas de amigos, amantes, familiares, colegas, celebridades, líderes empresariais, membros da realeza, ícones gays, trabalhadores, e ainda bastantes auto-retratos.
A preferência por retratos íntimos e psicológicos
A exposição que inaugurou na National Gallery, “Lucian Freud: Novas Perspetivas” e ali vai ficar até 22 de Janeiro de 2023, é a primeira grande retrospetiva que na última década lhe é dedicada. Reúne o produto de sete décadas de trabalho, dos primeiros e mais íntimos óleos às telas de grande escala e nus monumentais.
Ao longo de 50 obras, o visitante pode apreciar desenhos, gravuras (etchings) e pinturas de poderosas figuras públicas como a rainha Isabel II, o banqueiro Jacob Rothschild e o Barão Thyssen-Bornemisza, tête-à-tête com estudos particulares de amigos e familiares; o ambiente familiar e doméstico alternando com o do atelier salpicado de tinta – lugar que se torna palco e assunto por direito próprio – e o enfoque na expressão fisionómica destronado pela primazia concedida à carne nos trabalhos finais, quando as suas telas se enchem de corpos gordos, envelhecidos, engelhados, extenuados e queer.
Tons sombrios, interiores inquietantes e paisagens urbanas são uma marca persistente. Mas a técnica muda e nos trabalhos finais o recurso preferido é o impasto, através do qual a tinta é aplicada em camadas grossas. A tinta também pode ser misturada diretamente na tela. Quando seco, o impasto fornece textura, as pinceladas tornam-se visíveis e a pintura ganha uma saliência quase tridimensional.
O convívio com a celebridade
A fama de Lucian ofuscou e muitas vezes prejudicou o seu trabalho. A sua vida privada atraía grande curiosidade e escrutínio: era um membro da família Freud com uma vida amorosa acidentada. Tornou-se uma figura do mito popular, um artista situado entre o submundo e a aristocracia, perambulando por pubs miseráveis ou por restaurantes de luxo.
Intensamente reservado, Freud resguardava-se e fugia à exposição pública. Detestava dar entrevistas, não dava o seu número de telefone a ninguém, não tinha placa de identificação ou número na porta da frente de casa. Sentia-se bem mais confortável a perscrutar o retratado do que a abrir mão de si. Preferia retratar amigos e familiares a personalidades públicas. Servia-se de modelos humanos a quem famosamente solicitava sessões penosas e prolongadas no seu estúdio, as quais chegavam a durar meses, depois de enviuvar a mãe por exemplo passou a posar para ele ao longo de uma década.
O resultado final demonstra uma aguda penetração psicológica do retratado e um exame muitas vezes desconfortável da relação do mesmo com o artista. Freud nunca embeleza ou lisonjeia os assistentes, limitando-se a apresentar o que tem diante de si, de modo intenso, valorizando os detalhes e com uma notável habilidade de manipulação da tinta. De modo despretensioso aplica o mesmo nível de escrutínio ao amigo David Hockney ou à rainha Isabel II.
Esta exposição quase não dá relevo à fama ou infâmia da vida privada do artista, concentrando-se ao invés no seu compromisso intransigente com a pintura e o século XX. Se no início de carreira ele se aproximou do surrealismo, a partir dos anos 50 as suas pinturas rígidas e alienadas enquadram-se melhor no realismo, estilo que seguiria até ao final de carreira.
Estudava regularmente pinturas clássicas, especialmente as da National Gallery aonde se deslocava com regularidade. “Visito a National Gallery quase como visito o médico em busca de ajuda”, declarou. Aprendeu muitos com os mestres, Titian, Rembrandt, Ingres, Constable, Renoir, Degas, com as conquistas e técnicas do passado, às quais adaptou e nas quais enxertou o seu estilo.
Do erotismo dos amantes à complexidade dos retratos familiares
As representações que fez dos amantes sempre fascinaram os críticos pela carga erótica transbordante e pela observação que fazem da relação hierárquica que se estabelece entre o pintor e o modelo. As interpretações da crítica são tudo menos consensuais. Para uns, os seus retratos são implacáveis e cruéis, para outros são íntimos e reveladores de cuidado e ternura.
A exposição da National Gallery inclina-se mais para a segunda visão, sobretudo quando analisa os retratos e pinturas de família. As telas que o artista dedica às filhas e aos amigos proporcionavam-lhe passar tempo com eles. Freud pintou bastantes vezes a mãe com quem teve uma boa relação e regularmente as filhas. O resultado é revelador das dinâmicas familiares, e evocativo da complexidade dos relacionamentos. Nos nus que dedica às filhas, a composição é modesta e nada tem de erótico. Freud falou bastante dos seus “retratos nus”, como lhes chamava, onde a pintura servia para captar a realidade da carne tanto quanto a complexidade das relações afetivas.
Vida amorosa
O artista teve relacionamentos com homens e mulheres e casou-se duas vezes. Na década de 1940, Freud e os artistas Adrian Ryan (1950-1998) e John Minton (1917-1957) formam um triângulo amoroso homossexual. Depois de um caso com Lorna Garman, Lucian casa-se em 1948, com uma sobrinha desta, Kitty Garman, filha do escultor Jacob Epstein. Entre muita turbulência e instabilidade devido às constantes infidelidades de Lucian, o casal gera duas filhas, Annabel Freud e a poetisa Annie Freud. O casamento dura cinco anos, a separação ocorre em 1952.
No final desse ano, Freud foge com a herdeira da indústria cervejeira Guinness, a escritora Lady Caroline Blackwood para Paris. Casa-se com ela um ano mais tarde, e Lady Caroline torna-se a musa que ele eterniza repetidas vezes em: “Girl in Bed” (1952), “Girl Reading” (1952), “Girl in a Green Dress” (1954) patente nesta exposição e “Girl by the Sea” (1956).
O seu estilo de vida boémia e devassa, de que foram parceiros Francis Bacon e John Minton, aliado a uma dependência do jogo, conduzem ao segundo divórcio em 1959.
Não obstante os rumores de que Freud teve uma progenitura exorbitante de quarenta filhos, o número tem sido considerado exagerado. São-lhe porém seguramente atribuídos 14, dois do primeiro casamento e doze de várias parceiras. A escritora Esther Freud e a estilista Bella Freud, figuras conceituadas no RU, são filhas de uma relação extramatrimonial que teve com uma jovem católica irlandesa que havia apenas atingido a maioridade quando dele engravidou. Foram criadas pela mãe em Marrocos para escaparem à sina dos filhos de mães solteiras na Irlanda de então. Aparecem nesta exposição, num óleo intitulado “Bella e Esther” (1987-8) confortavelmente estiradas num velho sofá de couro do pai, habitando os espaços mais importantes da vida de Freud: o atelier e a tela.
Freud foi um pai distante e um homem desapegado nas relações amorosas, mas sincero o bastante para reconhecer e auto-proclamar o seu “egoísmo”. A pretexto de que a monogamia e a parentalidade interferiam com a sua independência e dedicação artísticas rejeitou a monogamia e negligenciou o papel paternal. O desprezo que tinha pelas convenções e pelos sentimentos dos outros facilitaram a vazão que deu a uma líbido que raiava o patológico.
Freud e Londres
Freud passou a maior parte da vida profissional em Londres e era frequentemente visto em bares e restaurantes, muitas vezes na companhia das jovens modelos que pintou, Kate Moss foi uma das mais célebres. A mesa que ocupava com regularidade no restaurante The Wolseley em Mayfair foi coberta no dia da sua morte com uma toalha preta e uma vela acesa em sua homenagem.
Após uma longa vida, a que não faltou o reconhecimento de que era um dos maiores, mais influentes e controversos pintores britânicos da sua época, nem o conforto e compensação materiais (em 2008, o seu retrato de uma mulher grande e nua num sofá, “Benefits Supervisor Sleeping”, foi vendido em leilão por £17 milhões, preço recorde para o trabalho de um artista vivo) o artista morreu na sua casa de Londres, aos 88 anos.
Londres era a sua cidade, da qual raramente saiu na segunda metade de vida. Em seu louvor, disse: “A atitude de Hitler para com os judeus persuadiu o meu pai a levar-nos para Londres, o lugar que prefiro em todos os sentidos e a qualquer outro onde já estive”.