Em conjunto, os dois vídeos que gravou foram vistos mais de 60 mil vezes em apenas uma semana e a disparidade das reações, que vão do apoio incondicional à desconfiança profunda, passando pela compreensão e empatia, espelham o quão difícil é a situação narrada por Luísa L., 15 anos e 9 meses, fã de surf, natação e vídeos de cirurgias no YouTube.
A partir da cama do quarto de adolescente onde vive desde o passado dia 19 de junho, em casa do pai, no centro de Lisboa, primeiro em castelhano e depois em português, Lulu, como se apresenta no Instagram, relata em cerca de 10 minutos a “história da sua vida”.
Com o dramatismo próprio da adolescência, de lágrimas nos olhos e a palavra “injustiça” sempre pronta a saltar-lhe da boca, explica que em 2013, aos 8 anos, se mudou da capital portuguesa para Badajoz, em Espanha, onde passou a viver com a mãe, de nacionalidade espanhola, e dois dos três irmãos maternos — o pai, “professor do Estado”, português, ficou em Lisboa, a trabalhar, e o casamento manteve-se à distância, com alguns fins de semana e feriados, não todos, passados em família.
Garante que tudo correu bem até ao verão de 2017 quando, ao regressar de umas férias em Marrocos, com uns tios, a mãe lhe anunciou que tinha um novo namorado e que iam mudar-se para a terra dele, Saucedilla, junto a Navalmoral de la Mata, “uma aldeia perdida para os lados de Cáceres, lamento mas é o que é”, diz na versão em castelhano.
Conta que a mãe lhe pediu que desse uma hipótese à nova vida e que foi isso que fez, mas que ao fim de um ano acabou por lhe dizer que preferia viver com o pai, com quem não morava desde os 8 anos e de quem não era sequer próxima — “Naquela altura não conhecia bem o meu pai, ele estava sempre a trabalhar, não foi um pai que se possa dizer muito presente”.
Acusa o namorado da mãe de a maltratar psicologicamente e revela que uma decisão judicial espanhola determinou que, não obstante a sua vontade e a do pai, é com a mãe que terá de estar, pelo menos até ao processo de regulação das responsabilidades parentais, a correr naquele país, estar concluído.
No fim, pede ajuda para ficar em Portugal, chora porque a mãe já não é a mesma e conta que o tio lhe escreveu a riscá-la da família — “Se posso ficar em Lisboa, porque não hei-de ficar?”. “Que fique a declarar que eu sou uma pessoa que não fuma, que não bebe e que tira muito boas notas, que quer ser neurocirurgiã! E não vou poder. Sabem porquê? Porque a minha mãe destruiu-me. Eu estava na escola, e a minha mãe tirou-me da escola, mandou uma carta ao Ministério da Educação a proibir a minha matrícula em Portugal. Uau! Destruiu o meu futuro já. O meu futuro está destruído. Já só falta dar cabo de mim. É tão injusto. É tão injusto. E o tribunal não faz nada!”, termina em tom de desespero e a soluçar.
“A professora de Matemática tinha dito numa aula que eu já não estava na escola”
Aluna do 10.º ano, Luísa L., que tem dupla nacionalidade, portuguesa e espanhola, está em Portugal desde 19 de junho, dia em que chegou para passar as férias de verão com o pai, Luís Lopes, 63 anos, professor de História destacado a tempo inteiro no Sindicato Nacional e Democrático de Professores (SINDEP).
Depois de, na segunda infância, pouco ter convivido com ele, reaproximou-se do pai ainda antes da separação, mas só depois dela é que começou a alimentar a ideia de regressar a Lisboa, cidade onde viveu e estudou, no Instituto Espanhol, até ao fim do terceiro ano e onde conserva ainda as melhores amigas.
Este ano, ao longo das férias, Luísa foi-lhe dizendo que não queria regressar à moradia com piscina e jardim, isolada e a cerca de 8 quilómetros da localidade mais próxima, onde vivia com a mãe, Marta R., 47 anos, criadora de cães, e o namorado dela.
Foi por isso que, em agosto, já com o divórcio sem consentimento a correr em Portugal há largos meses, Luís L. deu início, por iniciativa própria e em Navalmoral de la Mata, a um processo de regulação das responsabilidades parentais e pediu a guarda da filha.
Até então, e apesar de o casal já estar separado de facto pelo menos desde 2017, nunca tinham legalizado a situação de Luísa — o que fez com que as queixas que Luís apresentou junto das autoridades espanholas em outubro desse ano, quando chegou a Badajoz para visitar a filha e encontrou a casa onde ela morava com a mãe vazia, não tivessem qualquer seguimento ou consequência. “Como não tínhamos feito a regulação do poder paternal, a polícia considerou que não havia rapto parental. Ela estava com a mãe, estava bem, não podiam fazer nada”, explica Luís L. ao Observador. Pouco mais de dois anos depois, ironicamente, é ele quem está a ser acusado desse mesmo crime pela justiça espanhola.
Quando setembro chegou, Luísa recusou-se terminantemente a voltar para Espanha. Luís L., preocupado com a filha e com os relatos que ela lhe fazia, concordou. E avisou Marta R. de que Luísa ia ficar a morar consigo: até já a tinha matriculado numa escola portuguesa, a Secundária José Gomes Ferreira, em Benfica.
Nessa altura, Luísa também já estava inscrita na Escola Secundária Albalat, em Navalmoral de la Mata — e foi isso mesmo que Marta R. disse ao ex-marido, antes de lhe pedir que levasse a filha de volta a casa. “Ela este ano ia passar as férias escolares todas em Lisboa e eu até entendo, Lisboa tem mar, tem surf, o pai paga-lhe as aulas de surf, comprou-lhe uma prancha — é mais giro do que estar comigo, que este verão estive a trabalhar. Disse-lhe ‘vai, aproveita, se o teu pai te pode proporcionar isso’. Nunca pensei que isto fosse acontecer”, garante a criadora de cães, ao telefone e em português perfeito, ao Observador.
Quase quatro meses depois desta troca de e-mails, Luísa mantém-se em Lisboa mas já foi a Navalmoral de la Mata, no passado dia 11 de novembro, dizer à juíza que, por muito que goste da mãe, quer mudar-se para casa do pai. Apesar de ter sido matriculada em duas escolas em dois países, de ter apenas 15 anos e de não ter concluído a escolaridade obrigatória, desde o início de outubro que não vai a uma única aula e já perdeu todo o primeiro período.
Depois de ter frequentado a Secundária José Gomes Ferreira, como aluna provisória, no final de setembro foi-lhe anulada a matrícula pelo Ministério da Educação, na sequência de uma decisão do Tribunal de Família e Menores de Lisboa. “Fui à escola durante duas semanas, depois fui operada e tive de ficar uma semana e meia em casa. Nessa altura, uma colega escreveu-me a dizer que a professora de Matemática tinha dito numa aula que eu já não estava na escola”, explica Luísa, sentada na zona de escritório adjacente ao seu novo quarto, onde ainda tem colado o horário do curso de Ciências e Tecnologias do 10º 4, a turma a que deixou de pertencer.
“Fiz um pedido ao tribunal para a Luísa poder ser operada aqui em Portugal às amígdalas, uma cirurgia que vários médicos a aconselharam a fazer, mas que a mãe não autorizou, e para poder formalizar a matrícula na escola portuguesa. O tribunal, que diz que não é competente para decidir porque há um processo de regulação das responsabilidades parentais a decorrer em Espanha, autorizou a operação, mas não a matrícula. Isto aconteceu no final de setembro, numa altura em que, em Espanha, o número do processo que meti em agosto ainda nem tinha sido atribuído”, revela Luís L..
Independentemente disso, explica António José Fialho, representante português na Rede Internacional de Juízes da Convenção de Haia, criada para agilizar a resolução de raptos internacionais de menores dentro dos estados signatários, a decisão do tribunal de Lisboa é lícita: “O tribunal português não se considerou competente. Resolveu a questão urgente da intervenção cirúrgica, mas não a outra, que estava a ser resolvida por um tribunal do estado de residência da criança — a regra é essa”.
Contactado pelo Observador, o Ministério da Educação reconheceu o caso e explicou que se limitou a dar “cumprimento a uma decisão proferida” pelo tribunal: “A menor teve matrícula condicional numa escola pública. Assim que os serviços centrais do Ministério da Educação tiveram conhecimento de que a decisão do tribunal não estava a ser cumprida, foi dada indicação à direção do Agrupamento de Escolas de Benfica (onde a menor chegou a ter inscrição provisória) para comunicar, de imediato, o caso às instâncias judiciais”.
Questionado ainda sobre se, tendo em conta o impasse judicial e os três meses que Luísa L. já leva sem aulas, existe à disposição do ministério algum mecanismo capaz de assegurar temporariamente o direito da criança à educação, o gabinete de Tiago Brandão Rodrigues não respondeu, acrescentando apenas que “no estrito cumprimento da Lei, o Ministério da Educação cuida para que todos os jovens frequentem a escolaridade obrigatória”.
Entretanto, só no passado dia 10 de dezembro é que as medidas provisórias, sem direito a recurso, do tribunal de Navalmoral de la Mata foram conhecidas: até à sentença definitiva, a guarda e custódia de Luísa seriam atribuídas à mãe, cabendo ao pai o pagamento de uma pensão de alimentos de 250 euros mensais (valor que Luís L. garante que já entrega voluntariamente desde março de 2018) mais metade dos gastos extraordinários inerentes à jovem. O pai teria ainda direito a um em cada dois fins de semana com a filha, estando proibido de sair com ela do território espanhol — uma medida que o professor de História considera inconstitucional, mas que, de acordo com António José Fialho, é “absolutamente legítima”. “Temos livre circulação dentro do nosso estado, mas entre estados pode haver limitações. Deve ser uma situação preventiva, para evitar novas situações de rapto, pelo menos enquanto está a decorrer o processo — o tribunal tem de estar próximo para poder decidir”, contextualiza.
Luís L., ele próprio professor, diz que já pediu ajuda à CPCJ (Comissão de Proteção de Crianças e Jovens), à Associação Portuguesa de Apoio à Vítima e até ao Procurador de Menores — “Disse-me que não podia fazer nada porque a sentença está tecnicamente correta”. Esgotados todos os recursos, admite que não se conforma, mas que vai ter de cumprir a decisão: “Antes de ser cidadã espanhola, a jovem é cidadã portuguesa. Nasceu cá, foi registada cá e só depois é que fomos ao consulado espanhol. É nesse sentido que esta decisão do tribunal espanhol se torna ainda mais grave. Para já, pedimos uma clarificação desta sentença, que é provisória e viola claramente os direitos da minha filha e os meus também, mas, quando ela chegar, vou ter de cumprir esta sentença”.
Em Portugal, a pena prevista para o crime de subtração de menor perpetrado por um dos progenitores é de dois anos de prisão ou de multa até 240 dias, mas, explica o juiz António José Fialho, nunca ou quase nunca é aplicada. “As penas de prisão são as respostas criminais aos pedidos de rapto internacional. Temos decidido [no âmbito da Rede Internacional de Juízes da Convenção de Haia] que deve ser dada relevância ao processo civil, porque a questão criminal pode prejudicar o processo de regulação das responsabilidades parentais e até colocar um dos progenitores em desvantagem — à partida alguém que está preso não tem, por exemplo, o mesmo acesso a advogados”, diz. “Nem todos os países são assim; os Estados Unidos são dos que dão prevalência à resposta musculada, e Espanha até já teve maus exemplos disso: lembro-me do caso de uma mãe, espanhola, que tinha uma ordem para devolver o filho ao país de residência, que eram os Estados Unidos, e voou voluntariamente para lá, para discutir as questões das responsabilidades parentais. Assim que aterrou, foi presa”.
Como se não bastasse, e apesar de Luís L. se lhe referir como se fosse, explica o juiz, a decisão do tribunal de Navalmoral de la Mata que obriga o repatriamento de Luísa a Espanha, país onde reside habitualmente e onde deverá ficar à guarda da mãe até ao fim do processo, não é uma sentença. “É uma decisão provisória, uma antecipação de uma decisão que até poderá ser diferente. E que, tal como a final, é exequível, mas se o pai quiser incumprir há forma de o fazer, formulando um conjunto de argumentos que serão depois avaliados por um tribunal português. Isto não é branco e preto, há zonas cinzentas e a própria Convenção [de Haia] estabeleceu exceções. E uma delas é justamente a vontade da criança, com idade e maturidade para tal”, explica o juiz.
A não ser que Luís L. se meta no carro e percorra voluntariamente com a filha os 446 quilómetros que separam Lisboa e Navalmoral de Mata, ainda demorará algum tempo até que a decisão do tribunal espanhol seja executada, prevê também António José Fialho. “O progenitor que é prejudicado, que está no Estado de que a criança foi retirada, faz um pedido à Autoridade Central do seu país, que, por sua vez, vai comunicar com a Autoridade Central Portuguesa [ACP], que entretanto tem de fazer a instrução de um processo. A Autoridade Central Portuguesa apura onde está a criança e remete o processo para o Ministério Público da área para instaurar um processo de regresso. Neste processo têm de ser os dois ouvidos: criança e progenitor que está a retê-la, sendo que, se se considerar que a decisão poderá ser diferente da original — e que não é para regressar —, o requerente do pedido também tem de se pronunciar. É o princípio do contraditório: não deve ser decidido nenhum processo de regresso sem que os próprios visados sejam ouvidos. Trata-se de um processo que tem um prazo máximo de seis semanas para ser concluído e que, não havendo complicações, até se pode fazer em poucos dias”, elucida António José Fialho. Findo o processo, e se a segunda decisão destoar da primeira, o processo deverá ser reaberto — “Sendo que a decisão final cabe ao país da residência habitual”, conclui o juiz.
Alienação parental e o direito ao contraditório
Em Espanha, queixa-se Luís L., não teve direito a contraditório: como a mãe prescindiu desse direito, o pai também não foi ouvido no processo de guarda da filha: “A Luísa foi ouvida só pela juíza e por um fiscal, numa sala à parte, e só lhe fizeram três perguntas. Não foi submetida a nenhuma avaliação psicológica, mas no tribunal disseram que sofria de alienação parental”.
Ao Observador, Marta R. defende essa mesma teoria e acusa o ex-marido de a manipular contra si: diz que a filha, que começa por descrever como “uma menina equilibrada, obediente e boa aluna”, tanto lhe diz que tem saudades como a maltrata; que se recusa a encontrar-se com ela senão em locais públicos; que recusou sempre que a convidou para passar um fim de semana consigo, longe de Navalmoral de la Mata.
Questionada sobre se Luísa tinha uma boa relação com o seu namorado, Marta R. entra em contradição com o retrato da filha que antes tinha descrito: “Ela nem dá bem nem dá mal, a Luísa é uma criança muito complicada na convivência. Também não está bem orientada; porque nenhum pai fomenta o ódio ao outro progenitor. A guerra entre os adultos não deve afetar os menores. Se a minha filha tivesse colocado um vídeo sobre o pai, eu obrigaria a tirar. Na minha educação isso não entra, impera o respeito”.
Segundo a avaliação psicológica a que foi, entretanto, submetida em Portugal, e a que o Observador teve acesso, Luísa oscila entre a raiva e a mágoa em relação à mãe e ao namorado dela: “A falta de compreensão e disponibilidade da mãe em atender às reais necessidades e escolhas da jovem são geradoras de grande revolta e raiva, mas, na realidade, esconderão um profundo sentimento de dor”. Não existe, ao longo das três páginas do documento, qualquer referência a alienação parental.
Longe do pai, que garante que só soube da existência do vídeo horas depois de estar publicado, para lá da porta fechada do quarto, Luísa vai mostrando fotografias das duas irmãs paternas, da namorada do pai e da filha dela, de 19 anos, com quem também vive agora; de um casamento a que foram, de dias de surf, em Carcavelos e no Guincho. Também não esconde o sentimento que continua a uni-la à mãe: “Tenho muitas saudades dela, eu amo a minha mãe. Mas há coisas que não se fazem e que não são justas, a minha mãe trocou-me por um homem que conhece há dois anos e eu estou destruída por dentro, perdi aquilo a que chamava família. Doeu-me muito chegar a este ponto, mas acho que também estou no meu direito de ser feliz”.
Tem 15 anos, completa 16 em março. O discurso é consonante com a idade (como quando diz que tem a vida destruída e nunca poderá ser neurocirurgiã porque desde outubro não pode ir à escola), mas também envereda por assuntos que lhe deveriam estar vedados e que dizem respeito a um outro processo judicial, referente ao acordo de divórcio dos pais, e a que tanto Marta R. como o seu irmão Tomás R., tio de Luísa, fazem referência — ela na conversa com o Observador, ele no vídeo de 21 minutos que, no passado dia 16 de dezembro, publicou no YouTube, em resposta à sobrinha e que até agora não chegou às 400 visualizações.
Enquanto o processo não se resolve e continua sem poder ir à escola, sempre com o objetivo de entrar em Medicina em mente, Luísa, que em Espanha, revelou a mãe ao Observador, tinha uma média de 8 em 10, vai fazendo a sua própria rotina de estudo, com os manuais que entretanto teve de tirar na mochila mas que se recusa a fechar: “Acordo às 8h00, tomo duche e vou para a secretária. Os meus colegas dizem-me o que estamos a dar e eu vou estudando sozinha”.
De acordo com a psicóloga clínica que a consultou já a meio do mês de dezembro, não chega: ao estar impedida de estudar, Luísa está numa situação de perigo, defende a especialista nas conclusões do relatório: “A jovem encontra-se gravemente lesada por esta falta de entendimento parental, cujos objetivos deverão ir ao encontro das suas reais necessidades e não dos demais argumentos ou interesses dos pais”.
Também segundo a psicóloga, Luísa deverá, como aliás prevê a lei, ser ouvida no processo que lhe diz respeito: “A sua idade, a sua maturidade, boas capacidades cognitivas, autonomia, as suas motivações, desejos e angústias, que facilmente transmite através da sua narrativa bem estruturada, deverão ser, nesta fase, fator determinante na resolução deste conflito parental”.