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“Eu me considero um cidadão com um processo de ressurreição na política brasileira, porque tentaram enterrar-me vivo. Mas estou aqui para governar esse país numa situação muito difícil”. Foi o único ponto de amargura no discurso de vitória de Lula de Silva, que tentou manter o tom conciliador em toda a linha, em que sublinhou que não existem “dois Brasis”, pediu o fim do “permanente estado de guerra” e decretou que “é hora de baixar as armas”.
O candidato do PT sabe que esta foi uma vitória por uma unha negra, após uma das campanhas eleitorais mais polarizadoras da História do país. Mas Lula não conseguiu deixar de sublinhar a dimensão simbólica da sua vitória. O político brasileiro que foi condenado por corrupção, esteve preso e viu os seus direitos políticos serem-lhe retirados venceu agora uma eleição presidencial contra Jair Bolsonaro por apenas 50,9% dos votos contra 49,1%.
A curta vitória, porém, não é assim tão pequena se tivermos em conta que Lula se tornou a primeira pessoa a vencer por três vezes em presidenciais, que obteve o maior número de votos de sempre (mais de 60 milhões, batendo o recorde anterior que já lhe pertencia) e impediu pela primeira vez a reeleição de um Presidente no cargo.
A noite foi, por isso, de festa para Lula da Silva e para o PT. Esta semana, porém, inaugura-se um tempo de dificuldades. A presidência pode ser sua, mas há muita divisão para ultrapassar: o Congresso está à direita, as principais regiões (São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais) são controladas por governadores pró-Bolsonaro e o país está politicamente partido ao meio. Já para não falar que se avizinha um processo de transição que pode ser tudo menos fácil se Bolsonaro — que não se pronunciou na noite eleitoral — ensaiar uma resistência ao estilo da de Donald Trump. Conseguirá Lula ultrapassar estes desafios?
Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre a vitória de Lula da Silva.
Conquistar o “Centrão” no Congresso — sem Mensalão, Lava Jato ou Orçamento Secreto
O primeiro será o de conseguir governar num país onde o Congresso está longe de estar alinhado com as ideias políticas do Presidente. Na Câmara dos Deputados, por exemplo, só 122 dos 513 parlamentares foram eleitos por partidos que apoiam Lula. Dos restantes, 187 pertencem a forças políticas bolsonaristas.
No Senado, a correlação de forças mantém-se: 11 dos 81 senadores estão com Lula e 23 com Bolsonaro. Os restantes, quer na Câmara quer no Senado, são flutuantes que será necessário convencer — o chamado “Centrão”. A negociação com esse grupo nunca é fácil para nenhum governo e o histórico do PT não é o melhor: como relembra o Nexo, foi essa relação que levou ao Mensalão, o esquema de corrupção que manchou um dos mandatos de Lula, e à Lava Jato, já no governo de Dilma Rousseff.
Se Bolsonaro inicialmente garantia que iria acabar com os esquemas de compra de votos do Centrão, o seu mandato terminou manchado pelo escândalo do Orçamento Secreto. E os membros da equipa de Lula já anteveem que não será possível desmanchar esse arranjo tão cedo. A solução será, de acordo com informações transmitidas ao jornal Estado de S. Paulo, encontrar uma forma de os congressistas canalizarem os recursos que irão obter com o Orçamento Secreto para uma lista de projetos prioritários do governo.
A palavra de ordem é, por isso, negociar. Mas os primeiros sinais são encorajadores para Lula. Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados pró-bolsonarista, afirmou na noite eleitoral, já depois de serem conhecidos os resultados, que “é hora de desarmar os espíritos, estender a mão aos adversários, debater, construir pontes, propostas e práticas que tragam mais desenvolvimento, empregos, saúde, educação e marcos regulatórios eficientes”. Uma postura a que não será alheio o facto de que Lira ter pretensões de ser reeleito para o cargo, em fevereiro. Mas uma maioria no Congresso que permita negociar com carta branca é quase impossível e os tempos de tensão avizinham-se.
Relevo prometido para Alckmin e Tebet: um governo “além do PT”
Para mostrar vontade política para negociar no Congresso e sinalizar à sociedade um novo rumo, a campanha de Lula focou-se em encostar ao centro. A 24 de outubro, o candidato deixou uma garantia: “O nosso governo não será um governo do PT. É importante, Gleisi [Hoffmann], você que é presidente [do partido], saiba: nós precisamos de fazer um governo além do PT”, afirmou Lula. Uma expressão resgatada na noite deste domingo por Rui Costa, governador da Bahia e apontado como ministeriável: “O Lula vem para reconstruir nosso país. E, como ele mesmo disse, para construir um governo que não será do PT, de um partido apenas. Será o governo de uma reconstrução nacional, um governo de união do nosso país”.
A 27 de outubro, a campanha de Lula divulgou uma carta aberta com propostas, onde se incluía uma garantia de cumprimento de uma “política fiscal responsável”, mas eram dados poucos detalhes. Uma decisão que se justificava pelo objetivo de conseguir uma “frente ampla” contra o bolsonarismo, que reunia petistas, mas também figuras de vários quadrantes políticos, como a candidata presidencial liberal Simone Tebet e o ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso, bem como economistas associados ao centro-direita, Armínio Fraga e Edmar Bacha. Já para não falar, é claro, do candidato a vice-presidente, o histórico do PSDB (centro-direita) Geraldo Alckmin.
Agora, muitas destas figuras esperam que, em troca do seu apoio, Lula crie um governo com um programa mais moderado do que seria habitual esperar do PT. Elena Landau, coordenadora económica do programa de Simone Tebet, diz mesmo esperar que Lula possa “reconhecer a importância da frente ampla que se formou” e montar uma solução semelhante à “geringonça” portuguesa, que reconheça o contributo de outras influências políticas. Uma postura que, prevê a economista Zeina Latif, deverá fazer resgatar o “pragmatismo” que marcou o primeiro mandato de Lula da Silva enquanto Presidente.
Para isso, o mais certo é que Lula e a sua equipa comecem de imediato por empolar no novo governo — que deverá aumentar o número de ministérios dos atuais 23 para 34 — figuras como Alckmin e Tebet. Quanto ao primeiro, fontes próximas de Lula garantem ao jornal O Globo que não deverá assumir nenhum ministério para não ser alvo de desgaste ao longo do mandato. Em vez disso, assumirá uma postura de “co-piloto”, sendo consultado para todos os temas — com principal destaque na reforma laboral que consiga um acordo de concertação social entre trabalhadores e patrões.
Já Tebet terá quase de certeza o cargo de ministra — resta saber em que pasta. O PT gostaria de a ver liderar áreas como o Ambiente ou o Agronegócio, mas a ex-candidata presidencial já sinalizou que gostaria de liderar a área da Educação, pasta habitualmente cara aos petistas. Veremos até que ponto Lula cederá às figuras mais centristas da “frente ampla”, ainda para mais sabendo que poderá enfrentar resistência por parte da ala esquerda da sua coligação. Ainda no início do mês, Guilherme Boulos, líder emergente da esquerda brasileira, garantia que Alckmin não iria influenciar economicamente o novo governo: “Em nenhum momento as ideias liberais do Alckmin foram incorporadas ao programa”, disse o líder do PSOL. Lula terá de equilibrar as várias fações que o apoiam dentro do governo e no Congresso. E se, durante a campanha, havia a rejeição de Bolsonaro a uni-los, agora no poder tudo é bem diferente.
Governadores sinalizam abertura ao diálogo. Mas até quando?
Outra área onde Lula será forçado a negociar é na relação com os governadores estaduais. O Presidente-eleito sabe-o também, razão pela qual já garantiu que, assim que tomar posse, irá reunir-se com eles para ouvir as prioridades de cada um.
Os números não estão a seu favor. A partir de 2023, Lula contará com 11 governadores que lhe são próximos a conduzir os destinos de diferentes estados, mas tem pela frente outros 14 que declararam apoio a Bolsonaro — incluindo nos três maiores estados, Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais —, bem como dois oficialmente neutros.
Na noite eleitoral, os sinais foram de total disponibilidade para o diálogo. Eduardo Leite, eleito pelo PSDB no Rio Grande do Sul, era um dos dois candidatos neutros (a par de Raquel Lyra, em Pernambuco), mas no seu discurso de vitória prometeu “cicatrizar feridas” e focar-se “na convergência” e “aproximação”.
Até governadores bolsonaristas como Romeu Zema (Minas Gerais) e Wilson Lima (Amazonas) disseram estar dispostos a negociar com o novo Presidente o novo governo: Zema disse-se aberto ao “diálogo” e Lima garantiu estar disposto a “conversar com todos”. Mais relevante ainda: Tarcísio de Freitas, que conquistou São Paulo e derrotou o candidato do PT, Fernando Haddad, disse claramente que pretende “entendimento com o governo federal” e prometeu uma “relação republicana” com Lula da Silva.
Será apenas fogo de vista da noite eleitoral? Nos bastidores, o PT diz-se pronto para enfrentar aquilo que classificou ao Estadão de “terceiro turno”: tentativas do campo pró-Bolsonaro para desestabilizar o novo governo, lideradas precisamente por Tarcísio, bolsonarista em ascensão, a partir de São Paulo. As declarações do governador este domingo podem não passar de tréguas associadas à noite eleitoral. Mesmo que Tarcísio se queira distanciar de um Bolsonaro derrotado, muitos preveem-lhe um futuro político como herdeiro do bolsonarismo — o que não promete dar descanso a Lula.
A transição, a primeira grande batalha
Quer a batalha do Congresso, quer a das fações dentro do próprio governo, bem como a questão dos governadores, são, contudo, desafios mais tardios. Antes disso, Lula da Silva terá de enfrentar a temida transição. Se normalmente o período até à tomada de posse (a 1 de janeiro de 2023) já é marcado pela expectativa, graças à nomeação de figuras que geralmente transitam para o novo governo, desta vez é um período ainda mais relevante se tivermos em conta que Jair Bolsonaro ainda não deu sinais de que aceitará ceder o poder.
Com um Presidente cessante que já questionou a validade das eleições no passado e insinuou que poderia haver uma intervenção militar, o silêncio da noite eleitoral por parte de Bolsonaro deixa a equipa de Lula inquieta. E, mesmo que a transição avance como é constitucionalmente esperado, os aliados do candidato do PT temem que não haja colaboração por parte do outro lado, falando já numa “caixa preta” — uma incógnita.
Alexandre Padilha, apontado como possível futuro ministro da Economia, já disse que quaisquer medidas futuras estão dependentes do que o novo governo descobrir quando tiver real noção do estado atual das contas públicas: “Não temos o diagnóstico definitivo da tragédia de Bolsonaro para o País”, disse.
Independentemente do que espera o Brasil nas próximas semanas, até à tomada de posse de Lula da Silva, há um diagnóstico que é claro para a maioria dos especialistas: se Lula da Silva quer governar com estabilidade, vai ter de, como prometeu, ir “além do PT”. Como previa uma semana antes da eleição o sociólogo Celso Rocha de Barros, que estudou o Partido dos Trabalhadores, “o PT vai ter que ser um sócio maioritário da coligação para a reconstrução da democracia”, estando aberto a “novas alianças”, possivelmente até ideológicas. Lula já sinalizou que está disposto a isso. Porque, depois de ressuscitar — e de já ter anunciado que não irá voltar à concorrer à presidência —, Lula da Silva sabe que já não tem mais vidas políticas para gastar.