Numa das paredes, duas fotografias da artista uruguaia Isabel Ruiz (nascida em 1959) compõem a mais recente aquisição da coleção. Foram adquiridas há pouco mais de uma semana, na feira de arte contemporânea Art Madrid’23, que decorre ao mesmo tempo que a ArcoMadrid, dois certames onde José Lima faz questão de ir todos anos. “Comprei-as e já aqui estão como parte desta mostra”, rejubila o colecionador – termo que não o define, mas já lá vamos. Fala ao Observador do percurso de vida que o levou até um universo plástico e visual singular. “Não quis as fotografias por já conhecer a artista, mas sim porque gostei imenso do seu trabalho. A última coisa que faço é olhar para o nome do artista; e só depois é que procuro saber mais sobre a pessoa, se for alguém desconhecido”, acrescenta.
Estamos na Sociedade Nacional de Belas Artes (SNBA), em Lisboa, a poucas horas da inauguração da exposição “Uma terna (e política) contemplação do que vive”, ali patente até 8 de abril, na qual se encontram reunidas cerca de 120 obras de artistas como Paula Rego, Andy Warhol, Vasaraley e Nan Golding. Fazem parte da coleção privada Norlinda e José Lima, atualmente uma das maiores coleções de arte privadas do país.
Ao passar defronte das muitas obras expostas, José Lima sabe exatamente o sítio e o contexto em que as adquiriu. Conta sempre uma história associada a elas, mesmo que tenham sido meramente compradas em galerias ou em feiras especializadas. “Não me servem para estar em casa, com muitas delas isso nem seria possível. Foram compradas para serem exibidas e para que as pessoas possam refletir a partir das mesmas”, prossegue. A verdade é que não se trata de uma coleção vulgar. O seu criador não é um colecionador vulgar – pelo menos assim o reconhece. Prefere chamar-se a si próprio de “coletor”, tal como disse durante a apresentação ao público na abertura da mostra. A aventura de criar um acervo deste poderio começou em 1980 e tornou-se num projeto de rara continuidade em Portugal. Lá iremos.
Para a história desta exposição, uma de muitas feitas sobre a Coleção Norlinda e José Lima ao longo da última década, está a motivação da curadora Helena Mendes Pereira, diretora da Zet Gallery, de Braga, que tem vindo a trabalhar com as obras há 10 anos em depósito no Centro de Arte Oliva, em São João da Madeira. Entre as mais de 1300 que a compõem, a curadora teve um trabalho hercúleo de seleção, com dois objetivos primordiais: “Não trazer obras de artistas tão conhecidos ou que as pessoas já estejam habituadas a ver. E trazer obras de temas mais políticos, que podem dar azo a polémica pelas suas temáticas”, sintetiza. Não estando exatamente dividida em núcleos, identificam-se dois lados da exposição. Um lado direito mais ligado à expressão plástica e um lado esquerdo mais simbólico e político, ligado à fotografia. Ao centro, há obras de artistas como Damien Hirst, Mauro Cerqueira, Rui Chafes ou Paula Rego, através das quais se traduzem vários aspetos singulares deste acervo, seja pela sua dimensão internacional, como por evidenciarem uma ligação emocional à arte por parte do seu colecionador.
Por outro lado, revela-se nesta mostra um pendor político. “Escolhi artistas que, com o seu trabalho, acabam por ter uma engajamento político e social, com mensagem, porque isso também faz parte da filosofia por detrás da constituição desta coleção”, realça Helena Mendes Pereira. “Esta coleção tem motivações de gosto, mas também motivações concretas e de afinidades políticas e era esse lado que nos interessava mostrar. Não se trata apenas de uma coleção para estar fechada ou numa casa; muitas obras têm um grau de violência com as quais não quereríamos viver diariamente.” De forma mais abrangente, a curadora olha para a coleção como sendo “feita a gosto por um cidadão que é, iminentemente, político.” Entre os detalhes mais conhecidos da coleção, destaca-se o facto da ter o nome de José Lima e da sua mulher Norlinda, de compreender aproximadamente mil e duzentas obras de arte, onde estão representados cerca de duzentos e cinquenta artistas portugueses e duzentos e trinta artistas internacionais e abrange um período de quase cem anos balizado entre 1926 e 2019, com maior concentração na produção artística dos últimos quarenta anos. A essa amplitude cronológica invulgar nas coleções particulares, somam-se a diversidade disciplinar, de suportes e processos artísticos: pintura, escultura, desenho, fotografia, instalação, filme e vídeo.
É também de salientar a diversidade geográfica dos artistas: Portugal e Espanha, com extensa representação no acervo, a que se reúnem nomes de artistas dos centros artísticos históricos como Alemanha e Estados Unidos da América, mas também da América Latina, África, Ásia e Leste da Europa, nos quais se incluem artistas emergentes a par de consagrados. A coleção está em depósito de longo prazo na Câmara Municipal de S. João da Madeira desde 2009, estando na base da criação do Centro de Arte Oliva que, desde a abertura em 2013, tem sido apresentada num programa regular de exposições temporárias.
Entre livros de filosofia e um quadro de Álvaro Lapa
Mais de quatro décadas depois de adquiridos os primeiros quadros, a Coleção Norlinda e José Lima é, atualmente, um exemplo quase único de uma coleção de arte privada em Portugal – pelo menos com esta extensão – que foi aumentando puramente como exercício de gosto e afeição. E tudo por causa do seu criador, José Lima, que mesmo aos 83 anos não deixa de ficar maravilhado pelas obras e os artistas que vai descobrindo, sejam ou não emergentes no panorama artístico. Nascido em 1940, em Águeda, José Correia de Lima cedo teve de abandonar os estudos, para trabalhar na sapataria dos pais. Ganhou o interesse primeiro pela filosofia, depois pela arte por “puro autodidatismo” e à revelia dos livros que os amigos lhe emprestavam.
Nos anos difíceis do pós-Segunda Guerra Mundial, dedicou-se ao trabalho, embora fosse, diz, “um rapazito esperto na escola primária”. As dificuldades financeiras levaram-no das saulas de aula para a oficina do pai, onde arranjava sapatos, ao mesmo tempo que via os colegas e amigos a irem para o liceu e depois para as universidades em Coimbra, Aveiro ou no Porto. Quanto à cultura e à arte como dimensão que se tornou essencial na sua vida, diz-se autodidata. “Os amigos traziam-me livros de Nietzsche, do Sartre e de outros autores que ia lendo. Ao mesmo tempo ia a feiras internacionais de calçado e arranjava sempre um dia para visitar os museus dessas cidades”, conta.
Nesses anos passou por Itália, Alemanha, França, Inglaterra, entre muitos outros países europeus, onde visitou todos os principais museus. “Toda essa fruição acontece porque tanto os livros como esses museus eram oportunidades que me caíam em cima da mesa. Li praticamente todos os prémios Nobel e quando acabava o dia de trabalho o que me interessava era a história, a arte e a cultura”. Certo é que os anos passaram e já depois do 25 de Abril, firmado como industrial do setor do calçado, começou a comprar obras. “Não sei exatamente qual foi a primeira, mas costumo dizer que foi um quadro do Álvaro Lapa”, artista português do qual possui hoje dez obras. Numa época de transição para a arte portuguesa, José Lima acompanha as mudanças que a democracia proporcionou nesse domínio – do período marcado pelos surrealistas Mário Cesariny e Cruzeiro Seixas para os nomes que surgiram na arte portuguesa pós-Alternativa Zero, a célebre exposição promovida por Ernesto de Sousa, em 1977.
Foi a devida introdução a um leque de nomes: de Maria Helena Vieira da Silva, Paula Rego, Pedro Cabrita Reis, Júlio Pomar, Joana Vasconcelos, Eduardo Batarda, André Cepeda, Albuquerque Mendes, Júlia Ventura, João Louro, do lado dos portugueses, até Andy Warhol, Christo, Damien Hirst, Victor Vasarely, António Saura, Miquel Barceló, Jan Voss, Cindy Sherman, Serge Poliakoff ou Malangatana no domínio dos artistas estrangeiros. A coleção que começa a ser feita em 1980 não seria, explica, só portuguesa. “Nunca foi o seu desígnio. Comprava aquilo que gostava e que podia, não me interessava a nacionalidade”, explica, acrescentando que houve muitas obras que demoraram anos a adquirir e outras que, de forma compulsiva, não desistiu até obter. “É o caso de uma obra do Miquel Barceló para a qual cheguei a pedir um empréstimo avultado”, revela.
A arte é um gosto caro, mas José explica que, sobretudo na década de 1980, ganhou muito dinheiro em ações e a investir no mercado imobiliário. Dos quadros que comprou, o colecionador que, por volta do ano de 2003 chegou a frequentar a Licenciatura em História da Arte na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, diz nunca ter vendido nenhum: “Quanto muito, troquei”. Embora reconheça que tem poucos conhecimentos, exceto os conhecimentos sobre a técnica a partir do que leu, a compra de obras foi (quase sempre) uma espécie de vício, tal qual um jogador de casino, algo que nem sempre foi fácil em termos familiares. “Por vezes o que a minha mulher precisava era um eletrodoméstico ou de um forno novo e eu comprava mais um quadro”, recorda entre risos. Do porquê da sua mulher ter também o nome na coleção, José Lima explica que no momento de uma primeira exposição das obras, o presidente da Câmara da localidade onde a mesma se realizou se referiu à coleção como sendo dos dois – e assim ficou. “Foi um truque que funcionou. A minha mulher estava ao meu lado e eu disse que de facto a coleção era de ambos. Mas ela nunca escolheu obras, nunca teve esse interesse, mas também nunca foi um tema que criasse conflito entre nós.”
Uma coleção para ser vista
Entre propostas para fixar a sua coleção, que surgiram nas últimas décadas, escolheu São João da Madeira por ser a localidade da sua mulher e dos seus filhos. Uma decisão que fez com que a mesma fosse levada para o Centro de Arte Oliva onde. Ainda assim, lamenta que “nem sempre, por várias limitações, seja verdadeiramente divulgada”. Mas exposições não faltam com obras suas, de norte a sul do país. “A coleção não serve para mais nada a não ser para ser vista”, sintetiza. Embora hoje em dia não tenha grandes preocupações em relação à coleção e como esta é analisada, preocupa-lhe o que poderá ser o futuro da mesma. “Num país onde nem sequer há um verdadeiro museu de Arte Contemporânea e onde as câmaras municipais também não têm condições para manter uma coleção assim, preocupo-me com o que poderá… faltou-me fazer uma fundação para assegurar isso”, salienta.
Voltamos ao princípio e à exposição da SNBA. No meio dos preparativos, José Lima e a mulher ficam felizes por ver que ainda há interesse e que este tipo de mostras despertam interesse sobre os seus percursos de vida. José Lima diz que aprende e continua a aprender sobretudo com os curadores que demonstram interesse nas suas obras e alguns galeristas. “Quando se colecionam mais de 1300 peças tem de ser ter algum cuidado e ser seletivo”. E não tem receio de pedir por descontos. “Sempre que posso gosto de conhecer o artista e falar com ele, mesmo que no fim seja para lhe pedir um desconto na obra que quero comprar”. É assim que continua a fazer, a adquirir obras quase de forma mensal. “Enquanto andar às voltas com a arte contemporânea, continuarei a comprar”, afirma. Lamenta a falta de apoios por parte do Estado e de suporte para que se levem as obras até outras localidades, mas explica que ainda vale a pena tentar, mesmo que tenha de ser ele a pagar a fatura. “Era preciso criar uma rede, que apoiasse este tipo de coleções”, completa.
Para alguém que parece já ter comprado tudo o que queria, a verdade é que essa busca não termina. “Digo sempre isso: não tenho a coleção que quero, tenho a coleção que posso”. No meio disso, diz ter pena de, provavelmente, ser tarde (e demasiado caro) para adquirir um quadro do artista alemão Gerhard Richter – um dos pintores vivos de cotação mais elevada em termos mundiais. Quanto aos motivos para se celebrar uma coleção de arte, é assertivo: “A arte torna-nos diferentes, quer socialmente, quer na felicidade e em sermos mais pela bondade do que pela malvadez. Hoje sou um indivíduo melhor pelo fato de ter tudo isto. Os livros e a arte tornaram-me numa pessoa melhor, por isso é que acredito que todos devemos ter acesso a eles.”
Regressamos às palavras da própria curadora presentes numa das paredes da exposição: “Colecionar é, para o casal Norlinda e José Lima, um ato de respiração. Não é, por isso, de admirar que tenham somado mais de 1300 obras de arte, contabilizando cerca de 250 artistas portugueses e 230 internacionais. Trata-se de um projeto de rara continuidade em Portugal, revelando o espírito livre dos colecionadores, a sua curiosidade e atenção ao mundo e denotando-os como profundos crentes no poder transformador da Arte.” Do seu legado, fica um ato de colecionar que, em última instância, também incita ao pensamento e à liberdade.