Para quem associa Mallu Magalhães a melancolia, pois fique a saber que ela é “alegre e solar”. Recebe-nos de sorriso e abraço pronto e só lamenta não ter podido fazer a entrevista no Jardim da Estrela — mas o céu ameaçava chuva. Entre uma entrevista e outra, no estúdio que a cantora brasileira e o marido, o também cantor Marcelo Camelo, têm na Estrela, a nossa conversa era a terceira do dia e temíamos pelo cansaço. “Imagina…!”. Um golo de água e um “WhatsApp bem básico” no telefone e já está. Mallu está feliz com o seu álbum novo, que levou quase seis anos a sair do forno, e feliz por falar dele.
Tem apenas 24 anos, mas para quem começou nesta vida da música aos 15, a idade é adulta. Entre o disco Pitanga, que editou em 2011 (aos 18) e o Vem, que fica esta sexta-feira disponível em Portugal e no Brasil, vai um oceano de distância. Cresceu, casou, mudou-se para a “calma da confusão” de Lisboa, ganhou um amor “ideal” a São Paulo que desconhecia ser possível, e ganhou um outro amor bem maior: a filha Luísa, de ano e meio.
Mas não quer com isso dizer que passou a ser a “zeca madurinha” de apenas 24 anos. Porque ser madura é bom, mas ser criança é melhor ainda. O crescimento, contudo, serviu-lhe para alguma coisa. Serviu para abandonar o facilitismo de compor apenas para dentro, e para ganhar coragem de fazer um disco para ser apreciado pelos outros. Um disco com “sonhos”. Para “cantar junto”, como costuma dizer. Se não correr bem, assume as consequências. Sim, Mallu Magalhães está com uma renovada “auto-confiança”.
Culpa da maternidade, também, que a fez ficar mais “pantera”, mais “selvagem”. Mais irreverente. É isso tudo que tem para mostrar no novo álbum Vem, a mais brasileira de todas as suas criações. O registo continua a ser a canção autobiográfica, mas em vez de perpetuar os momentos de tristeza, que esses são passageiros, desta vez explorou outros caminhos. É que Mallu Magalhães não é essa menina romântica e “doce demais”, que gosta de rosas no jardim e que fica o dia inteiro a “olhar para o céu, pensando”. Prefere a confusão, a intensidade, olhar à volta e andar de metro. A vida real, portanto.
É mais ou menos por esta altura que Marcelo Camelo entra no estúdio, interrompendo por instantes a entrevista. “Oi amor…”. Mallu está preocupada por o marido ter ido até ali a pé. Marcelo está a coxear, com o dedo do pé partido e é ela que lhe costuma dar “carona”. Podia dizer que se “machucou” nas pedras da calçada portuguesa. Podia. “Seria mais poético…”. Mas não, foi mesmo a dar um pontapé numa cadeira. A vida real, portanto.
Começo já com um cliché. Há uma Mallu Magalhães antes do Pitanga e uma Mallu Magalhães depois?
Sim, eu acho que sim. O Pitanga foi uma viragem de página, especialmente por causa do método. Foi um disco feito com muita calma, muito tempo, muita tentativa e erro, e muita mão na massa. É muito manual. Entreguei-me muito ao álbum e isso muda uma pessoa artisticamente. Além disso, foi um disco de afirmação, de descoberta, muito despretensioso. Era um disco que não queria nada, que só queria ser o disco que era. Foi um disco muito importante para mim.
Não tinha necessidade de se afirmar. Tinha só 18 anos, por isso se não resultasse também não era um fracasso assim tão grande. Mas resultou e foi esse disco que consagrou a Mallu Magalhães. Isso fez com que desta vez já sentisse mais pressão?
Sim, acho que senti várias pressões. Qualquer pessoa se questiona sobre quem é e sobre a profissão que tem. Todo o mundo tem essas questões. E eu, em particular, tenho muitas. Penso muito nisso tudo. Quando estou prestes a iniciar um trabalho inicio uma reflexão muito profunda de busca pela identidade. E isso vem com muitos medos. Há também a pressão simples e objetiva de ter um sucesso mínimo, para poder viabilizar a minha profissão e a minha vida. Claro que eu hoje preciso que a minha música resulte. Antes do Pitanga eu era muito nova, ainda estava muito na dúvida, a achar que a música podia ser só um delírio meu. Pensava “OK, agora estou nesta fase armada em música mas isto passa”.
“Antes do Pitanga eu era muito nova, ainda estava muito na dúvida, a achar que a música podia ser só um delírio meu”
Por insegurança?
Um pouco por insegurança mas também pela minha infância. Venho de uma família que não tem músicos, então eu achava estranho viver da música. À minha volta todo o mundo tinha a música como hobbie, e isso foi muito construtivo para mim. Fez com que a música se firmasse em mim como uma coisa boa. Como uma forma de terapia. O Marcelo [Camelo] uma vez falou assim para mim: “Quem faz arte, quem faz música, nunca está sozinho”. E é verdade. Nunca estamos realmente com a cabeça sozinha, desocupada, estamos sempre a mexer. Antes eu via a música como uma coisa quase secundária na minha vida. Tinha a escola, a minha família. Mas depois percebi “espera aí, se calhar dá para fazer disto a minha profissão, posso me posicionar de uma maneira legal, posso profissionalizar este meu hobbie”. E o Pitanga é mesmo essa viragem: “Beleza, vou fazer disso a minha vida? Vou, então vamos lá”.
Teve medo quando chegou a essa conclusão?
Tive medo, sim, mas por isso fiz uma coisa: baixei muito as minhas exigências. Diminui muito o meu estilo de vida, pensei “na pior das hipóteses eu consigo viver com pouco”. Mas acabou por ser o oposto. Foi um disco super bem sucedido. E depois veio a Banda do Mar que também foi o maior sucesso. Acho que o facto de eu ter baixado muito as expectativas foi muito positivo. Por isso é que este disco já é diferente, agora eu já venho com mais expectativa. Hoje em dia eu quero mais. Antes não.
O que é que quer hoje?
Várias coisas. Quero conseguir expressar-me melhor. Quero conseguir colocar este vigor, esta atitude, esta intensidade selvagem que eu acho que tenho dentro de mim, na minha música. Acho que consegui isso com a Banda do Mar e antes não tinha conseguido. É como se sobrasse um pedaço de mim que eu não tinha ainda conseguido colocar para fora. Nos shows, quando cantava ao vivo, as músicas que eu mais dançava e em que eu mais conseguia sentir aquele calor não eram minhas, e isso dava-me uma aflição… “Puxa, porque é que eu não consigo fazer uma música que tenha esse vigor, se eu tenho ele em mim?” Mas este disco é diferente. Este disco tem esse vigor. Tem a “Você não presta”, “Pelo Telefone”, “Navegador”, “Será que um dia”, tudo músicas mais carnais.
E menos melancólicas.
Sim. É curioso porque quem ouve essas músicas mais melancólicas, sobretudo do Pitanga, pensa “nossa, ela deve passar o dia inteiro pensando na vida, olhando para o céu…” E não é verdade. Eu passava o dia inteiro na rua, no metro, adoro andar de metro, passava o tempo à procura de coisas. Sempre fui uma pessoa muito feliz, muito alegre e positiva. Mas o que o público acaba por receber, especialmente naquele disco que tinha essa componente mais dramática, é o pior que eu já tive. Se eu estou muito triste eu vou fazer uma música, mas depois quando lanço a música as pessoas pensam “ai como ela é triste”. Mas não! Eu só estive triste naquela vez, a música é que fica.
Então este disco Vem é diferente em quê?
Este disco é o oposto, é para chamar as pessoas. A nossa produção artística funciona muito como um mantra e quando criamos alguma coisa, o resultado nem sempre é aquilo que somos. Mas isso acaba por funcionar muito bem, porque quando fazemos uma música que não é exatamente aquilo que conseguimos fazer neste momento, mas sim aquilo que queremos conseguir fazer, o resultado é que acabamos por conseguir de verdade. Este disco tem isso, tem os sonhos. Os outros não, eram discos sem intenção de ir para nenhum lugar, eram discos para dentro. Este não. O da Banda do Mar também já era bem para fora, e eu gostei muito de o fazer. Identifiquei-me com esse método e com esse resultado, por isso voltei a fazer um disco para fora.
Não perde genuinidade? Fazer um disco para fora não acaba por ser mais pretensioso?
Não, porque é tão honesto… O desejo sincero de falar e estar com o outro é tão genuíno e tão valioso quanto o desejo sincero de estar consigo mesmo. Eu acho até que é mais valioso. Porque é muito fácil fazer um disco e pensar “não interessa se as pessoas gostam ou não” do que assumir que vou fazer um disco para as pessoas e que quero que as pessoas gostem. Isso é muito mais difícil e mais desafiante. Se ninguém gostar, você perde muito. É por isso que este disco acabou por ficar tão confiante. É para chamar as pessoas, é para dançar, é sofisticado, é bem brasileiro, é bem afirmativo e bem confiante. Até no canto. Hoje em dia vejo que canto com muito mais confiança, ponho muito mais ar na voz, fico mais rouca, faço as coisas menos preocupada com as consequências. É curioso. Ao mesmo tempo que eu imponho um lugar onde quero chegar, o jeito com que faço isso é quase imprudente. E esse é o fundamento da irreverência. Todos os artistas que eu admiro são irreverentes, fazem coisas que nem sempre agradam e fazem coisas inesperadas, apenas porque lhes agrada a eles. Eu preciso de ouvir o disco e pensar “nossa, este disco está incrível”. Eu preciso de querer o disco. E este disco chegou lá. Este é um disco que eu ouviria, que eu vou gosta de tocar, que vou gostar de mostrar, isso é muito importante para mim.
“É muito fácil fazer um disco e pensar que não interessa se as pessoas gostam ou não. Mas se eu assumir que vou fazer um disco para as pessoas e que quero que elas gostem, isso é muito mais difícil. E mais desafiante”
Há bocado dizia que só sentia vigor e intensidade quanto cantava músicas de outros. Quando é que foi a primeira vez que sentiu isso com uma música sua?
Houve várias. Mas aqui há uma questão importante que é a ideia de cantar junto. Isso é uma experiência fabulosa para qualquer artista. A resposta do público mexe muito connosco. Se eu tocar para uma multidão e aquelas pessoas cantarem a minha música, isso é muito intenso. Acho que a primeira vez que isso aconteceu foi com o ‘Velha e Louca‘. Também porque as minhas primeiras músicas eram em inglês, e por mais que até tivessem algum sucesso, as pessoas não cantavam junto. Tudo bem, sem problema. Mas quando as pessoas começaram a cantar junto eu pensei “meu Deus, isto é o máximo, quero muito fazer disto a minha vida, quero pôr as pessoas a cantar junto”. E comecei a perseguir isso com mais afinco. Este disco é o resultado disso. É um cancioneiro, para a pessoa se identificar e cantar. E dançar, fazer o que quiser. Acho que essa intenção é muito genuína, é entregar para o próximo. É menos egoísta e bem mais desafiador, porque o músico não controla como a música vai ser recebida.
Podia-se dizer que este álbum é quase 100% português. Mas não é bem assim porque, em 12 canções, uma ainda é em inglês. Não resistiu?
Pois é! Não era minha intenção que ela entrasse no disco. Eu tinha feito essa música [“I love you”] há um tempo e achava-a muito bonita. O Marcelo [Camelo] adorava a música, o Marcos Preto, que fez a direção artística, também adorava, e eu gostava muito, então ela acabou ficando. É quase um alien no disco. Mas isso também reforça o conceito de que o que vale é uma grande música. Se só tivesse grandes músicas em inglês, paciência. Calhou ser a maioria em português.
Na verdade é um disco muito brasileiro. A música “São Paulo”, segundo percebi, é uma das que gosta mais. É tudo saudades de casa?
Essa música tem muito de saudade, sim, mas também tem muita reafirmação. Eu sou de São Paulo e nunca tinha visto como São Paulo me influenciava tanto. Só vi isso quando saí de lá. Sou muito paulista e não sabia. Comecei a ver em São Paulo grande parte da minha identidade, criei uma paixão pela cidade que eu não tinha. Gostava muito quando morava lá, claro, mas agora idealizo muito, até mais do que deveria. Identifico-me com a atitude urbana de São Paulo, com a pulsação da cidade, com a diversidade, é uma cidade muito intensa. E ao mesmo tempo é uma cidade muito ferida, amachucada. Eu sinto-me exatamente assim. A cidade representa exatamente aquilo que eu sinto. Mais do que outras cidades que às vezes são mais alegres e solares — eu sou alegre e solar mas também “tenho as minhas cicatrizes”, como diz a música, tenho o meu estofo, a minha selva de pedra.
E em Lisboa não “tem bolo e café por 2,30”?
Sabe que por acaso quando cantei isso a primeira vez, o pessoal da gravadora perguntou-me logo, a brincar, onde é que era esse sítio em São Paulo onde eu encontrava bolo e café por 2,30 [reais]! Porque é muito barato para os parâmetros do Brasil hoje em dia. Também é verdade que fiz essa música faz tempo, por isso 2,30 não era tão absurdo assim. Encontrei esse preço numa vendedora de rua, daquelas que fazem os bolos em casa e vendem no porta-mala do carro. Vi-a no centro de São Paulo, e é disso que eu gosto. É nesses ambientes que eu me sinto bem. Sinto-me melhor ali do que estar num jardim cheio de rosas. Gosto de estar ao lado da senhora que faz o bolo e ao lado de quem come o bolo. Ao lado das pessoas. Não me identifico tanto com uma vida romântica, doce demais. Eu gosto da vida real. O 2,30 representa esse drama e esse privilégio ao mesmo tempo.
Já vive em Lisboa há cerca de quatro anos. Consegue encontrar esse ambiente aqui? Sente-se lisboeta ou ainda turista?
Em Lisboa é super normal encontrar bolo e café por 2,30, para início de conversa! Eu adoro Lisboa, para ter uma noção até já consigo andar por aí sem o Google Maps…
Porque é que vieram, em primeiro lugar?
Foi uma junção de fatores. Primeiro porque gostamos muito de Lisboa e de Portugal e queríamos viver essa experiência, temos muitos amigos aqui. É tão simples quanto isso, queríamos viver a experiência. Depois, como a nossa profissão nos permite, e como naquele momento a nossa família nos permitiu isso, então calhou assim. E tem sido incrível. A partir de agora passei a dividir-me mais, passei a viver meio cá, meio lá. Mas eu adoro isto aqui. Consigo descansar, é muito calmo. Aliás, é a quantidade perfeita. Adoro passear no Rato, no Príncipe Real, gosto daquela confusão, e também fui descobrindo outros bairros, os Anjos, por exemplo. Gosto de alguma confusão. Sair do triângulo da confusão, do centro, é que já fica demasiado calmo para mim.
“Eu adoro isto aqui em Lisboa. Consigo descansar, é muito calmo. Aliás, é a quantidade perfeita. Adoro passear no Rato, no Príncipe Real, gosto daquela confusão”.
Então quer dizer que vai deixar Lisboa aos poucos. Vai passar a dividir mais o tempo entre cá e lá. Porquê?
Porque assim consigo casar duas necessidades minhas, a profissional e a pessoal. O que acontece é que eu quando vou para o Brasil vou só em trabalho, e isso também não resolve o meu problema. A minha ideia é dividir-me mais para poder saciar esses dois desejos enquanto ainda consigo, enquanto ainda posso levar a Luísa para todo o lado. Por enquanto ainda faço dela um pedacinho de mim, tenho de aproveitar. Depois ela já vai precisar de mais estabilidade e já vai ter vontades, já vai decidir se quer ficar no Brasil ou em Portugal, com o papai ou com a vovó. E tirando o custo da viagem de avião, dá para ir, pingar e voltar.
Quando está no Brasil sente saudades de Portugal?
Claro, é o clássico. Sinto saudades de cá quando estou lá. Sou muito feliz nos dois lugares, são felicidades diferentes mas complementares, por isso é que não consigo escolher um. Pelo meu espírito também não vejo grande necessidade de me privar de viver uma vida mais itinerante, então vou aproveitar e dividir.
Este álbum é o primeiro que grava em nome próprio, e com banda, desde que vive cá. Como é que isso a influenciou na música?
Esta questão da calma tem uma influência muito grande. Em Portugal eu sinto-me segura em vários aspetos, e não é só uma questão de violência, é também de firmeza das pessoas. Aqui consigo sentir-me firme. E isso é muito produtivo. É como quando vamos de férias e conseguimos compor muito mais. Acho que essa segurança favoreceu a construção desta minha nova confiança. Todo este meu poder de afirmação e auto-confiança nasce de uma situação de calma e de tranquilidade.
Qual é a imagem que acha que os portugueses têm de si?
Não faço ideia. Às vezes reconhecem-me na rua, e é curioso como cada um acha uma coisa. Cada um chega ao meu trabalho por um motivo diferente. Há gente que vem pela questão da música brasileira, outros que vêm pela música americana, pelo começo da minha carreira. Acho que ninguém vê o meu trabalho como muito exótico, as pessoas sentem-se próximas. Vejo que é um trabalho que faz sentido para as pessoas. Não ia gostar se sentisse que era estranho, e acho que não é estranho para os portugueses. Faz sentido para os portugueses, e isso é um privilégio para mim.
Tem algum artista português preferido?
Tenho vários! Gosto muito de Orelha Negra, até antes de conhecer o Fred [baterista da Banda do Mar]. Gosto dos Quais, adoro. Também comecei a ouvir mais fado, fiquei fã do Camané…
Gosta de cantar fado?
Acho que não canto bem! Temos de saber deixar para os profissionais. O fado não é uma música que uma pessoa canta à toa. Admiro muito sobretudo todas as cantoras de fado, acho que a mulher quando canta fado tem uma força, impõe um respeito… Mas a produção de música moderna portuguesa também é muito interessante. Há uma artista que eu gosto muito, a Ana Cláudia, que me deu aulas de canto. Ela produz uma música portuguesa muito interessante, sem limites, sem medos. Tem uma musicalidade muito autoral e com muitas referências da Europa, mistura música eletrónica com canção, é muito interessante.
Dizia ainda agora que há muita gente que se aproxima do seu trabalho pelo início da sua carreira, quando era muito menina, muito nova. Ainda não se conseguiu libertar dessa imagem?
Nem faço questão, nem quero. Às vezes nos meus shows ainda canto as músicas mais antigas, são lindas. Mas são em inglês e, lá está, as pessoas não cantam com tanta facilidade. Mas são músicas de que gosto muito, que criei quando era muito nova mas que ainda me fazem sentido. São músicas muito humanas. É curioso ver como naquela época eu já tinha uma questão humana muito presente, nada fútil. As questões que essas músicas levantam são questões legítimas que fazem sentido em qualquer idade, para qualquer pessoa. A voz também era muito aguda, de uma pessoa muito novinha, e hoje em dia quando as canto dou-lhes outra vida, outro significado.
“Hoje em dia já olho com mais distanciamento e maturidade para as críticas, ao ponto de saber que a pessoa que eu sou existe além da música”.
Quando começou dizia que não gostava da exposição pública, era muito tímida, mas no entanto sempre escreveu sobre si própria. As músicas eram, e ainda são, muito autobiográficas. Isso não é um contra-senso?
É terrível. Era muito chato, precisamente por causa disso. Era uma produção muito pessoal e auto-biográfica, ainda é, mas ao mesmo tempo para mim era muito assustador toda essa reação. Principalmente quando havia reações de raiva. Eu não conseguia entender. Hoje em dia já olho com mais distanciamento e maturidade, ao ponto de saber que a pessoa que eu sou existe além da música, então já consigo separar melhor as coisas. Mas ainda é muito assustador como algumas pessoas usam os artistas, as personalidades públicas, para expurgar dramas e coisas mal resolvidas da sua própria vida. Quando produzimos cultura, naturalmente aquilo vai encontrar um anteparo e as pessoas vão rebater. E cada pessoa é uma pessoa. É importante lembrar que quando a pessoa critica os outros ela está a falar mais de si do que propriamente do outro. Mas não digo que não seja difícil hoje em dia lidar com isso, e com os xingamentos. “Caramba, é uma música tão honesta, uma mensagem tão construtiva e positiva, e as pessoas respondem com raiva ou incompreensão…” Mas foco-me nas críticas positivas e bola para a frente.
Além da música também pinta, costura, gosta de ser autodidata e aprender japonês, aprender dança. Nunca está satisfeita?
Hoje em dia já não bordo, gostava muito. Para costurar também já tenho falta de tempo. Mas é mais bicho carpinteiro, como vocês dizem, do que outra coisa. Não consigo estar parada. Prefiro ter 30 coisas inacabadas do que não ter nem uma. Não me incomoda começar uma coisa e parar a meio. Prefiro isso do que não começar nada. É mais por essa hiperatividade do que por uma qualquer aflição mais profunda. Quando acabo de costurar uma roupa ou quando faço um bordado fico muito satisfeita, penso que está lindo.
É muito perfecionista?
Nunca fui muito. Não sou essa pessoa. Na minha produção sou perfecionista quando se trata de uma questão de eficácia quotidiana. Por exemplo, odeio atrasos, odeio chegar atrasada. É curioso porque não me incomodo se as pessoas chegarem atrasadas, honestamente, mas se eu chego atrasada fico dececionada comigo mesma. Não gosto de desperdiçar comida também, é uma coisa que me incomoda muito. Se uma coisa ficou na geladeira e eu não tive tempo de descongelar, incomoda-me! São essas coisinhas do dia a dia, que para mim são quase como se eu não conseguisse honrar os meus princípios. E os meus princípios são esses: o respeito ao próximo, a pontualidade, e ser uma boa pessoa, ser honesta. Se alguma coisa foge do trilho nesse sentido isso incomoda-me, mas na produção artística não tenho esse perfeccionismo.
“Desde que sou mãe sinto-me mais selvagem, mais conectada com as possibilidades do ser humano como bicho. A maternidade muda isso, ficas mais pantera”
Mudou muita coisa nos últimos anos. Além de se ter mudado para Portugal, casou, foi mãe. Diz que tem muita facilidade em compor, mas como é que foi esse processo durante a gravidez e nos primeiros tempos depois do nascimento da filha? Mudou a forma como olhava para a música?
Muda muito, é impressionante. A gravidez intensifica bastante os sentimentos. E isso é ótimo para compor. É muito útil, bastante fértil. Eu já compunha muito e a gravidez, tanto durante como depois, aguçou os meus sentidos. É que além do estímulo fisiológico também aprendi a aguçar esses sentidos. Por isso, mesmo depois de o estímulo fisiológico cessar sei que ainda consigo alcançar aquelas ferramentas. Por exemplo, agora já faz um ano e meio que tive a bebé, acho que já não tenho as hormonas do pós-parto, mas mesmo assim sinto que quando é necessário consigo ativar em mim sentidos que antes não tinha. Sinto-me mais selvagem, mais conectada com as possibilidades do ser humano como bicho, sinto-me mais capaz como animal do que era antes. A maternidade muda isso, ficas mais pantera. E isso ajuda muito na confiança também: ver que o teu filho está bem é fantástico, e isso dá uma confiança… Sentes-te a melhor pessoa do mundo. É uma confiança que acho que só se consegue mesmo com a maternidade.
Fala de forma muito madura, mas só tem 24 anos. Qual é segredo?
Sinto-me bem mais madura, sim, mas acho que sempre me senti um pouco assim. Essa coisa da maturidade é bem legal e tal, mas também não é toda essa coca-cola de que falam. É ótimo, sinto-me orgulhosa disso. Mas também olho para as pessoas mais despreocupadas e é ótimo também. Essa história de ser a zeca madurinha não é assim tão boa. Essa irreverência, esse lado de criança também é preciso trazer à tona. E ainda bem que a Luísa [a filha] agora, sendo uma criança, também acende esse lado em mim. Esse lado de brincadeira e de leveza.