Estávamos em maio de 2018. Vésperas do XXII Congresso do Partido Socialista, que ficou marcado por uma ligeira mas mediática clivagem ideológica entre a ala esquerda liderada por Pedro Nuno Santos e a ala direita cujo protagonista foi Augusto Santos Silva. Mas nem todos os socialistas estavam preocupados com os debates ideológicos.
Por exemplo, Joaquim Couto, presidente da Câmara de Santo Tirso, e Manuel Pizarro, presidente da poderosa Federação do Porto do PS e há dias eleito eurodeputado na lista socialista ao Parlamento Europeu, estavam focados em convencer o Governo a alterar a lei que impedia a recondução de José Maria Laranja Pontes como presidente do Instituto Português de Oncologia (IPO) do Porto. Enquanto Pizarro garantia que havia disponibilidade dos ministros das Finanças (Mário Centeno) e da Saúde (Adalberto Campos Fernandes) para alterar a lei e assegurava que já tinha pedido uma primeira redação da alegada nova norma, Couto queria que o líder do PS Porto, juntamente com Luísa Salgueiro (presidente da Câmara de Matosinhos), falasse diretamente com o primeiro-ministro António Costa sobre esse assunto durante o Congresso.
Laranja Pontes, por seu lado, não só estaria a par de todas as manobras como já tinha avisado o presidente da Câmara de Santo Tirso que a sua saída do IPO do Porto levaria inevitavelmente ao fim da relação comercial que aquele hospital público tinha com as empresas de comunicação de Manuela Couto, a mulher do autarca.
Estes são alguns dos indícios que o Ministério Público (MP) e a Diretoria do Norte da Polícia Judiciária (PJ) apresentaram aos arguidos durante os primeiros interrogatórios e são uma parte da fundamentação dos alegados crimes de corrupção que são imputados pelo MP a Joaquim Couto, à sua mulher Manuela Couto e a Laranja Pontes no âmbito da Operação Teia.
O plano para influenciar António Costa
No centro de um dos três crimes de corrupção ativa imputado ao casal Couto, assim como do crime de corrupção passiva de que Laranja Pontes é suspeito, está a questão do mandato do presidente do IPO do Porto. Líder deste hospital público desde 2005, e em gestão corrente desde o início de 2017 depois de quatro mandatos cumpridos, o lugar de Laranja Pontes estava em perigo por causa do novo regime jurídico das Entidades Públicas Empresariais do Serviço Nacional de Saúde aprovado pelo Governo de António Costa num Conselho de Ministros Especial organizado em Coimbra. De acordo com o decreto-Lei n.º 18/2017, os membros dos conselhos de administração passaram a ter um mandato de três anos e apenas poderiam ser reconduzidos uma vez. Isto é, com a entrada em vigor do decreto-lei em janeiro de 2017, Laranja Pontes não poderia ser reconduzido.
Autarca de Santo Tirso recebeu 40 mil euros de empresas da mulher que ajudava a promover
Contudo, a interpretação jurídica não era unânime. Laranja Pontes, que queria continuar à frente do IPO do Porto, tinha um parecer jurídico que defendia que a lei não podia ter uma aplicação retroativa — logo, os quatro mandatos que já tinha cumprido não podiam contar para efeitos da limitação imposta por uma lei que entrou em vigor em janeiro de 2017. Mas no Ministério da Saúde liderado por Adalberto Campos Fernandes havia juristas que defendiam o contrário.
Uma das possíveis soluções para este imbróglio encontra-se nos autos da Operação Teia. Tal como o Observador já noticiou, a PJ do Porto suspeita que Laranja Pontes terá procurado a influência de Joaquim Couto, um autarca socialista histórico e dirigente nacional do PS, junto do Governo socialista para ser reconduzido como presidente do Conselho de Administração do IPO do Porto. Amigos desde o tempo de estudo na Faculdade de Medicina, Pontes tinha confiança com Couto. O que não se sabia é que Couto terá recorrido a Manuel Pizarro, ex-secretário de Estado da Saúde e presidente da Federação do Porto do PS, para tentar influenciar o Governo e até alegadamente o próprio primeiro-ministro António Costa.
Ao que o Observador apurou, Manuel Pizarro e Joaquim Couto tiveram diversos contactos sobre a melhor forma de Laranja Pontes ser reconduzido pelo Governo de António Costa. Terá sido precisamente o médico e gestor que terá incentivado Couto a falar com Pizarro, de forma a que estes dois falassem com o primeiro-ministro António Costa durante o XXII Congresso do PS que decorreu entre 25 e 27 de maio de 2018. Couto, por seu lado, lembrou-se de juntar o próprio Pizarro com Luísa Salgueiro, presidente da Câmara de Matosinhos, e José Luís Carneiro, secretário de Estado das Comunidades e ex-autarca de Baião, a essa task-force em prol de Laranja Pontes.
O próprio Joaquim Couto pensou numa linha de argumentação para usar junto de António Costa que passava por recordar que, aquando da imposição da limitação de três mandatos aos autarcas, ficou definido que a contagem só se iniciava a partir da entrada em vigor da lei — não contando, assim, com os mandatos que já tinham sido cumpridos. Couto dava mesmo o exemplo do ‘dinossauro autárquico’ Mesquita Machado, eleito pela primeira vez em 1976 e que se recandidatou nas eleições autárquicas de 2009, três anos após a entrada em vigor da lei.
Na realidade, a própria lei da limitação dos mandatos estipulava que quem já tivesse cumprido três mandados consecutivos à data da entrada em vigor da lei poderia recandidatar-se a um último mandato.
Já Laranja Pontes juntava mais um argumento: o Conselho de Ministros liderado por António Costa tinha reconduzido um vogal da administração da ADSE por razões excecionais quando o mesmo já tinha atingido a limitação de mandatos.
Os contactos com António Costa, contudo, não terão ocorrido. Nem Luísa Salgueiro (autarca próxima de Costa), nem José Luís Carneiro se terão disponibilizado para falar com o primeiro-ministro.
Essa pressão junto do Governo terá sido ponderada por Laranja Pontes e por Joaquim Couto no contexto em que Pontes terá recordado a Couto que o fim do seu mandato levaria inevitavelmente à saída das empresas de Manuela Couto dos fornecedores de serviços daquele hospital público. Dito de outra forma: deixaria de ser contratada.
Fonte da defesa de Laranja Pontes enfatiza, contudo, que a definição da política de comunicação de uma instituição como o IPO do Porto é da exclusiva competência do Conselho de Administração. Por exemplo, foi Laranja Pontes quem decidiu retirar a imagem do caranguejo do logotipo do IPO do Porto, de forma a acentuar uma mensagem de esperança. “Cessando o mandato da administração do IPO, poderia cessar a relação da Mediana [a empresa de Manuela Couto] com o IPO, isto porque a administração seguinte poderia, legitima e naturalmente, não partilhar a mesma estratégia ou visão de futuro sobre a comunicação. Tal não implica que haja qualquer favor ou vantagem concedido à Mediana”, argumenta.
A mesma fonte diz ainda que o facto de uma parte dos contratos adjudicados pelo IPO do Porto às empresas de Manuela Couto não ter respeitado os limites para os ajustes diretos estipulados pelo Código dos Contratos Públicos é uma “irregularidade formal” que é um “fenómeno transversal na contratação do IPO com os seus fornecedores, que foi debelado assim que diagnosticado e que se justifica pela menor agilidade dos serviços em acolher as alterações legais no procedimento de contratação pública.” Isto é, não houve, no entendimento da defesa de Laranja Pontes, nenhum favorecimento a Manuela Couto.
A promessa de Manuel Pizarro e o “jerico” Adalberto
Após o Congresso do PS, contudo, novas manobras surgiram. Joaquim Couto e Manuel Pizarro, por exemplo, analisaram um ponto relevante: os serviços do IPO do Porto tinham produzido um memorando em que defendiam que Laranja Pontes ainda não tinha atingido o limite dos mandatos estipulado por lei e que podia ser reconduzido. O Ministério da Saúde liderado por Adalberto Campos Fernandes, contudo, entendia o contrário.
Foi neste contexto que Manuel Pizarro, também ele médico, terá assegurado a Joaquim Couto que havia disponibilidade do ministro das Finanças (Mário Centeno) e do ministro da Saúde (Adalberto Fernandes) para alegadamente promoverem uma alteração à lei que o próprio Governo do PS tinha aprovado. Tal alegada alteração consistiria numa alteração cirúrgica que permitiria ao Conselho de Ministros nomear a título excecional um gestor hospitalar que eventualmente já tivesse atingido a limitação de mandatos.
Ao que o Observador apurou, para Joaquim Couto, político com mais experiência do que Manuel Pizarro, tudo se resumia a uma questão de vontade política e de necessidade de resolver um problema — tanto que Laranja Pontes estava em gestão corrente desde que a lei de limitação dos mandatos dos gestores hospitalares tinha sido aprovada. O problema, contudo, era o “jerico” (sinónimo de burro) Adalberto Campos Fernandes, garantia Manuel Pizarro.
Ao que o Observador apurou, Manuel Pizarro também terá contactado o próprio Laranja Pontes. O então ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes, terá sido apontado por ambos como o homem que estava a dificultar a solução para a recondução do líder do IPO do Porto.
Todos estes pormenores fazem parte, ao que o Observador apurou, da fundamentação dos indícios de corrupção ativa com que Joaquim e Manuela Couto foram confrontados, assim como os indícios de corrupção passiva imputados a Laranja Pontes. Manuel Pizarro não é arguido nos autos da Operação Teia.
Confrontado com estes factos pelo Observador, Manuel Pizarro diz desconhecer “qualquer aspeto relacionado com a Operação Teia” para além do que tem sido descrito pela comunicação social e assegura: “Não tive nenhuma participação, direta ou indireta, em nenhum desses acontecimentos”, lê-se numa declaração escrita enviada ao Observador pela assessoria de imprensa da Federação do Porto do PS.
Confrontado com estas informações, Mário Centeno garantiu através da assessoria de imprensa do Ministério das Finanças que “nunca falou com o dr. Manuel Pizarro sobre as matérias enunciadas.” Seguindo a “prática habitual de não comentar processos judiciais em curso”, fonte oficial das Finanças nada mais disse.
Já de acordo com fonte próxima de Adalberto Campos Fernandes, a alteração legislativa prometida por Manuel Pizarro nunca foi ponderada ou sequer equacionada pelo Ministério da Saúde. “Isso não tem pés nem cabeça”, enfatiza, visto que “a lei da limitação de mandatos nas Entidades Públicas Empresariais do Serviço Nacional de Saúde foi uma iniciativa do nosso gabinete.”
A mesma fonte assegura que Adalberto Campos Fernandes nunca terá sido contactado por Manuel Pizarro.
Na Secretaria-Geral do Ministério da Saúde existiam, de facto, dúvidas jurídicas sobre se Laranja Pontes já tinha alcançado a limitação de mandatos. Os próprios juristas do ministério não se entendiam sobre isso. A opção por deixar Laranja Pontes em gestão corrente derivava dessas dúvidas, mas também da avaliação positiva unânime que era feita do trabalho daquele médico/gestor à frente do IPO do Porto.
Na realidade, os resultados clínicos do IPO do Porto superavam em áreas-chave o IPO de Lisboa e comparavam de forma superior com os melhores hospitais públicos e privados do país.
É importante enfatizar que, na atual fase de inquérito, o Ministério Público apenas tem a obrigação legal de apresentar indícios de alegadas práticas criminais que imputa aos arguidos. Ou seja, com a evolução da investigação, e o contraditório do juiz de instrução e das diferentes defesas, os indícios poderão ser abandonados ou solidificados.
O aviso de Joaquim a Manuela Couto
Certo é que Laranja Pontes tentou avisar Joaquim Couto de que a sua saída poderia fazer com que as empresas de Manuela Couto corriam o risco de deixar de ser contratadas pelo IPO do Porto. Colegas do curso de medicina e do estágio no Hospital de Santo António (Porto), Pontes e Couto eram amigos desde há muitos anos. Daí que o autarca de Santo Tirso tenha levado este alerta a sério e avisado a sua mulher para o risco que existia.
Nessa altura, em maio de 2018, as empresas de Manuela Couto ainda estavam à espera de assinarem mais dois contratos com o IPO do Porto, nomeadamente um concurso público para a construção de um site e outro contrato para assessoria de comunicação.
De acordo com as listagens dos contratos assinados entre a Mediana e o IPO do Porto, a empresa de Manuela Couto ganhou mais 12 adjudicações entre maio e novembro de 2018 de serviços de consultoria de imagem, marketing e até na construção de sites. Total dos contratos adjudicados: cerca de 325 mil euros.
Manuela Couto chegou a falar com Laranja Pontes, tendo este insistido que Joaquim Couto, Manuel Pizarro e José Luís Carneiro teriam alegadamente prometido que iriam falar com o primeiro-ministro António Costa. O próprio autarca de Santo Tirso terá aconselhado a sua mulher a explicar a Laranja Pontes que Luísa Salgueiro e Pizarro estariam a acompanhar a situação com “o Costa”.
O Observador contactou igualmente Nuno Brandão, advogado de Joaquim e Manuela Couto, mas o advogado e professor universitário não quis prestar declarações.