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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Manuela Viegas realizou apenas um filme, mas fez os dos outros acontecer: "Quem é que hoje ainda entra na noite do cinema?"

"Glória", de 1999, foi restaurado e volta a ser projetado. Falámos com a cineasta que fez história enquanto montadora — sobre o público, os livros nos filmes e o cinema como estudo que nunca termina.

Manuela Viegas fala devagar, com tempo, com um certo mistério de quem, independentemente da idade, mantém a juventude preservada. A cafetaria da Cinemateca ainda não abriu, portanto encontramo-la no andar de cima de uma pastelaria na vizinhança. A montadora principal dos anos 80, com quem muitos cineastas portugueses trabalharam, de Pedro Costa a Teresa Villaverde, está agora jubilada. Durante muitos anos deu aulas no curso de Montagem da Escola de Cinema e Teatro de Lisboa. Fala devagar, com tempo, porque fez carreira a pensar no trabalho próprio e no dos outros, a descobrir o cinema, em permanente diálogo dentro dos filmes. A única longa-metragem que realizou, Glória (1999), vai voltar a estar nas salas de cinema depois de ter sido restaurado ao abrigo do programa europeu A Season of Classic Films da Associação das Cinematecas Europeias. Esta quarta-feira, dia 30 de outubro, terá uma sessão especial no Centro Cultural Gil Vicente, no Sardoal (local onde o filme foi rodado) onde será apresentada a nova cópia digital restaurada, com a presença da própria Manuela Viegas. Está ainda a ser desenhada uma estreia nacional a acontecer em 2025.

Glória é uma história que vem do Sardoal, nos anos em que o cavaquismo alcatroou meio Portugal e “afastou” comunidades industriais, pintadas pelo carvão e os caminhos de ferro de uma ideia de progresso do país. O filme centra-se num pequeno eixo familiar através do ponto de vista de duas crianças, Ivan e Glória, a quem a violência do que lhes terá acontecido choca com o florescer da descoberta daquele lugar, onde a floresta esconde um rio de todas as possibilidades. Sabemos que algo de trágico aconteceu, porque o pai de Ivan vive atormentado, com mãos feridas que seguram (muitas vezes) um copo de vinho. E o irmão, prestes a partir, tenta esconder um lado mais sinistro. Sabemos que há detalhes naquelas relações difíceis de explicar. Trata-se de um filme “radical”, como a própria garante. “O lado radical tem a ver com o ritmo do filme, com a ideia de intervalo no cinema. Não há um fio condutor, não há explicações, mas há intensidade, a procura de algo intenso”, conta.

Foi o primeiro filme português a entrar num dos festivais de cinema mais prestigiados da Europa, a Berlinale. A seguir, Manuela Viegas nunca mais voltou a realizar. Não há mágoas, só frustração por ser tão difícil cumprir a função. A ideia de intervalo que quis colocar neste filme, que torna difícil perceber qual o fio condutor e para onde devemos ir enquanto espectadores, vai beber às referências que vêm, sobretudo, da literatura: William Faulkner, Flannery O’Connor ou Clarice Lispector. A montadora procurou, tal como ainda procura, o lado mais irracional da vida. Aquele que faz mais perguntas do que dá respostas. “Essa irracionalidade, de algum modo, torna mais visível o ponto de vista, que é o das crianças já crescidas, mas que não são adultas. Não me senti posta de lado a seguir a este filme. Não tenho propensão para fazer balanços desse tipo. O ‘estar de lado’ não é um sítio mau para se estar. Ir trabalhando, descobrindo filmes dentro dos projetos, dá-me entusiasmo.”

Apesar de estar reformada, Manuela Viegas voltou a “arregaçar as mangas” para trabalhar neste filme. Nota-se na forma como fala hoje que o entusiasmo é o mesmo da primeira vez. Esteve numa sala com outros montadores, na tal experiência semelhante a “entrar na noite”, a corrigir a cor, puxar o brilho do filme, mas sem alterar a história, recuando ou avançado no tempo, possibilidade só garantida nesta última fase de produção. “Na montagem faz-se uma noite, entramos e concentramo-nos, é tremendo. Na rodagem é preciso dar resposta a tudo com um grande risco. Quando estava no décor, estava morta por ir para a montagem”, revela. Glória chega numa altura difícil para o cinema português, onde os espectadores nacionais parecem cada vez mais divorciados das salas de cinema. Contudo, a também realizadora acredita que o mundo de oportunidades que o seu filme abriu pode manter o diálogo, aproximar o cinema de uma ideia de comunidade, experiência tão querida para tantos cinéfilos. “A sala de cinema praticamente não existe. As salas de festivais enchem-se de gente com vontade de estar em comunidade. O cinema cria-as. As pessoas estão a ver cinema de outra maneira, já não existe a noite experiencial. Acho que o Glória tem uma ligação com essa ruína, da noite do cinema. O filme já não é um todo. Há algo que rasga, que chateia por não o ser. Porque esse todo já não é possível.” Ou será?

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[trailer oficial do filme “Glória”, de Manuela Viegas:]

Portugal tem feito um trabalho de restauro, através do Plano de Recuperação e Resiliência, no que diz respeito ao cinema português. Gostou de voltar ao seu único filme? Pode este Glória ter uma vida nova?
É uma solução importantíssima para a preservação dos filmes, sobretudo para os que foram feitos em película. Quando voltei a ver este filme, houve um misto de sensações que têm um travo estranho. Algumas das pessoas que entraram no filme desapareceram, o que muda o sabor da experiência, o tom. Mas claro que é maravilhoso estar nos estúdios a restaurar as imagens, tenho acompanhado muito e matou-me as saudades da montagem. A sensação que tenho ao rever o Glória é que, primeiro, confirma-se o princípio de que o lado experiencial do cinema é muito importante. O que é um filme fora da deontologia? Em cada fase deste filme, e também da fase política, o filme experimenta-se de maneiras diferentes. É bastante radical. Parece-me ainda mais radical. Há um brilho na imagem. Numa primeira fase de grading de cor, tentámos recuperar a experiência que tinha tido quando vi a primeira cópia em película. Foi impressionante, porque deixámos os sais de prata, trouxemos um lado de carvão, que se relacionava com os metais, os caminhos de ferro, as estações de comboio. Agora, no digital, tentámos recuperar essa imagem que era, ao mesmo tempo, densa e transparente.

Todo esse restauro muda a história? Em 1999, disse que este era um filme “cheio de oportunidades”, de caminhos.
Quando o filme foi exibido, disse que era muito fragmentado, por haver uma ideia de intervalo na montagem do filme, que é muito definidora. Há planos — não da história — em que tinha pensado e não tinha dado tanto conta, não eram tão legíveis como agora. Por exemplo, o filme, de repente, tem um lado de brilho que não foi apagado, que traz ao de cima a irracionalidade que domina os comportamentos das personagens. É muito irracional. Essa irracionalidade, de algum modo, torna mais visível o ponto de vista, que é o das crianças já crescidas mas que não são adultas. É um mundo de medos, de desejos. Esse lado já existia. O brilho associado a um mundo sem explicação onde as crianças se movem com muito à vontade.

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Mas de onde vem essa vontade de explorar o irracional?
Este filme tem as características de ser uma primeira vez e as referências estavam relacionadas com livros. Vem do William Faulkner, por exemplo, e de outros autores da minha adolescência. Da Flannery O’Connor, muito violenta, mas terna. De haver violência e ternura nas personagens. Entretanto, também surgiram outros autores mais divulgados, que escreveram sobre uma luta perdida, mas da qual não se desiste, muito presente nos westerns. A Clarice Lispector também lá está. Procuram não a explicação, mas o encanto e o fascínio do inexplicável. Falando de cinema, também existem origens não em realizadores, mas em detalhes de certos filmes. Um fotograma, por exemplo. Encontrei um fotograma de um camponês no seu cavalo escanzelado, num livro que tinha a legenda de um filme do Dovjenko: “Ivan, não estás a bater onde é preciso”. A ideia de que a violência não se exerce no objeto em si, no que é certo, mas ao lado. Muitas vezes, inspirei-me em cenas que podem ser de filmes de série B, também. Há um gesto do filme Pursued [em Portugal Núpcias Trágicas, de 1947], de Raoul Walsh, de uma criança que está a ser arrastada para fora de casa e não quer sair. Estes gestos levam-nos a sonhar à volta disto.

"Acabei por seguir um caminho paralelo, que foi o de ser professora na Escola Superior de Cinema e Teatro, e aí comecei a envolver-me intensamente e profundamente com o meu filme e com os filmes dos outros. Gosto mesmo de estudar e de ler. Optei por uma vida igualmente intensa, mas dedicada aos trabalhos dos outros. Não vejo grande diferença entre trabalhar no meu filme e com os dos outros."

Foi difícil deixar de pensar como montadora?
Nunca deixei, de facto. Na rodagem estava morta por chegar à montagem. Queria ter coisas para depois pensar e montar. Penso com algum atraso em relação aos acontecimentos, por isso é que gosto imenso da montagem. É um trabalho de reserva em que se pode recuar ou avançar. E isso é feito com imensa alegria mas também muitas angústias. Durante a rodagem, por vezes, andei às aranhas. Perdida, sem saber o que estava ali a fazer. Foi feita com uma equipa muito grande, todos impecáveis.

Foi difícil?
Sim, muito. E isso fica no filme. Andámos com uma câmara de 35 milímetros, mais todos os equipamentos e equipa, a subir um rio, as escarpas, andámos pelo rio Zêzere e também pelo rio Tejo. Instalámo-nos lá, levantávamo-nos às cinco da manhã. Os habitantes ficavam surpreendidos. Era arregaçar as mangas e ir. Mas estas são as dificuldades da vida. Senti-me perdida com toda a máquina e não me consegui concentrar. Na montagem faz-se uma noite, entramos e concentramo-nos, é tremendo. Muito bom. Na rodagem é preciso resposta para tudo. Decisões no momento, tudo muito rápido com um grande risco. Havia uma certa dispersão de muitos problemas para resolver e pouco tempo para a concentração. Mas também outros onde estávamos muito organizados. A violência do decór e o ritmo de, pontualmente, conseguir uma grande concentração, acho que ficou no Glória.

Em que cenas?
A maior cena, muito forte de filmar e onde se notou essa intensidade, foi entre o irmão mais velho e a personagem da Glória, com o gato, no sótão. A equipa, normalmente muito grande, de repente, ficou virada para ali. Toda a gente ficou em absoluto silêncio. Foi fruto do acaso, ao mesmo tempo. Não era intencional. Criou-se uma cápsula temporal em que a equipa toda ficou vidrada para ali. Quando chegávamos ao silêncio concentrado sabíamos que tínhamos chegado a algum lado, e que seria útil na montagem.

Porque é que o descreve como um filme radical?
Vemos um país a duas velocidades, uma com a ideia de progresso e desenvolvimento e outra que coloca em causa esse mesmo progresso, porque não sabemos onde nos leva. Estamos a falar da era de Cavaco Silva. De fazer estradas para se chegar mais rapidamente ao destino, mas deixando “de lado” muitas outras comunidades, cada vez mais isoladas. Ao mesmo tempo, essas comunidades usam multibanco, portanto, há, de facto, várias velocidades. O lado radical tem a ver com o ritmo do filme, com a ideia de intervalo no cinema. Não há um fio condutor, não há explicações, mas há intensidade, há a procura de algo intenso. Mas muito já aconteceu antes. Há um contexto. O território da ficção está criado onde as crianças se movem. A câmara vai para aí e é quase instintiva. O estar ali ou aqui não é pedido pela lógica dos acontecimentos. Porque ou já se deram ou vão-se dar num futuro próximo. Não sabemos a causalidade, não há um fio que nos dê muito consolo quando nos apropriamos dele. Mudámos o nome da estação, por exemplo, para Santiago, quando na verdade estávamos em Belver. O radical convoca uma liberdade de ação, não onde o sossego nos pode chegar, mas onde está a inquietação.

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Inquietação que também passa o público.
Sim, bastante. Gostava que a irracionalidade não viesse como manifesto, mas como um recuo mais modesto perante os acontecimentos. Este filme também é radical porque há uma certa violência nesse lado intervalar.

Glória é o primeiro filme português a entrar na Berlinale, festival internacional de cinema em Berlim. Como foi?
Foi muito bom. Tinha acabado de entrar num certo ritmo de falar sobre o filme, um hábito de o apresentar e entrar em diálogo com as pessoas. Foi muito produtivo. Em Berlim, tudo aconteceu com normalidade, alguns contactos, mas nada de especial.

Apeteceu-lhe voltar a estar aos comandos de um filme?
Imediatamente a seguir, mas é muito complicado. Acabei por seguir um caminho paralelo, que foi o de ser professora na Escola Superior de Cinema e Teatro, e aí comecei a envolver-me intensamente e profundamente com o meu filme e com os filmes dos outros. Quando entrei para a escola, ainda tudo era feito em película de 16 milímetros. Tinha muita experiência nesse tipo de montagem e fui-me interessando pela parte teórica, em aulas da teoria da montagem. Comecei também a estudar mais. Gosto mesmo de estudar e de ler. Optei por uma vida igualmente intensa, mas dedicada aos trabalhos dos outros. Não vejo grande diferença entre trabalhar no meu filme e com os dos outros.

"Olhando para o meu caos de vida, os anos 80 foram muito fortes, porque me envolvi com primeiras obras. Montei o que havia para montar. Tudo o que possa imaginar. É como trabalhar com os filmes dos alunos, ver algo a aparecer, em vez do reconhecimento daquilo que já se conhece, que segue determinadas normas."

Mas porque não voltou a filmar? Sente que foi posta de lado?
O Glória teve, apesar de tudo, uma saída, foi mostrado em imensos lugares. Viajei muito. Depois, com a minha entrada na Escola, não podendo ter soluções para financiar um segundo filme, tendo projetos em mão, continuei o diálogo com o filme, a propósito das suas imagens, dos sons e da sua organização. Ouvir as pessoas, encontrar o filme que está lá dentro, saber o que cada um quer fazer. As descobertas são maravilhosas. Não me senti posta de lado. Não tenho propensão para fazer balanços desse tipo. O estar de lado não é um sítio mau para se estar. Ir trabalhando, descobrindo filmes dentro dos projetos, dá-me entusiasmo. Claro que há alguma frustração, é bom concretizar-se aquilo em que se pensa. No cinema, gosto do lado de composição entre algo físico, de arregaçar as mangas e ir para o trabalho e a imaginar o que poderá ser. Por vezes, só descobrimos isso muito depois de fazer um filme. Só agora percebo algumas coisas sobre outros projetos em que estive. Porque nunca há propriamente um final.  Não há mágoas.

Qual seria a história a contar depois de Glória?
Não sei, seria pegar em algumas destas personagens. O que me atrai está, muitas vezes, nos livros. Pequenos contos maravilhosos de Anton Tchekhov, por exemplo, com elementos praticamente infilmáveis. Como seria chegar a este decantamento tão fabuloso?

Quase como um laboratório?
Sim, sim. Mas não seria um laboratório cinematográfico mas de transposição entre domínios. Do conto para a imagem. É fascinante. Tem tudo a ver com montagem. Sempre.

Pedro Costa, Teresa Villaverde, Manuel Mozos, João Botelho, António Pedro Vasconcelos, João César Monteiro. Trabalhou por vários nomes importantes do cinema português. Quando é que percebe que vai inscrever o seu próprio nome nesta história?
Parte da Escola de Cinema em Lisboa. Sou do Porto, estudei Economia primeiro. A seguir vim para aqui, estudei dramaturgia, estava tudo ligado aos professores que se transformam sempre em figuras com influência. Olhando para o meu caos de vida, os anos 80 foram muito fortes, porque me envolvi com primeiras obras. Montei o que havia para montar. Tudo o que possa imaginar. É como trabalhar com os filmes dos alunos, ver algo a aparecer, em vez do reconhecimento daquilo que já se conhece, que segue determinadas normas.

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É onde está esse lado radical?
Exatamente. Aconteceu na altura em que o Instituto do Cinema e Audiovisual teve mais possibilidade de financiamento para primeiras obras. Aprendi bastante. O ritmo do trabalho físico, a ligação do filme ao mundo. Era uma questão de afinidades, porque éramos amigos, fazíamos o guarda-roupa, escrevíamos uma cena para determinado filme. Também aconteceu com o Alberto Seixas Santos, personagem que admiro muito, montei o seu Gestos e Fragmentos. Tudo em película. Também usei o [software] Avid mais tarde, claro, mas sem grande responsabilidade na finalização. Nunca fui muito responsável por finalizar os trabalhos que já envolviam o digital.

Alguma vez teve uma “montagem impossível”?
Não. É partir do princípio que a imperfeição faz parte do trabalho e que  há um acréscimo do que foge ao nosso controlo. É que esse acréscimo é que contém a parte artística. Numa primeira montagem do Glória, que fui eu que montei com todos os riscos que isso acarretou, deitei fora tudo o que não gostava. Ficou um jardim de pedra, muito mais radical do que o filme é agora. Pedras umas ao lado das outras. Tirei tudo o que não prestava. Só que depois tive de ir buscar essas partes outra vez. De aceitar que a imperfeição faz parte. Acrescenta sentido nas artes.

O realizador Miguel Gomes disse recentemente que o nosso cinema vive em crise, mas também é isso que lhe dá liberdade. O que lhe parece?
Havendo crise, está do lado do lugar do espectador. Do lado da criação e da produção, não há crise nenhuma. Há imensa vitalidade. Temos as mulheres, agora. Trabalhar em cinema não é só realizar. É escrever, fazer o som, a fotografia. A sala de cinema praticamente não existe. Existem as cinematecas. As salas de festivais que se enchem de gente cheia de fome, sede e vontade de estar em comunidade. O cinema cria comunidades. De pertencerem a algo. As pessoas estão a ver filmes de outra maneira. Já não existe a noite experiencial do cinema. Acho que o Glória tem uma ligação com essa ruína, a da noite do cinema. Viver o cinema como um todo. O filme já não é um todo. Há algo que rasga, que chateia por não ser esse todo. Porque esse todo já não é possível.

"O que tem acontecido é que hoje o espectador está numa posição em que não mergulha com os filmes. Quem é que ainda entra na noite do cinema? Mas mesmo num tablet ou num telemóvel, ver cinema pode proporcionar uma experiência transformadora. Claro que não acontece a criação da tal comunidade. Mas numa sala vazia também pode acontecer algo."

Não acredita, como por vezes se apregoa, que os criadores nacionais dessa altura, ou os posteriores, não queriam saber do público?
Não, não. O cinema tem a particularidade de ser um composto de coisas técnicas, práticas e artísticas. E de ter uma história particular. O seu exercício, que vai do pensamento até à execução, é tentar resolver problemas. Existe uma ideia que pode parecer fabulosa, mas como se resolve em termos de imagem, de sons e de ritmo? Como pode ser transposto para uma sucessão de imagens? Problemas concretos. Se esses problemas interessam ou não interessam? Não sabemos. Se têm pensamento envolvido, ou reflexão sobre o que é o domínio do mercado e do consumo, como é que isso invade o cinema. O outro lado do mercado é colocar perguntas para encontrar respostas. E fazer com que quem vê sinta alguma afinidade com esses problemas e respostas. Com essas hipóteses. Os filmes são para ser vistos e criar comunidades. Diálogo. Nem que sejam pontuais, limitados no tempo. O trabalho é esse. O que tem acontecido é que hoje o espectador está numa posição em que não mergulha com os filmes. Quem é que ainda entra na noite do cinema? Mas mesmo num tablet ou num telemóvel, ver cinema pode proporcionar uma experiência transformadora. Claro que não acontece a criação da tal comunidade. Mas numa sala vazia também pode acontecer algo.

O cinema ainda pode explorar esse lado irracional? Pode-se exigir isso ao público?
Não sei dizer em termos gerais. Há muitos bons filmes sem esse lado. E há muita gente a trabalhar em cinema que passa ao lado dessa irracionalidade. Aliás, não é nada que se procure. É um resultado.

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