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[este artigo foi originalmente publicado a 20 de outubro de 2016 e atualizado a 25 de novembro de 2020, após a morte do jogador]
O túnel na estreia
É sempre a mesma coisa. Todos os anos, ali em fevereiro, mais coisa menos coisa, lá vem a cerimónia dos Óscares. É a lengalenga do costume: a passadeira vermelha, os vestidos, as jóias, os lugares-comuns e os sorrisos plastificados. É impressão minha ou isto da cerimónia dos Óscares é como aqueles jogos de futebol nas competições europeias em que há cinco árbitros e nenhum deles vê o que quer que seja, desde penáltis a pisadelas? Nos Óscares-2011, por exemplo, seis mil senhores importantes (?) de Hollywood votam em 24 categorias e sai tudo trocado. O verdadeiro filme (True Grit) acaba a noite sem sequer uma estatueta para amostra e há empate técnico (4-4) entre o Di-di-di-di-discurso do Rei e buuuuuuuuuum (desculpem lá mais uma explosão do Inception). É brincadeira? Só pode. E não falo (só) do Toy Story 3. Falo de tudo, a começar pelos apresentadores da cerimónia. Não percebo, aquilo é para o Canal Disney? Se há pormenor pelo qual vale a pena passar uma noite em claro e tolerar a passagem de modelos do museu da cera numa passadeira vermelha é para ver um génio como Billy Cristal em acção, e não dois teenagers inconscientes (James Franco e Anne Hathaway) sem graça nem arte do improviso.
Não fosse Kirk Douglas a encher o palco com uma dúzia de palavras (metade delas imperceptíveis, é verdade, mas sempre ouvi que uma imagem vale mais que mil palavras) e a noite teria sido em vão. Ainda por cima, ainda não é desta que entregam o Óscar de melhor actor secundário a quem de direito. Este ano, os senhores do “tuxedo” preferem dar esse Óscar a Christian Bale pelo trabalho no filme Fighter. Come on!!! Alguma vez ouviram falar de um tal Cabrera? Não, claro que não, senão não estaria aqui a fazer campanha a favor dele e a praguejar contra a Academia. Decore o nome: Juan Domingo Cabrera.
Diego Maradona tem apenas 16 anos quando, após uma grande exibição pelo Argentinos Juniors, um jornalista lhe pergunta como lhe correra o jogo e ele responde de imediato: “Marquei dois golos e fiz um túnel [bola por debaixo das pernas; na Argentina, um ‘caño’].” O jornalista não entende a última parte e pergunta-lhe novamente. Maradona repete: “Fiz um túnel. Tenho uma série deles na minha memória desde que me iniciei no futebol. Na estreia oficial, por exemplo, meti um ao Cabreba. Depois ao Gallego, ao Mascareño…” O gozo incrível que aquilo dá a Maradona. E lá está o nome de Cabrera à baila. Ele é o primeiro de sempre a tentar roubar a bola a Dieguito e sai-se mal na fotografia. Ainda por cima (ou melhor, por baixo), leva um caño. Cabrera na história do futebol, pois então.
Fixe a data: 20 outubro 1976. Há mais de 44 anos. A estreia de Maradona e o túnel de Cabrera. Vezes sem conta, pedem-lhe para contar aquele lance com Maradona e ele toma sempre o dom da palavra. De certa forma, sente-se um privilegiado, testemunha e, ao mesmo tempo, vítima da primeira genialidade daquela figura. “Eu estava na direita e queria apertar o puto mas nem tive tempo para mais nada. Ele fez-me um ‘caño’, e, quando me virei, já me havia escapado. Estou orgulhoso”, reconhece Cabrera, com indisfarçável boa-disposição. Tudo acontece em 1976, no mítico estádio de madeira La Paternal, quando o Argentinos Juniors recebe o Talleres, de Córdoba. Dizem as crónicas, 7.700 pessoas têem a sorte de ver tudo aquilo ao vivo e a cores.
O Talleres ganha 1-0 perto do intervalo, quando Juan Carlos Montes vira a cabeça na direcção de Maradona, sentado no outro lado do banco de suplentes. Desafia-o com o olhar. O jogador responde da mesma forma, sem desviar os olhos como se de um cowboy antes de um duelo ao pôr de Sol se tratasse. Antes de entrar, após o intervalo, uns conselhos do técnico: “Vá, joga como tu sabes. Se puderes, faz um ‘caño’.” Maradona nem precisa de ouvir isto mas segue à risca o plano do superior hierárquico. E cumpre superiormente o plano. Na primeira vez que a bola lhe vem parar os pés, Maradona finge que vai fazer “isto” e faz “aquilo”, com o pobre Cabrera a levar por tabela. O público, em delírio, brinda a jogada com um prolongado “oleeeeeeee”, como que a dar as boas-vindas ao puto, que, nessa tarde, alinha com o 16 – só voltaria a vestir esse número em Alvalade, num Sporting-Nápoles em 1989, para a Taça UEFA.
O Argentinos Juniors perde o jogo, e então? Isso é um pormenor. Irrelevante, por sinal. Até para o orgulhoso Cabrera, o decisivo actor secundário da primeira finta mágica de Maradona. A partir desse dia, Argentina em peso começa a falar de Maradona e nunca mais pára. Obrigado Cabrera. Para mim (nós), continuas a ser o melhor actor secundário. O teu Óscar chegará. Não desistas de lutar.
Villa Fiorito
Onde estávamos a 13 julho 2011? Essa é fácil, em Buenos Aires. Agora, outra pergunta: onde estávamos a 22 junho 1986? Na casa dos pais, dos avós ou de amigos? No cinema? No meio da rua? Na escola? Com quem? Vestidos com que roupa? Com que sapatos? Agarrados a uma bola de futebol? Não sabemos. Por muito que nos esforcemos, por muitas voltas que a cabeça dê, qual cubo rubik, não nos conseguimos lembrar. É ingrato, pois claro. Não sabemos onde estávamos quando Maradona marca o golo do século XX, o golo dos Mundiais, o golo que desequilibra o Argentina-Inglaterra, e é uma pena.
Claro que investigar o passado é fácil. Aí percebemos que a véspera do jogo é tensa, com os jornais dos dois países a evocarem uma guerra absurda. “Não perca, domingo 22, a repetição das Malvinas”, escrevem os argentinos, enquanto os ingleses preferem o igualmente chocante “Malvinas bis, há que voltar a ganhar”. Claro que investigar o passado dá trabalho, mas encontrámos reportagens sobre o estado periclitante da Argentina, o país que vai votar a aprovação (ou não) do divórcio. E ainda há o jogo, fragmentos dele, imagens dispersas. Isso não chega. Continuamos sem nos lembrar onde estávamos no 2-0. Hey, calma lá, estamos no meio desse jogo. Chegámos a Villa Fiorito, a vila (agora cidade) que vê nascer Diego (agora Maradona), no sul de Buenos Aires. A viagem não é fácil.
Na sede do diário desportivo “Olé”, à pergunta de quanto seria em pesos uma viagem do centro para Villa Fiorito, respondem com sobrancelhas arqueadas, rugas na testa, nariz franzido, boca torta. Não é questão de ser perigoso, explicam-nos, simplesmente é desaconselhável. Se eles soubessem o sol que está em Portugal e nós com protector15, isso sim, é desaconselhável. Agora Villa Fiorito, baaaah. Vamos confiar num taxista. Um que diga “libre”. Aí está, mão estendida, fecho de portas activado e cá vamos nós. Alfredo, chama-se ele, o taxista. Tem 58 anos e tem uma vontade enorme de falar. Com esse sotaque, és de que parte da Argentina? De Portugal? E o que fazes aqui? Vais fazer o quê lá para baixo [Villa Fiorito]? Quando Maradona é a resposta, abrem-se algumas portas. Não aquelas cujo fecho se activa há pouco quando estendemos a mão para nos sentarmos neste pedaço de história que é o táxi de Alfredo. Falamos de outras portas. “Já lá vivi, sabes? Quando aquilo era engraçado, havia espaço, campos de futebol, cumplicidade entre os vizinhos. Agora são centenas de casas amontoadas sem ordem nem hierarquia nenhuma. E o que queres de Maradona? Onde ele cresceu? Nã, nã, nã. Vou levar-te a um sítio e depois voltamos à casa de partida, ok?”
No quadradinho seguinte, Alfredo apresenta-nos um amigo. “Este é o Don Juan”, que nos aperta a mão, desconfiadíssimo, e revira os olhos ao amigo. “É o Don Juan, porque se apaixonou pela primeira mulher que conheceu e nunca mais a largou, não foi? Hããã, Don Juan?” Isto ‘tá bonito ‘tá. Olha que dois… Este Don Juan está sentado e vai mostrar-nos a sua garagem. E o que é que vai sair de lá? O Ferrari preto de Maradona quando o Nápoles lhe renova o contrato a pensar que Diego vai aceitar a proposta de Berlusconi (Milan) em Novembro de 1987? O Mini Cooper preto com que Maradona se apresenta na sede da federação argentina aquando da nomeação como selecionador, em Novembro 2008? Não e não. A garagem é um eufemismo para toda a tralha possível e imaginária de Maradona, a começar por sei lá quantos posters iguais, tamanho XXL, de uma formação com onze Maradonas, seis de pé e cinco agachados. “Isto é do documentário de 2005. Este é o Maradona loiro, este é o doido [este,só este?, digo com os meus botões da t-shirt], este é o da mão de Deus, este é o da droga, este é o de Havana, Cuba, este é o gordo, este é a criança a dar toques na bola que aparece naquele vídeo muito conhecido, este é o adolescente, este é o da apresentação no Nápoles e este é o melhor que o Pelé.” Onze, certinho.
Ao lado de uns dos posters, uma revelação que impõe o regresso aos bons velhos tempos. Àqueles em que não nos lembramos onde estávamos, com quem, com que roupa e sapatos. Isso mesmo, 1986. É uma cassete (vaya com Dios) do Spectrum com “Peter Shilton’s Handball Maradona”, um jogo que sai logo após o Mundial-86. “Nunca joguei isso, mas comprei duas cassetes, uma por cada golo d’Ele à Inglaterra. O meu neto é que experimentou mas não ficou animado por aí além. Falou-me numa linguagem estranha. Critica os efeitos sonoros, a digitalização. Viejo, isto é de 1986, o que é que ele quer?Bem, adiante, explicou-me que tu és o guarda-redes e tens de defender a baliza. Agora não me perguntes mais, por favor. Só sei que o meu neto é melhor à baliza que o Shilton, isso de certeza. Mira, um arquero [guarda-redes] que pode usar as mãos, salta com elas levantadas e, mesmo assim, é batido pelo jogador mais pequeno em campo, que arquero es?”
A melhor entrevista
Diego Maradona é um conversador nato. Quem engata, é uma delícia. Ouçamo-lo, é uma das suas melhores entrevistas de sempre, ao jornal “Crónica.” Sem tabus.
Cruzas-te com Shilton no meio da rua. O que é que lhe dizes?
Arquero [guarda-redes], arquerazo. Bahh, não me convidou para a sua festa de homenagem. Já não vou poder dormir com ele, que pena!
Porque é que começaste a drogar-te?
Por curiosidade. E correu-me mal.
Tinhas quantos anos?
22.
Tomaste o quê?
Cocaína.
O que mais te divertiu: Inglaterra-86, Brasil-90 ou Itália-90?
Itália, por todas as conotações, por todas as coisas que se passaram depois, porque vivia em Itália, porque a “Gazzetta dello Sport” escolheu para título “Maradona é o Diabo” e porque os eliminámos, nas meias-finais. Que prazer!
Qual foi o melhor futebolista que viste enquanto jogador?
Está entre Romário e Van Basten.
E o mais chato?
Pietro Vierchowod. Parecia russo, era um animal. Tinha músculos até nas sobrancelhas. Jogava na Sampdoria e na selecção italiana. Era muito difícil ultrapassá-lo, porque quando o fintavas, levantavas a cabeça e ele estava novamente à tua frente. E repetia essa brincadeira umas, duas ou três vezes. À quarta vez, eu passava a bola porque já estava cansado de o ver à minha frente.
A Argentina foi prejudicada na final do Mundial-90?
Um dia antes da final, Julio Grondona [presidente da federação argentina, cargo que ocupava desde 1979] entrou no balneário da Argentina [que acabara de fazer o reconhecimento ao relvado do Olímpico de Roma], apanhou-me a meio do duche e disse-me: “Está difícil mañana,eh.” Perguntei-lhe: “Que quer dizer, Julio?” E ele: “Nada, só isso, Diego…”
Porque acreditas nisso?
Porque estava tudo armado. Chateámos Matarrese [italiano, integrante do Comité organizador do Mundial], chateámos a Itália inteira. Aquilo era para ser Itália-Alemanha e acabou por ser Argentina-Alemanha. Cagámos o negócio todo, cagámos 180 milhões de liras, cagámos a bandeira deles, cagámos a festa antecipada, cagámos a festa da televisão, pusemos-lhe os cornos. Tínhamos de pagar por tudo isso.
O dia mais feliz da tua vida?
Quando fui campeão mundial pelos AA e sub-20. E quando fui campeão italiano pelo Nápoles e argentino pelo Boca.
E os mais infelizes?
Quando me cortaram as pernas, em 1994, porque íamos ser campeões do mundo. Depois desse Mundial, cruzei-me com Romário e Bebeto e eles disseram-me: “Quando vos vimos a remontar aquele jogo com a Nigéria [de 0-1 para 2-1, bis de Caniggia], demos conta que nós teríamos de jogar a final convosco.”
Que farias se fosses presidente da FIFA?
Daria muito mais importância aos jogadores. Respeitava-os. Faria calendários que se ajustassem a eles em benefício do espectáculo. Se os Mundiais de râguebi duram 45 dias, porque é que os de futebol só são de 30?
Onde estavas quando a Argentina se sagrou campeã mundial em 1978?
Fui ao estádio ver a final com a Holanda. Estavas contente ou “puteado” por não teres sido convocado? Fiquei contente, claro, mas senti a que devia estar ali, lá dentro, na cancha. Naquela altura, eu não jogava, voava. Na semana seguinte, retomámos o campeonato argentino e marquei três golos do Argentinos Juniors ao Chacarita [5-3]. Mas festejei o título mundial,claro. Fui ao Obelisco.
Que significado actual tem o golo da mão de Deus à Inglaterra?
Vou contar-te uma coisa. Há tempos, o Lineker veio cá fazer uma reportagem sobre mim centrado nesse golo. Recebi-o e preparei-lhe um asado na casa da minha mãe. A meio do almoço, ele pergunta-me se eu roubei os ingleses. Respondi-lhe que não, porque nós jogamos assim desde pequenos. Para nós, aquilo é um jogo, só um jogo, não estamos ali a prejudicar ninguém. Passados uns minutos, ele diz-me que os ingleses não roubam. Ai não? Então olha lá o que fez a McLaren à Ferrari, que lhes roubou informação ultra-secreta. Mas está tudo bem, Lineker é sócio da igreja maradoniana.
Como é ser Maradona?
Jodido. Tenho de pagar um preço altíssimo, porque sou argentino e vivo num país de futebol. Por isso, quando ia de férias com a família, escolhia sempre locais onde não se jogava futebol. Ia à Tanzânia ou isso. Mas joga-se futebol em todo o lado. Até na Polinésia. Uma vez, fui lá com a minha filha e sabes o que aconteceu? Um português reconhece-me e convida-me para um jogo de futebol no dia seguinte. A minha filha resmungou: “Pára, português, o pai é meu! Trouxe-o para estar comigo.”
As mãos de Deus
Maradona é levado da breca. E não é de agora, quando ele é o seleccionador argentino que manda todos os jornalistas àquele lugar, demora horas para eleger os 30 jogadores para o Mundial-2010 e diz num segundo a equipa titular para a prova na África do Sul. Já quando ele era jogador da bola, a imprevisibilidade é uma constante, razão pela qual ele e a polémica andam sempre de mãos dadas. E é neste pé que estamos. Ou melhor, na mão. A esquerda. Se pensa que estamos a falar do histórico golo no Argentina-Inglaterra do Mundial-86, no México, desengane-se.
Aqui, o assunto não é o segundo golo de Diego com a mão, mas sim o primeiro. A 13 de maio de 1985, num Udinese-Nápoles (2-2), para a 29.ª e penúltima jornada da liga italiana. Há 30 anos, Maradona salta e toca a bola com a mão para a baliza. É golo do Nápoles? Sim, o 2-2, aos 88 minutos, porque o árbitro (Giancarlo Pirandola) nada assinala, o que motiva a ira de Zico, capitão da Udinese, e a fazer o último jogo em Udine antes de embarcar novamente para o Rio de Janeiro, rumo ao Flamengo.
https://www.youtube.com/watch?v=X7TG4DDfhac
Com a bola no meio-campo, à espera do reinício do jogo, Zico confronta Maradona: “Se és um homem honesto, diz ao árbitro que marcaste com a mão.” O argentino responde com a irreverência de sempre: “Sou Diego Armando Maradona, desonesto de profissão.” O brasileiro ouve e cala, por breves molmentos. A caminho do balneário, já consumado o empate a dois golos, Zico barafusta com tudo e todos, inclusive o juiz da partida. “Isto tudo é uma vergonha. Trabalhámos a semana toda para proporcionar uma tarde gloriosa aos nossos adeptos e depois acontece isto. O árbitro, pura e simplesmente, não vê aquilo que 55 mil pessoas nas bancadas vêem: o golo com a mão de Maradona.”
Estas declarações azedas provocam uma reação da federação italiana de futebol, que suspende Zico por seis jogos. O número 10 da Udinese – que chegara a Itália na época anterior (1983/84) e marcara 19 golos – já não actua na última jornada, em Cremona, e regressa ao Brasil. Só anos mais tarde é que Zico fala novamente do assunto. “Essa exaltação da minha parte tem um contexto próprio. Era o meu último jogo na Udinese e havia um ambiente especial. O golo com a mão do Maradona fez-me explodir mas nunca o critiquei por isso, embora tenha sido um estágio para aquele famoso golo com a Inglaterra.”
E não é que o profissional desonesto dá a cara pela honestidade? “Lembro-me de o Zico ter ficado espantado com o meu golo com a mão”, garante Maradona “mas nunca me criticou; ele até encolheu os ombros como que a dar-me razão por aproveitar a desatenção do árbitro.” Mais uma, portanto. A primeira de todas. Segue-se a mais famosa, a do Mundial-86, com a Inglaterra, nos quartos-de-final. Valdano recebe mal a bola e é Hoddle quem a atrasa atabalhoadamente para Shilton. O guarda-redes faz uso da sua envergadura (1,85 m) e sai-se à bola com o punho direito. Maradona, bem mais pequeno (1,65 m), atira-se com a mão esquerda. E é golo. “Durante anos, anos e anos, não consegui rever esse jogo”, garante Shilton. “Por causa da mão de Deus, desse golo irregular que o árbitro não viu, nem o fiscal-de-linha.”
O árbitro em causa é o tunisino Ali Bennaceur. “A culpa desse golo é de Dontchev. Quando o Maradona marcou, comecei a recuar para o meio-campo á espera do sinal do meu fiscal-de-linha búlgaro e ele nada de olhar para mim, limitou-se a correr para o meio-campo. Entendi que não houve qualquer irregularidade e deixei seguir.” O búlgaro encaixa mal a crítica e contra-ataca. “O Bennaceur não estava preparado para um jogo desse calibre. Afinal, é o que acontece quando se costuma apitar jogos entre camelos no deserto.” E o terceiro elemento? É o costa-riquenho Berny Ulloa, isento de qualquer culpa pelo simples facto de ter acompanhado do ataque dos ingleses durante a segunda parte. “A única coisa que posso dizer é que o Bennaceur estava bastante desapontado quando viu as imagens pela televisão no hotel, nessa noite.”
Bom, tanta conversa sobre um lance de 1985 e outro em 1986. Para quê? A situação de 1985 ajuda a explicar a de 1986. E a de 1986 é hoje tema de conversa em todo o mundo pelo pedido de desculpas público de Maradona ao árbitro Bennaceur, durante a rodagem de um anúncio publicitário da Coca-Cola em Tunis (Tunísia). “Peço desculpa pelo golo da mão de Deus.” Na sua página de facebook, o argentino mostra fotos actuais d’Ele com Bennaceur. “Foi um fim-de-semana bem agradável na Tunísia. Encontrei-me com Bennaceur, ofereci-lhe uma camisola da Argentina e ele pediu-me para autografar a foto emoldurada desse golo da mão de Deus que ele tem lá em casa. Escrevi isto: ‘Para Ali, meu amigo eterno’.” Assunto resolvido? Sim, para Bennaceur. Só falta agora convencer Shilton a perdoá-lo.
O golo do século
Steve Hodge, remember? Nooooo, claro que não. E faz bem, muito bem. É o médio esquerdo do Nottingham Forest. Começa esse Mundial do México no banco, como suplente de Ray Wilkins, razão pela qual só entra na segunda parte na estreia, com Portugal. Ao terceiro jogo, o seleccionador Bobby Robson coloca-o a titular e a Inglaterra, que perdera com Portugal e empatara com Marrocos, parece outra. No 3-0 à Polónia, Hodge faz uma assistência para golo de Lineker. Nos oitavos, repete a jogada no 3-0 ao Paraguai. Nos quartos, com a Inglaterra, pouca coisa lhe sai bem. Como o próprio admite. “No golo da mão de Deus, o meu passe para o Shilton foi mal medido mas naquele tempo o guarda-redes ainda podia agarrar a bola com a mão. Estranhei que Maradona tivesse marcado mas nem liguei muito. Só depois do jogo é que percebi que foi com a mão.”
“No 2-0, nada havia a fazer. Só se amarrássemos o Maradona. Como fez Gentile em 1982. Ou Matthäus em 1990. Ele partiu e nunca mais ninguém o viu. Só no final do jogo. E esse aspecto é curioso, porque ainda não havia a cultura da troca de camisolas. Aliás, eu mantive a minha o Mundial inteiro. Até esse jogo. Felizmente, houve contacto visual e pedi-lhe a camisola. Ele despiu-a, eu fiz o mesmo, trocámos e cada um seguiu o seu caminho.” Pronto, o sortudo do Maradona ficou com a 18 da Inglaterra. Alto lá e pára o baile. Quer isso dizer que Hodge tem a camisola de Maradona desse jogo. Not anymore. Ele doa-a ao Museu Nacional do Futebol, em Preston (Inglaterra), onde o 10 da Argentina está ao lado da Taça Jules Rimet conquistada em 1966 e da bola que garante esse título mundial na final com a RFA.
Posto isto, concentremo-nos no golo do século. Maradona dá 12 toques com o pé esquerdo e nenhum com pé direito em 10,6 segundos desde o seu meio-campo até à pequena área da Inglaterra. Pelo meio, finta cinco subditos de Sua Majestade. Ouçamo-los.
Peter Beardlsey
“O primeiro toque dele é sublime porque nos deixa, a mim e ao Peter [Reid], sem reacção. O que ele fez com aquele jogo de pés naquela fracção de segundo arrumou-nos, sem misericórdia. Foi um toque de classe como nunca vi até então, e só voltei a ver com Zidane. A roleta. O Diego é que inventou a roleta, naquele instante. O Zidane aperfeiçoou-a, dou isso de barato, mas o inventor foi Maradona. E à minha frente.Na minha cara. Quer dizer, eu estava à espera de tudo menos daquilo, e ele fugiu-me por entre as mãos como se nada fosse. Sim, é verdade, o 1-0 foi com a mão, mas o 2-0 valeu por dois.”
Peter Reid
“Os jogos desse Mundial eram a horas tremendas. À hora de almoço, no pico do calor. Esse não fugiu à regra. Aquele estádio estava um forno e eu não me lembro de correr tanto atrás de alguém como naqueles segundos. Nunca o apanhei. Às tantas, desisti. E o Diego com a bola controlada. A única coisa que me passava pela cabeça era tentar travá-lo, mas ligeiramente, sem ser em falta. Sei lá, estender o braço direito à volta da cintura dele ou no seu ombro, mas era impossível. Ele bateu todos os recordes possíveis e imagináveis de velocidade, técnica e ligeireza nesse lance histórico.”
Terry Butcher
“Quando o vi arrancar, pensei para mim ‘bem, alguém ovai parar, não vai?’.Depois ele aproxima-se de mim e eu penso ‘bem, eu vou pará-lo, não vou?’, mas ele dá-me a volta com um jogo de cintura e a bola colada ao pé . Parecia um ioiô, que lhe obedecia. Ainda pensei ‘bem, agora o Fenwick, que era um defesa forte na marcação que raramente se deixava enganar, vai pará-lo, não vai?’ e não é que Diego passa por ele como se nada fosse? No fim ainda fui de carrinho a tentar impedir o golo, mas ele foi mais rápido que eu. Again!”
Terry Fenwick
“Nunca pensei que alguém com a bola controlada conseguisse correr mais que os outros. Ele passou por mim como se nada fosse e o incrível desse lance é que ficou na cabeça de toda a gente. Em 2006, estou eu tranquilo da vida, na Jamaica, de férias, quando o dono do hotel reconhece o meu nome a fazer-me o check-in. Pergunta-me se sou quem ele julga que sou, digo-lhe que sim, ele chama os amigos e começamos ali a falar de todos os pormenores do golo. Só consegui ir para o quarto duas horas depois.”
Peter Shilton
“Durante anos e anos, não consegui rever esse jogo. Por causa da mão de Deus, desse golo irregular que o árbitro não viu, nem o fiscal-de-linha. Mas claro que aplaudo o 2-0. Uma obra de arte. Dizem que o Messi marcou um igual, mas não podemos comparar o golo. Nem o momento. Nem o adversário. Nem os intervenientes. É tudo diferente, com vitória de Diego. Quando eu lhe saí aos pés, ele fez-me uma coisa impossível: fintou-me com a anca. Em corrida! Com a bola controlada! Come on.”
Barrilete cósmico
… La va a tocar para Diego, ahí la tiene Maradona. Lo marcan dos. Pisa la pelota Maradona. Arranca por la derecha el genio del fútbol mundial, y deja el tendal y va a tocar para Burruchaga. ¡Siempre Maradona! ¡Genio! ¡Genio!¡Genio! Ta-ta-ta-tata-ta… Goooooool. Gooooool. ¡Quiero llorar! ¡Dios santo, viva el fútbol! ¡Golaaaaaaazooooooo! ¡Diegooooooool! ¡Maradona! Es para llorar, perdónenme. Maradona, en recorrida memorable, en la jugada de todos los tiempos. Barrilete cósmico. ¿De qué planetaviniste?, para dejar en el camino a tanto inglés, para que el país sea un puño apretado gritando por Argentina. Argentina 2, Inglaterra 0. Diegol. Diegol. Diego Armando Maradona. Gracias Dios, por el fútbol, por Maradona, por estas lágrimas, por este Argentina 2, Inglaterra 0.
Vai continuar a ler? Ou prefere recordar o golo com os comentários? Vá, eu espero. Não levo a mal. Nem eu nem o Victor Hugo Morales. Sim, ele acena-me que sim com a cabeça. Também espera. Pode ver e rever o lance umas quantas vezes. É impossível ficar indiferente. Ao golo. E aos comentários. De Victor Hugo Morales. Em Julho 2011, quando nos cruzamos com este barrilete cósmico do jornalismo, tem 63 anos e está impecável. Respira saúde. Cabelo grisalho, todo para trás, cachecol cinzento a tapar a garganta e sobretudo preto. Voz inconfundível. Sempre no mesmo tom calmo, como quem domina a bola. A linguagem, neste caso. Nasce no Uruguai mas vai cedo para a Argentina, daí que se autodefina como “uruguaio-argentino”. É o autor do relato mais fervoroso, o do melhor golo do século XX. Quem o conhece faz-lhe uma vénia. Quem não o conhece..
Bem, quem não o conhece, passa a conhecê-lo. Já viu alguém cruzar-se com Maradona e não lhe passar cartão? Aqui é a mesma coisa. Victor Hugo Morales é a referência jornalística da América do Sul. Sem telemóvel nem email, muito menos facebook. “Uma vez, já tive twitter, sabes? Que não era gerido por mim. Sei lá entrar naquilo.” Floooop. “Estou fora disso. Não ando de braço dado com a tecnologia. Mas é o progresso e aceito-o, mesmo que embarque nessa aventura muito atrás dos outros. Sou do outro tempo. Do tempo em que não havia televisão e a minha vila vivia do cinema, do teatro, do futebol, do basquetebol. A televisão arrastou as pessoas para casa e o meu mundo de criança desapareceu para sempre. É triste mas é verdade.” Parece uma cena do “Cinema Paraíso”. Só que o actor principal é este homem.
“O meu sonho era jogar futebol mas desde cedo me disseram que não passaria do amadorismo. Então,dediquei-me ao basquetebol. E ao jornalismo. Entrei na Radio Colonia aos 16 anos. Inesquecível esse dia: 20 abril 1964. Primeiro, locutor de anúncios. Depois, de noticiários. Aos 17 já me sentia jornalista. E, aos 18, experimentei o relato de futebol, já que tinha tendência para relatar tudo o que via. Levaram-me a sério e cá estou”, diz a sorrir amavelmente. Com a memória tão fresca, é fácil dizer a estreia, não? A resposta nem demora,porque “é um jogo que marca a minha condição de rioplatense”, que é como quem diz uruguaio-argentino.“ Nacional Montevideo vs. selecção juvenil da Argentina.” E como vai parar à Argentina? “Convidaram-me para trabalhar em Buenos Aires durante um ano e fui ficando, ficando, ficando…”
Até que chega o México86. “Grandes recordações. Comecei aí a deixar de fumar e a fazer uma dieta. Engordei 14 quilos num mês. Nesse Mundial, vivi o momento mais feliz e o mais ingrato como jornalista.” Então? “Nos 6-1 da Dinamarca ao Uruguai, apetecia-me fazer sei lá o quê. Que raiva, que angústia. Solucei em alguns golos dinamarqueses porque aquilo parecia-me inaceitável. Eles jogavam a mil à hora e nós devagar e parados, como um caracol.”
O melhor está guardado para os quartos-de-final. “Ahhh, o Argentina-Inglaterra. Sabes que prefiro ouvir a mão de Deus ao barrilete cósmico?” Hãããã, como? “Relatei a mão de Deus com grande honestidade profissional. Disse logo que Diego tocou a bola com a mão, depois insisti que o golo tinha sido irregular, que os ingleses tinham razão. E acabei por desabafar, ‘mas se querem que vos diga, festejo mesmo que tenha sido com a mão!’ Já no 2-0, deixei-me levar pela ansiedade. Quando digo ‘génio, génio, génio, ta, ta, ta’, não relato o que se passa. Não gosto dessa parte. Éverdade que o digo com fascínio, mas não é um grande relato. O que digo depois, isso sim, deixa-me satisfeito: ‘A melhor jogada de todos os tempos’. O barrilete cósmico também me comove. Tem-me acompanhado ao longo destes anos, como se fosse o meu Sancho Pança.” A ele e a todos nós.
Os anos em Nápoles
Um dia não são dias. E aquele 5 de julho de 1984 não é um dia qualquer. É o início de uma relação de amor incondicional que dura 2461 dias. Para Nápoles (cidade). Para Nápoles (clube). Para Maradona. É uma quinta-feira, 5 julho 1984. O Nápoles anda pelas ruas da amargura. Além de nunca ter ganho o scudetto (Serie A), é constantemente subjugado pelos mais fortes do Norte de Itália (Juventus, Milan e Inter) e fugira à despromoção para a 2.ª divisão na última jornada da época anterior (198384). E por um ponto. Está na altura de virar a página e escrever outra história.
Corrado Ferlaino é um homem de ideias fixas e só pensa em Maradona. Há um plano B (o mexicano Hugo Sánchez, do Atlético Madrid), só que o presidente do Nápoles passa 50 dias seguidos em Barcelona a negociar o passe do argentino, entre o Camp Nou (estádio do Barça) e o Hotel Princesa Sofia (escritório de Joan Gaspart, vice do presidente Josep Lluis Núñez). Quando se assina aquela papelada toda, no dia 30 junho, a cidade de Nápoles endoidece. Cinco dias depois, o Estádio San Paolo enche-se com 70 mil pessoas, e cada qual paga o equivalente a 1,5 euros para assistir à chegada do reforço. Todos sabem o nome e respectivas alcunhas do astro (Diego, Maradona, Dieguito, El Pibe, Pibe d’Oro, Pelusa) e baptizam-no de scugnizzo, o rufia dos subúrbios.
Vestido com calças de fato-de-treino (azul, como convém) e t-shirt branca, o dito cujo entra no relvado pelo túnel de acesso aos balneários e dá 16 toques na bola antes de a atirar para o céu (azul, como convém), enquanto acena para os adeptos delirantes. Aí, puxa do microfone e diz: “Boa noite, napolitanos. Estou feliz por estar aqui. Força Nápoles.” Histerismo, parte dois. Na conferência de imprensa – cem jornalistas e 50 fotógrafos, entre italianos, espanhóis, alemães, argentinos, franceses e japoneses –, esbarram uns contra os outros para uma declaração. A primeira pergunta é de um francês: “Diego, está consciente de que pode ter entrado dinheiro da Camorra na sua contratação?” O presidente Ferlaino responde-lhe à letra. “Isso é uma ofensa. Peço-lhe que abandone a sala. [pausa para a saída do jornalista scugnizzo] Somos gente honesta e trabalhadora. Fizemos sacríficios, nãomerecemos estar aqui a ouvir isto.”
Impossível Diego ter ido parar a outro clube que não fosse o Nápoles. Impossível imaginá-lo a viver numa cidade fria como Turim. Ou snobe como Milão. Ou arrogante como Roma. Maradona é de Nápoles. E Nápoles é uma extensão da Villa Florito, bairro de Buenos Aires de onde é natural. Na cidade pobre do sul de Itália, sente-se como peixe na água frente aos poderosos do Norte, embora tenha protestado nesse primeiro dia com o tamanho da sua casa. “É muito pequena.” E é, de facto, pequena: não cabem os 20 “convidados”. Com o tempo, a família cresce (duas filhas), Maradona também (ídolo, goleador, capitão, campeão) e o Nápoles idem idem (scudetto, Coppa e Taça UEFA). A casa, essa, também já é maior. De um apartamento para um casarão com vista para o mar (azul, como convém).
As dez melhores frases
“Eu tenho uma vantagem sobre os políticos: eles são públicos, eu sou popular”
“Se o Havelange tivesse uma página na internet, chamar-se-ia ladrao.com”
“Chegar à área e não rematar à baliza é como dançar com a tua irmã”
“Não tenham medo de Bin Laden, os ianques inventaram-no para combater os russos”
“Cresci num bairro privado. Privado de água, luz e telefone”
“Na clínica de desintoxicação, existe um [paciente] que acha que é o Robinson Crusoe e não acredita que eu sou o Maradona”
“Não concordo com os comunistas que se passeiam de Mercedes e andam com um Rolex” (sobre Menotti)
“A rinoscopia, o cabelocurto… Qualquer dia, os jogadores da selecção querem coçar os tomates e o Daniel Passarella vai mandar cortá-los”
“Os dirigentes do Boca são mais falsos que um dólar azul”
“Sinto-me como se tivesse levado um murro de Muhammad Ali. Não tenho forças para nada” (na ressaca do 4-0 da Alemanha, nos quartos do Mundial-2010)