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O realizador e encenador criou uma peça a partir da história de oito mulheres imigrantes
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O realizador e encenador criou uma peça a partir da história de oito mulheres imigrantes

TOMAS SILVA/OBSERVADOR

O realizador e encenador criou uma peça a partir da história de oito mulheres imigrantes

TOMAS SILVA/OBSERVADOR

Marco Martins: "Temos aqui mulheres com 70 anos e uma vida de trabalho que vivem em quartos na periferia de Lisboa. Isso não é razoável"

Mulheres, imigrantes, trabalhadoras, cuidadoras têm, por fim, um palco só seu. O trabalho doméstico é uma ferida. Marco Martins torna ao teatro para a abrir.

“Olha para nós. Ainda não estamos exaustas”, ouve-se do palco. Limpam casas, engomam camisas, fazem camas, lavam roupa, esfregam o chão, embalam os novos, cuidam dos velhos.

No Teatro São Luiz, várias mulheres contam as suas histórias em “Pêndulo”, nova peça de Marco Martins sobre a força de trabalho maioritariamente imigrante e feminina que sustenta a indústria do serviço doméstico na Grande Lisboa e que deixa a nu as estruturas de poder que impedem o acesso à palavra por quem habita a periferia.

A voz da subalterna não surge interpretada pelo discurso dominante (ou representantes do dito). O realizador e encenador foge, assim, à tentação dos lugares comuns, à perpetuação do silêncio, entregando as vidas “auto-ficcionadas” a oito atrizes não-profissionais que vieram de São Tomé e Príncipe, Angola, Moçambique e Brasil, para acabar a executar as tarefas citadas em Portugal. São elas Maria Yaya Rodrigues Correia, 62 anos, Fernão Dias (S. Tomé); Maria Gustavo, 71, Santo Amaro (S. Tomé), Nzaji Dende, 58, Luanda (Angola), Juliana Teodoro Alves, 76, Pemba (Moçambique), Emanuelle Bezerra, 37, Rio de Janeiro (Brasil), Fabi Lima, 45, Registro (Brasil), Elane Galacho, 42, Canavieiras/Bahia (Brasil) e Nádia Fabrici, 31, Fortaleza (Brasil).

“Penso muitas vezes que estes espetáculos são um pretexto para juntar pessoas que de outra forma não se juntariam”, diz o criador, depois do ensaio-geral.  “Não é só a questão de lhes dar voz, é também de lhes dar um corpo e uma visibilidade”.

Depois da estreia no Barreiro, “Pêndulo” mostra-se no São Luiz, em Lisboa, entre esta sexta-feira e domingo. Segue-se Setúbal (Fórum Municipal Luísa Todi, 24 de junho), Almada (Teatro Municipal Joaquim Benite, 22 de dezembro), Porto (Teatro Municipal do Campo Alegre, 2 e 3 de fevereiro) e Montijo (Cinema-Teatro Joaquim de Almeida, 10 de fevereiro), com uma paragem em Bolonha (Itália), em janeiro.

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Como correu o ensaio geral?
Correu como devem correr os ensaios gerais, que é mal. Diz-se que quando um ensaio geral corre mal a estreia corre muito bem. Houve uma série de coisas que falharam, de guarda roupa, de roupa que ficou presa, de microfones que falharam, deixas que ficaram por dizer. Os ensaios gerais servem precisamente para isso, para falhar tudo para depois a estreia correr melhor.

Juju, Yaya, Betty, Manu, Fabiana, Nádia, Elane e Joana são as oito mulheres que compõem o elenco de "Pêndulo"

Estelle Valente/Teatro São Luiz

Olhando para as suas obras passadas, do teatro ao cinema, é evidente que se tem dedicado ao tema do trabalho. Porque escolheu debruçar-se agora sobre o trabalho doméstico? 
Não era propriamente o trabalho doméstico [que me interessava], mas a precariedade do trabalho, o tipo de trabalho para o qual estas pessoas são direcionadas, esta ideia de que o trabalho dos imigrantes é fundamental para a nossa sociedade e que eles são cada vez mais invisíveis. Quando terminei [o filme] “Great Yarmouth”(2023) houve muitas pessoas que me disseram, e eu próprio me apercebi: “foste tão longe, mas existe isto mesmo aqui ao lado”. Estas pessoas não têm qualquer vínculo laboral, estão em permanente esquema de exploração. A ideia que este neoliberalismo trouxe faz parecer que as pessoas são livres de serem exploradas e que não existe outra alternativa. Por outro lado elas ocupam um lugar central na nossa sociedade, não só nos empregos de limpeza, mas também nos empregos enquanto cuidadoras. E, no entanto, são totalmente invisíveis, não têm voz, não tem quase existência social.

Aqui não só têm voz como chegam a gritar.
Sim, sim.

Em entrevista ao Observador em 2018 dizia: “Trabalho sobre o que me é desconhecido. Tenho alguma dificuldade em falar sobre o que está à minha volta, sobre esta Lisboa gentrificada que tende para um lado mais globalizado e descaracterizado. Tenho dificuldade em encontrar histórias aqui, talvez por tudo me ser familiar, não sei. Não tenho apelo por aquilo que me é mais próximo, mas por algo que está um pouco mais longe.” Parece ter feito o processo inverso. 
É verdade. Foi o processo inverso, quase uma necessidade de trazer para estúdio e para o processo de ensaios estas pessoas, dialogar com elas e descobrir o que é que as traz aqui. Não é só a questão de lhes dar voz, é também de lhes dar um corpo e uma visibilidade. O teatro tem esse papel, é um dos poucos redutos da democracia que ainda existem. É como uma comunhão em que nos reunimos numa assembleia para falar de nós. A ideia do teatro, no sentido grego, é o lugar onde vamos para ver. Para ver o quê? Para ver as pessoas iguais a nós, para ver os deuses, para ver os fantasmas, para ver os mortos. Há um certo lado ritualístico que marca o teatro e que convoca este tipo de reflexão. Por isso é que o teatro é tão importante na democracia, porque de facto é o lugar onde nós vemos o outro. Portanto esta ideia de trazer não-atores e comunidades para o teatro para mim é cada vez mais forte.

Algo que começou desde o contacto com os operários dos Estaleiros [Navais de Viana do Castelo, com os quais trabalhou para “À Espera de Godot (2012)”], e que tem continuado a fazer. Que desafios é que este tipo de trabalho lhe coloca? Tem dilemas éticos ao fazê-lo?
Como em qualquer atividade artística, como quando escrevemos ou fazemos um filme, há uma série de questões morais e éticas que se colocam perante o nosso olhar. Mas acho que o importante é saber que estamos num lugar de risco e colocar-nos perante o risco e a provocação. É nesse lugar que estamos mais perto de cair, mas mais perto da vida. O perigo tem esse duplo sentido. Neste tipo de trabalho gosto de começar com um ponto inicial, neste caso o pêndulo, esta ideia do movimento pendular, entre o país de origem e o país para onde as pessoas migram para trabalhar, entre a casa e a outra casa onde se trabalha. Esse era o ponto de partida, mas depois é um bocado dinamitado e aberto a tudo o que surgir dentro da sala de ensaios e através da biografia de cada uma destas mulheres que quis que fossem o mais distintas possíveis. Desde a Yaya que trabalha desde os 10 anos numa roça em São Tomé à Nádia que veio cá para tirar um mestrado em artes cénicas na [Universidade] Nova, e que para conseguir pagar os estudos tem que fazer trabalhos de cuidadora ou vender tabaco aquecido.

"Este espetáculo coloca-me muitas questões. Sobre não só o lugar do migrante, mas o lugar da mulher, o lugar social. O nosso estado social é de tal forma frágil que acaba por excluir aqueles de quem mais necessita. Os verdadeiros trabalhadores parecem estar excluídos de terem uma residência, de terem uma nacionalidade"

Essa ideia de pêndulo de que fala ficou particularmente evidente na pandemia, que deixou a nu uma série de desigualdades. Muitos ficaram chocados com as imagens dos transportes públicos cheios de quem não tinha o privilégio de poder ficar confinado em casa. A ideia deste pêndulo como metáfora vem também daí ou é algo anterior?
A ideia de facto vem pós-pandemia. Há dois momentos nos últimos anos que acentuam muito as desigualdades sociais. Uma é a crise de 2009, quando houve muitas famílias da dita classe média que perderam todos os seus privilégios e que passaram a existir numa lógica muito mais de sobrevivência e, depois, a pandemia, que expôs essas fragilidades sociais de uma forma extrema. De facto quem podia não trabalhava, não se deslocava, e depois havia pessoas que não tinham qualquer forma de subsistência a não ser continuar a trabalhar naquilo que ninguém queria fazer.

Havia um convite da Artemrede, [projeto de cooperação cultural que agrega 18 municípios do Centro e do Sul do país], que é o primeiro produtor deste espetáculo, que trabalha com municípios das zonas limítrofes de Lisboa. A ideia era trabalhar nesses municípios e esta ideia das cuidadoras vem um bocado daí, dessa ideia de movimento pendular.

Depois havia um outro aspeto, que era uma curta-metragem que eu tinha visto há muitos anos, do [realizador brasileiro] Walter Salles [refere-se a Loin du 16E (2006)], que se passava em Paris e era sobre emigração. Era uma mulher que vivia num bairro muito longe do centro e que deixava a sua criança num género de orfanato, aquelas casas onde estas mulheres deixam as crianças para ir trabalhar, às vezes sem muitas condições, um quarto com várias crianças. Ela deixava-a a cantar uma canção e depois apanhava uma série de transportes, demorava uma hora a chegar ao centro de Paris e quando chegava havia uma mãe que também ia trabalhar, de classe alta, e que deixava a sua criança entregue a esta senhora, que continuava a cantar a canção que tinha começado a cantar ao filho dela. Essa pareceu-me sempre uma ideia brilhante e que condensava em si todas estas contradições do nosso sistema social.

Esse confronto de classe também o encontramos em “Pêndulo”, quando uma das mulheres recorda como a patroa a acusa de a ter tratado por “tu”. Ela desculpa-se reconhecendo que o erro se pode ter dado por causa do seu português.
É. Tinha feito há uns anos “As Criadas” (2016), do Jean Genet, que é todo construído em cima deste ritual de substituição, em que as criadas fazem de patroa com todos os tiques da patroa. Numa determinada altura dos ensaios [de “Pêndulo”] achei interessante esta ideia de vestir estas trabalhadoras dos empregadores, com todos os tiques que eles tinham. Foi um género de catarse. Começaram a aparecer estes insultos e os maus tratos e estas formas de violência extrema, que tem a ver com as situações em que muitos dos idosos de que elas cuidam se encontram, de demência, de Alzheimer, etc. Mas algumas destas situações são extremamente violentas e em permanência.

"A questão do género é fundamental. A partir do momento em que se fala de mulheres e sobretudo de mulheres com 70, quase 80 anos, como temos aqui, há uma violência enorme"

A última peça que fez, “Selvagem” (2022), tinha um elenco exclusivamente masculino. Nesta, há apenas mulheres. Houve algo de diferente no processo?
Mais do que uma questão de género, a natureza destas mulheres é muito distinta da natureza do trabalho agrícola. Acho que há uma grande violência que está associada à vida destas mulheres, que nós tendemos a não ouvir ou minimizar. Era esse amor que me interessava. Este é um trabalho em que me aproximo muito mais das pessoas. É uma forma de me envolver naquelas que são as feridas da nossa sociedade e, de alguma forma, usar o meu lugar de fala para abrir, olhar para o outro, não só falar de mim.

Estas mulheres, a Yaya começou a trabalhar aos 10 anos porque escrevia com a mão esquerda. Batiam-lhe. Levava tanta reguada que preferia trabalhar numa roça o dia inteiro do que estar na escola. Depois emigra com a esperança de que vai para um sítio melhor e tem o pai no aeroporto à espera para a entregar a umas pessoas para as quais ela fica a trabalhar. A seguir casa-a com um senhor de 71 anos quando ela fica grávida. Há uma história de uma violência perpetuada da nossa sociedade com estas mulheres que é muito diferente. O papel da mulher é muito distinto do homem, na verdade. Voltando à pergunta, penso que se tivesse feito um trabalho sobre as mulheres no universo rural se calhar também encontrava tanta violência como aqui. A questão do género, reformulando o que eu disse, é na verdade fundamental. A partir do momento em que se fala de mulheres e sobretudo de mulheres com 70, quase 80 anos, como temos aqui, há uma violência enorme.

A que não é alheia a uma cultura de silenciamento que imperou durante muito tempo.
Sim, a coisa mais impressionante que ouvi nestes ensaios quando começámos a falar e a falar de tudo era dizerem-me: “Marco, não é que eu tivesse medo de falar, eu tinha medo de pensar”. Essa ideia de ter medo de pensar é de uma violência… Já não é o lugar da fala, é o lugar do pensamento que está tolhido. Para mim também é muito forte quando vemos pessoas que nunca ousaram formular determinados pensamentos ou determinadas reflexões sobre a sua vida têm um espaço onde isso pode acontecer. Penso muitas vezes que estes espetáculos são um pretexto para juntar pessoas que de outra forma não se juntariam. Para falar sobre aspetos da nossa vida que de outra forma não seriam tratados.

O realizador e encenador mostra a sétima obra que se insere numa série de trabalhos em que recorre a não-actores

TOMAS SILVA/OBSERVADOR

Não o fazer no teatro é desaproveitá-lo?
(risos) Não, acho que o teatro tem várias vertentes e acho que há um teatro de repertório que é muito importante. No meu caso, gosto muito deste lado do risco no teatro, sobretudo da ideia de que o teatro permite-me criar várias ficções, vários géneros ficcionais. E tem uma plasticidade que me agrada, ligada à dança, à música… É quase um media indefinido para mim, na forma como trabalho. Aqui trabalhei com os Tia Maria a fazer a música, com a Vânia Rovisco [no movimento] e com a Djamilia Pereira de Almeida a fazer texto também.

Como é que se deu este encontro com a escritora?
Porque a Djamilia tem um livro…

As Telefones (2020)?

Sim, foi uma grande influência para mim. Essa ideia de que o telefone é quase “a grande forma literária da diáspora africana”, o telefone enquanto um “vínculo auscultador de carne”, como se diz às tantas no espetáculo. Mais mais do que As Telefones, a Djaimilia tem um livro chamado Ajudar a Cair (2017) em que ela tinha uma instituição à frente de casa dela, uma espécie de lar de idosos e de pessoas com problemas mentais. Ela ficou muito intrigada com aquilo e decidiu lá empregar-se e fez um grande trabalho de pesquisa. Quando li esse livro achei que ela era a pessoa ideal para trabalhar aqui. Gosto muito do trabalho dela e estes trabalhos são sempre oportunidades de conhecer criadores de quem gosto e com quem quero trabalhar. Esteve a recolher as narrativas de cada uma destas mulheres, a organização dos textos foi mais minha e alguns textos do espetáculo são tirados diretos de livros [dela] ou de coisas que ela escreveu.

Tirando a série “Sara” (RTP, 2018) e o documentário “Um Corpo Que Dança” (2022), as últimas criações têm sido focadas em comunidades frágeis, populações marginalizadas. A burguesia não lhe interessa?
(risos) A minha grande catarse em relação à burguesia foi fazer o “Sara”, porque não só era burguesia como era a minha classe. Eram trabalhadores de cinema e teatro, artistas, com todos os seus dilemas.

Foi a exceção ao hábito de olhar para fora, um momento para olhar para dentro.
Sim. Acho que foi um momento para olhar para dentro. Tenho muita curiosidade, sou uma pessoa muito curiosa e isso faz-me olhar mais para fora do que para dentro. Por outro lado, acho que o meu meio está em tal mutação que não sei se me interessa assim tanto falar sobre ele, a dita burguesia. Mas nada é definitivo.

A peça espelha a força de trabalho maioritariamente imigrante que sustenta a indústria do serviço doméstico Grande Lisboa

Estelle Valente/Teatro São Luiz

Não lhe interessa falar artisticamente. E enquanto reflexão?
Isso é permanente, claro. Refletir sobre o nosso lugar na sociedade, o nosso lugar de artista, o nosso lugar de classe média, português, branco, claro, isso é um lugar sempre de reflexão. Mas acho que essa reflexão aparece-me de alguma forma também neste espetáculo, em que dou voz àquelas pessoas, mas que estamos a construir em conjunto. Há um lugar de reunião e isso interessa-me mais.

O que espera que este espetáculo provoque?
O que um artista pode esperar de um trabalho é que ele abra mais as feridas, que as exponha de alguma forma. Que seja um sítio de interrogações. Mais do que dar respostas, acho que temos falta desses lugares de interrogação, lugares de — utilizando uma palavra difícil — verdade. Estamos rodeados de uma série de meios de comunicação, mas temos pouco contacto com o outro.

Este espetáculo coloca-me muitas questões. Sobre não só o lugar do migrante, mas o lugar da mulher, o lugar social. O nosso estado social é de tal forma frágil que acaba por excluir aqueles de quem mais necessita. Os verdadeiros trabalhadores parecem estar excluídos de terem uma residência, de terem uma nacionalidade. Nos últimos anos, com o aumento do custo de vida, estas pessoas estão cada vez mais num género de periferia. Temos aqui mulheres que têm 70 e muitos anos e que vivem em quartos na periferia de Lisboa e que trabalharam a vida toda. Isso não é de nenhuma forma razoável. Há aqui duas ou três mulheres que acho que deviam ser já razão suficiente para uma reformulação do sistema todo.

Sendo que depois quem vai ver o espetáculo não é necessariamente quem está em cima do palco.
Mas são as pessoas que podem decidir.

É essa a esperança do criador? 
Não, não. Criar é um trabalho de amor, sobretudo. Amor por estas pessoas, criar sem medo do risco, sem rede. Isso é algo que fui aprendendo, essa vontade de não haver terrenos proibidos, tabus.

"O que um artista pode esperar de um trabalho é que ele abra mais as feridas, que as exponha de alguma forma. Que seja um sítio de interrogacações. Mais do que dar respostas, acho que temos falta de lugares de interrogação"

Exude essa confiança agora, no processo também tem essa certeza que o resultado final vai ser bom?
(risos) Tenho. Tenho porque falhar é muito relativo. Fazer uma peça na qual não se assume riscos, na qual parece estar tudo muito estável e muito certinho, isso é que é um grande falhanço.

Nunca lhe aconteceu?
Já. Já me aconteceu fazer uma peça que é de repertório e aquilo ter corrido tudo muito bem, os ensaios, e chegar ao fim e nada funcionar.

Que peça era essa?
Ah, não digo. Mas o que podemos querer enquanto artistas é esse lugar onde se pode falhar. Existe esse risco e o risco é sempre extremo. Mas é onde se vai encontrar momentos de verdade, nesse risco. Claro que tenho as minhas angústias. Não pelo medo. Há algo muito paradoxal nestes processos com comunidades e com não-atores que é o facto de depois ter de apresentar um espetáculo. É como se chegasse a uma altura e tivesse de parar o processo e dizer “acabou”. Porque temos que parar, parar de improvisar. Começa-se num processo mais ou menos de fixação. Essa parte é paradoxal, porque na verdade quero sempre ter um espetáculo que é muito próximo do processo e desse lado mais selvagem.

Se, como diz, o processo de ensaios foi de três meses, seria impossível condensá-lo num espetáculo.
Desde logo por isso. Seria um espetáculo de 10 ou 12 horas. Mas tento sempre, assisto a todos os espetáculos. Se o espetáculo tiver 20 receitas eu vejo as 20.

Todos?
Todos. Em 20 anos deve ter havido três espetáculos meus que não vi por razões muito excecionais.

Porque tem essa necessidade?
Porque mudo muito durante a carreira do espetáculo.

Dá sempre notas no fim?
Não só dou notas como mudo cenas completas.

Pode dar um exemplo?
Há muitos. Então nestes com não-atores… No “Selvagem”, por exemplo, uma personagem desapareceu. Uma pessoa a partir do terceiro espetáculo não existiu. O [espetáculo] “Provisional Figures – Great Yarmouth” (2018) também teve isso. Ainda sobre o “Selvagem”, por exemplo, do dia do ensaio geral para a estreia houve um corte de 20 minutos. Tentámos, mas não funcionava. Portanto, há cortes. Isso mantém não só o espetáculo vivo, como o intérprete muito atento a toda a mudança e com a ideia de que não se pode instalar. Há sempre um novo estímulo. Isso é importante para manter o espetáculo vivo. No fundo, o espetáculo final é a última récita. A última vez que fizer este espetáculo, esse é que vai ser o objeto final.

Portanto, o melhor espetáculo é o sempre último?
Não sei, é como cozinhar, às vezes fica demasiado passado, passou do ponto, queimou (risos). Outras vezes está cru. Há um ponto que é o ponto ideal.

A cenografia do espetáculo é de Fala Atelier, o desenho de luz é assinado por Nuno Meira

Estelle Valente/Teatro São Luiz

Há pouco falou da importância do teatro em nos fazer questionar. Muito se tem dito e escrito a propósito da manifestação da ativista trans que aconteceu recentemente aqui no São Luiz.
A cena final [de “Pêndulo”] remete um bocado para aí.

As opiniões são muitas e diversas relativamente à ação política desse momento. Onde é que se posiciona?
Em relação a quê?

Ao episódio numa sessão da peça “Tudo Sobre a Minha Mãe”, em que uma mulher trans subiu a palco [Keyla Brasil reivindicava que a história da personagem Lola, uma trabalhadora do sexo trans, fosse contada e representada por uma actriz trans e não por um ator cisgénero].
Acho que as pessoas enquanto criadoras são livres de fazerem as escolhas que quiserem. As escolhas nunca devem ser condicionadas por uma agenda política que é exterior à criatividade do artista, do encenador. Parece não ter sido o caso se depois voltou atrás, mas se a escolha para representar aquele papel era uma atriz não trans, porque não? Acho que não tem de haver essa obrigação.

Depois, há pessoas que têm mais consciência política da sua escolha, outras que têm menos consciência. Mas isso é a consciência de cada um, cada um vive com a sua. Acho que a partir do momento em que estamos a trabalhar com o ator, o ator existe mesmo para representar o outro. Um homem representar uma mulher, uma mulher representar um homem, etc. O lugar de fala aqui é outra coisa. Eu aqui não estou a usar atores.

Sendo “Pêndulo” com não-atores que falam sobre eles mesmos, a questão nem se coloca.
Sim, as pessoas estão se a representar a elas próprias, é a sua biografia, é uma forma de autoficção. Nunca ninguém vai representar estas mulheres porque elas se representam a elas próprias. São tipos de trabalhos muito distintos.

Porém, dizia-me que este protesto teve impacto na cena final de “Pêndulo”. De que forma?
Há esta ideia de como se os artistas tivessem de ser legitimados por uma série de agendas políticas, e eu discordo totalmente disso. A cena final em que dizem “tu não podes falar de mim” é uma ironia. Estive duas horas a falar sobre elas num espetáculo que construímos juntos. O artista é alguém que olha para fora, para fora dele, para o mundo que o rodeia, fala sobre o que o rodeia. Seria muito triste se nós falássemos só de nós próprios. É um género de provocação, quase uma ironia estarem a fazer aquilo no fim.

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