“A Sara só existe na pele da personagem e não tem vida pessoal”. Beatriz Batarda descreve assim Sara, a personagem que interpreta na série de Marco Martins com o mesmo nome, uma ideia original de Bruno Nogueira e escrita a três mãos (Bruno Nogueira, Marco Martins e Ricardo Adolfo). “Sara” chegará à RTP a 7 de outubro, mas os seus dois primeiros episódios passam esta quinta feira, dia 3, no IndieLisboa numa sessão especial (Grande Auditório da Culturgest, 21:30), já esgotada, e novamente no dia 6 à mesma hora na mesma sala.

O que Beatriz Batarda quer dizer com “não ter vida pessoal” tem a ver com uma particularidade de Sara. É uma personagem ausente da realidade, só vive para os seus papéis, papéis intensos, em que lhe pedem sempre para chorar. O seu pai está doente, com uma doença aparentemente terminal, e a condição parece ser o catalisador para que Sara deixe de conseguir chorar. O seu talento, aquilo pelo qual os outros a vêem, desapareceu. Abandona a rodagem de um filme histórico em que está a participar, deixa a produção em pantanas e decide virar-se para o mundo das telenovelas.

“A ideia surgiu de várias coisas”, conta Bruno Nogueira. “Uma delas era a curiosidade de ver a Beatriz a experimentar televisão. Isso iria criar uma coisa com que eu gosto de jogar, que é colocar as personagens em situações desconfortáveis. E também iria tirar a Beatriz da sua zona de conforto”. Nogueira também obrigou o realizador Marco Martins a entrar em territórios desconhecidos:

“Nunca tinha pensado em trabalhar em televisão, não era um formato com o qual tivesse algum desejo de trabalhar. A forma como se faz televisão em Portugal é muito pobre e os tempos de produção são curtos. E foi também uma oportunidade para trabalhar humor, é algo que eu gosto, mas nunca iria escrever uma peça, ou um filme, nesse registo.”

[o trailer para os primeiro dois episódios de “Sara”:]

A viagem de Sara é uma experiência trágico-cómica. É algo que se percebe logo nos dois primeiros episódios, a mudança na vida protagonista, do cinema para a televisão, é também uma forma de se falar do meio em Portugal. Do meio artístico, dos actores, mas também das diferenças entre produzir para cinema e para televisão. Fica claro, também, a meio do segundo episódio, que a série entrará num registo mais humorístico do que aquele que a introdução do primeiro episódio sugere. Há alguma naturalidade nisso, Marco Martins explica: “A meu ver, o tom mantém-se nos episódios seguintes. Acontece que a partir do momento em que a Sara entra no mundo da televisão e começa a fazer novela, a sátira tem um potencial humorístico muito maior. Isso tem a ver com aquilo que se exige a uma actriz na televisão, fazer trinta e tal cenas num dia, com a personagem constantemente a mudar.”

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Beatriz Batarda, que se estreia em televisão em Portugal (anteriormente só havia feito no Reino Unido), gostou dessa ideia: “A série oferecia-me a possibilidade de explorar campos e géneros de representação que vão do humor à tragédia. Há uma variedade de registos, um hiper-realismo, uma contenção grande, e depois uma teatralidade mais carregada. E há um sentido de autocrítica com que me identifico muito, da exigência da personagem com ela própria.”

O elenco da série é vasto e tem actores de vários meios, como Nuno Lopes, José Raposo, Miguel Guilherme, Albano Jerónimo, Rita Blanco, Tonan Quito, Cristóvão Campos e o próprio Bruno Nogueira. Uma das intenções de “Sara” é precisamente representar esse meio em Portugal e como Batarda conta “Retrata a vida do actor e brinca com a ideia dos filmes. Os caminhos que um actor pode seguir e brinca com os preconceitos do lado intelectual e do lado comercial, brinca com ambas as partes do retrato”.

8 fotos

Bruno Nogueira interpreta uma espécie de guru espiritual, no qual Sara procura auxílio neste salto na sua carreira. A personagem de Bruno reflecte algo que faz parte do lado social, ou das revistas, do actor, mas que também afecta o dia-a-dia de quase todos:

“O Facebook, as redes sociais, ocupam vazios em ti, numa altura em que as pessoas querem ser tocadas por tudo aquilo que sentem. É um reflexo dos tempos.”

Sara procura no guru, ou no mentor, falso mentor, algo, alguma coisa, que dê algum sentido ao que vai fazer. Ou melhor, vai à procura de se sentir forçada a que isso faça sentido. Mesmo que não exista qualquer problema, ou que o problema se crie por si só, a personagem de Bruno reflecte esse preenchimento do vazio com algo que, esmiuçado (e nem precisa de ser bem esmiuçado), não faz qualquer sentido.

No início deste ano Marco Martins teve em cena “Actores” (pela na qual participava Bruno Nogueira) no Teatro Municipal São Luiz e agora leva para a televisão um outro estudo sobre actores. É algo que lhe interessa?: “Interessa-me no sentido em que o projecto do actor enquanto esta espécie de atleta emocional, num meio que é muito precário, e que agora se começa a falar muito. O meio português é muito específico, os actores não têm uma garantia de trabalho continuado. E estão entalados nestes dois extremos, ou fazem teatro, ou vão para a televisão fazer telenovela. É uma coisa que não se passa noutros países. Um actor de teatro consegue ter uma vida estável de teatro, saber que vai trabalhar ao integrar uma companhia. É impressionante saber que actores como o Nuno Lopes ou a Beatriz Batarda não sabem o que irão fazer no próximo ano. A instabilidade que isso provoca começou a interessar-me e pareceu ter uma certa urgência falar sobre ela. Do actor que é obrigado a fazer os sports da rádio… esta espécie de violência constante da precariedade da profissão. Isso esteve na origem de ‘Actores’ e, depois, obviamente, a partir da ideia do Bruno, desta actriz que não é capaz de chorar, acho que também volta a entrar nesse lado. Se calhar é uma coisa que, com a idade, vejo mais urgência em falar sobre. No início não pensava nessas coisas.”

Urgente ou não, ainda se vai ter de esperar um pouco para se ver “Sara” na sua totalidade. Para já, os dois episódios que serão transmitidos no IndieLisboa mostram que a aposta de há uns anos da RTP em apostar em ficção nacional colheu frutos e foi capaz de criar produtos diferenciadores do que anteriormente se fazia a esse nível no âmbito nacional. “Sara” pode não chorar, mas vai fazer rir.