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KIMMY SIMÕES/OBSERVADOR

KIMMY SIMÕES/OBSERVADOR

Margarida Marinho. "Se perdi na conta bancária, ganho no ar que respiro"

Aos 55 anos, a atriz portuguesa está como quer: a dominar o tempo e o trabalho. De 4 a 6 de Outubro está no CCB, em “A Fera na Selva”, com encenação de Miguel Loureiro.

Margarida Marinho é uma fera. Em “A Fera na Selva” – conto de Henry James, adaptado para teatro por Marguerite Duras e encenado no CCB, agora, por Miguel Loureiro – parece interpretar só com os olhos ou com as pontas dos sapatos altos. É um espectáculo onde nada acontece, a não ser dois amigos (à atriz junta-se Filipe Duarte, em palco) em constante diálogo intelectual, em azáfama discursiva, seguramente emocional. A pasmaceira filosófica-literária que também parece ter sido a adolescência de Margarida Marinho, que aqui recuperamos.

Antes que trate de dizer “nunca mais a vi em telenovelas”, pense que essa foi uma opção da atriz, que se tem dedicado à escrita (já editou um romance infanto-juvenil e vem outro a caminho), às séries, a produções onde o oxigénio existe e chega a ser visto como uma coisa boa. Fera que é fera mete o dedo na ferida. Uma conversa sem receios, da licenciatura em Sociologia ao caril que tanto gosta de cozinhar.

Margarida Marinho e Filipe Duarte são os protagonistas de “A Fera na Selva”

Numa das últimas interpretações que fez na televisão, na série “País Irmão”, era ministra da Cultura, assim ao estilo Gabriela Canavilhas. Se isto fosse realidade, qual seria a sua primeira medida?
A primeira medida era forçar o sorriso. Acho que é muito importante o humor enquanto ferramenta de vida. A escola é essencial, acho que o teatro é uma arma extraordinária para fazer bem, à mente, ao corpo e a comédia, o rir, é um veículo muito rápido para atingir os corações das pessoas, é para a veia, faz mexer muitos músculos. A minha primeira medida passaria pela escola, pela infância, pelo teatro, e uma coisa que quanto a mim é óbvia que é através destes textos, portugueses ou não, que se pode explorar o verbo e o texto, acredito nos textos habitados. E há muitos. Seria uma forma muito simples de fazer política cultural.

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Há pouco teatro na educação portuguesa?
Muito pouco teatro, não me parece que seja uma disciplina obrigatória no sentido em que devia ser uma medida global, nacional, e tão simples quanto ensinar as crianças a escovar os dentes. Através dessa literatura, e através do corpo – porque o corpo é obrigado a sentir, a tocar – criaria aquilo que me parece que talvez falte na escola portuguesa, nos primeiros passos, que é o autoconhecimento. Não estou a falar em meditação, nem em auto-ajuda, estou a falar de, mais tarde, em situações limite, sabermos utilizar as ferramentas. Isto tudo de uma forma natural. Para mais tarde não se estranhar textos nem se estranhar estar em sociedade.

E portanto seria mais este género de medidas do que o desejado 1% para a cultura.
Nós convivemos com uma política cultural bicéfala, entre Lisboa e o Porto, não temos mercado, portanto, acho que faz todo o sentido a distribuição de um valor para o teatro e quanto maior melhor. Há mais que se pode fazer, nomeadamente na forma como um espectáculo é sponsorizado em Portugal, se isso interessar às empresas a coisa também se transforma. Ao mesmo tempo, parece-me que precisamos de uma política global, integrada, que vai muito para além do teatro.

Deduzo que tenha estado atenta à polémica do modelo de apoio às artes.
Sim, acho que temos de nos perguntar o que queremos para as nossas crianças. Já não falo de mim. Como é que queremos que as coisas sejam feitas? Se não olharmos para o processo educativo de uma forma mais realista, vamos estar sempre desadaptados. Precisamos de incutir criatividade nos modelos que apresentamos nas escolas. Por mim, é mais o mistério da educação e da cultura, é mais isso. Há uma nova realidade que está aí.

Mas uma coisa são as crianças e o futuro, outra é o presente, jovens formados que não têm como trabalhar, que não têm possibilidade de ser apoiados, com processos de candidaturas intermináveis.
Sim, são modelos de exclusão, essas candidaturas tentam criar diferenciação, e pelo cansaço consegue-se muita coisa, é uma velha técnica, mas resulta. Não é fácil mudar este modelo. É preciso alguém com muita energia, sem medo de falhar, sem medo de ver o seu lugar posto em causa. Além disso, há que responsabilizar a comunidade artística, ela tem que se unir e isso não acontece. Os acessos têm que ser democráticos. As capelinhas já não fazem sentido. A nossa forma de sindicato não nos congrega, a comunidade artística ainda não é uma classe.

"Não aconteceu nada, não fiz teatrinhos para a família, não cantei. Nasci em Lisboa, no Colégio Figueiredo, de meninas, em Campo de Ourique, que era da minha bisavó. Havia uma tradição ligada à literatura, à pintura, em relação ao teatro não havia ninguém, fui eu que nas últimas gerações inaugurei essa área."

Dito isto tudo: não será demasiado arriscado dizer a um jovem para, se assim o desejar, seguir teatro?
Não. Tenho o exemplo do meu filho, estava muito bem encaminhado nas ciências políticas, tinha tudo para ir fazer o passo seguinte de uma forma brilhante e quer ser realizador, portanto está a andar não sei quantos anos para trás e vai para um mercado que é um tiro no escuro. Tem o pai que é realizador, a mãe que é atriz e que escreve, ele sabe bem qual é a realidade imediata.

O que é que um pai artista diz a um filho que também o quer ser?
Aqui foi ao contrário, foi quando houve uma inclinação para direito ou economia, nós ficámos muito preocupados [risos]. Tivemos uma reunião familiar: mas tu tens a certeza? Que é que estás a fazer da tua vida? E ele disse que estava a fazer o que achava que tinha que fazer. E agora voltou. O que é que se diz? Força, vai. Não há segurança em lado nenhum.

E em relação à sua juventude, como é que veio aqui parar, aconteceu-lhe algo em jovem que a tenha precipitado para ser atriz?
Não aconteceu nada, não fiz teatrinhos para a família, não cantei. Nasci em Lisboa, no Colégio Figueiredo, de meninas, em Campo de Ourique, que era da minha bisavó. Havia uma tradição ligada à literatura, à pintura, em relação ao teatro não havia ninguém, fui eu que nas últimas gerações inaugurei essa área.

Isto começou na universidade, certo?
Sim, sou licenciada em Sociologia, fiz o ISCTE e frequentei o Íbis, que era o grupo de teatro, ao mesmo tempo tive alguma experiência em direito. Por outro lado fui fazer o IFICT – Instituto de Formação, Investigação e Criação Teatral, com o Adolfo Gutkin, que era uma instituição relacionada com a Gulbenkian. Tudo aconteceu de forma muito natural, talvez porque no meio das minhas aulas de teorias sociológicas éramos obrigados a apresentar textos, já de uma forma muito teatral. Ao mesmo tempo, comecei a trabalhar e a estudar em simultâneo.

Chegou a exercer sociologia?
Ainda escrevi alguns artigos académicos, mas muito rapidamente ou estava num sitio ou estava noutro.

Dizia que não aconteceu nada na sua juventude, que não tem nenhum momento que sinta que a despertou para a interpretação. Isso é quase estranho, todos nos agarramos a uma epifania qualquer.
É antes uma sensação muito subtil de naturalidade, é um fenómeno curioso, é como se tudo já tivesse desenhado e eu simplesmente tive que seguir aquele trilho de pão, mas estava lá indicado.

Foi só ir.
Isso, foi só ir, estava lá. Não foi um processo ligado ao Eureka, nem nada transcendente.

“Fazia mais teatro, muito mais cinema, muitas co-produções com França de que não reza a história, tive outras funções, fui secretária, fui assistente do realizador, assistente de script, ajudei a escrever argumentos”

Quando começou fazia mais teatro do que hoje.
Não faço tenções de projetar, nunca projetei e sempre estive muita atenta ao que me estava a acontecer de momento. Na altura não percebi, mas hoje acho que é uma qualidade estarmos centrados no que estamos a fazer.

No momento.
Sim, no momento, até porque agora se fala mais disto. Houve muita gente que mastigou esta questão, o tempo. Isso ajudou-me a perceber que o que me aconteceu de uma forma intuitiva… agora fala-se disto de uma forma sistematizada. Mas sim, fazia mais teatro, muito mais cinema, muitas co-produções com França de que não reza a história, tive outras funções, fui secretária, fui assistente do realizador, assistente de script, ajudei a escrever argumentos, nada disto está em currículo porque isso não foi importante, o importante foi ter trabalhado com gente que me passou tanta coisa. Foi uma aprendizagem feita de uma forma silenciosa, na sombra, mas que me ajuda a construir aquilo que posso agora reverberar.

Que encenadores, realizadores, atores a marcaram?
Tanta gente… Olha, o Giorgio Barberio Corsetti, porque me mostrou algo que achava que nunca ia conquistar, o trabalho com o meu corpo, não tinha uma escola de dança e em muito pouco tempo ele mostrou-me que podemos conquistar uma disciplina, como utilizar a memória física. Depois tive a sorte danada de ter trabalhado num espectáculo que juntou a Eunice Muñoz e o João Grosso, artistas que têm uma grande disponibilidade e são pessoas extremamente generosas, deram-me um berço naquele espectáculo, de uma forma muito interessante.

Falamos de?
“Dom João e a Máscara”. Ao mesmo tempo tive a sorte de conhecer a Germana Tânger, deu-me ferramentas, corrigiu-me. Na mesma altura o João Perry, que me passou um amor profundo pelas artes plásticas. A alegria do José Wallenstein, a forma sem medos com que ele construiu diferentes encenações.

Algumas com a Margarida.
Várias, várias. Tenho um enorme desejo que ele volte a encenar, é uma pessoa que faz muita falta. Mais tarde o Luís Miguel Cintra e a Cristina Reis, a paisagem estética fundamental que a Cristina metia em qualquer produção da Cornucópia. Mais tarde a Solveig Nordlund, cruzei-me com ela no cinema e experimentei o teatro com ela, e logo com Bergman. É uma bênção podermos estar perto da paisagem política, espiritual, filosófica do autor que escreveu aquelas palavras, o que ele estava a ver naquele momento.

A Margarida dizia que não gosta de projeto. Como é que surge este encontro com o Miguel Loureiro, visto que nunca tinham trabalhado juntos.
Sim, é verdade. Este encontro nasceu de uma amiga comum, que me terá falado do projeto e acabou por ser uma peça que entrou no momento certo, para mim e para ele, fez todo o sentido. Tinha outro projeto, um filme, que acabou por não acontecer. De repente havia uma outra coisa de televisão e teatro, e foi assim. Escolhi.

Já gostava do trabalho dele?
Sim, já havia essa empatia. Embora nada se conheça até se trabalhar. Já conhecia o Filipe Duarte, já sabia até onde ia a generosidade e o talento dele, já era um presente. O Miguel tem uma inteligência muito fina, tem um sentido de humor que vai ao encontro daquilo que falávamos no início da nossa conversa, acho que o Miguel muito rapidamente chega a muita gente através da sua elaboração intelectual. A isso acresce que ele também é ator, ele também sofre nas tábuas, é o primeiro a reconhecer as nossas qualidades e defeitos. Ele lança as suas pistas e dá-nos a liberdade total de o contradizer.

Presumo que o texto também tenha sido importante na escolha deste projeto.
Bom, nunca se sabe o que vai acontecer. Este texto é um contratempo, não é um daqueles fáceis que atinge a moleirinha assim que entramos na sala. É preciso ter tempo para ouvir este texto, o tempo é um tempo que se instala quando nos sentamos nas cadeiras.

O Miguel Loureiro disse que são seis combates de retórica em seis quadros.
Sim, onde há uma hipótese de possibilidade, há um pacto entre um homem e uma mulher que se encontram e que voltam a encontrar anos mais tarde e através do passado ela vai resgatar este homem. Qual Narciso, fica preso à sua ninfa e a ninfa fica presa ao Narciso. E a fera, que o título sugere, pode ser o quê? Pode ser o nada, ou seja, ficar à espera que algo sobrehumano aconteça e nunca acontece e portanto o não acontecer é a fera. Por outro lado, é passar a vida toda ao lado de uma possibilidade e nunca a ver, pode estar aí a outra fera. Por outro lado, alguém que depende de alguém que reconheça o seu ego, pode estar aí a outra fera.

Vamos imaginar que um amigo chega ao pé de si e lhe fala de uma situação parecida, essa ideia de achar que algo de terrível ou transcendental lhe vai acontecer. O que lhe dizia?
Não sei… neste momento acho que a nossa biblioteca humana já abre tantas possibilidades, não tenho qualquer tipo de preconceito. Se alguém se chegar ao pé de mim com uma intuição ou uma clarividência, no sentido em que está convencido que algo lhe vai acontecer… bom, primeiro depende da relação que tenho com essa pessoa. Se é alguém que está dentro do meu círculo familiar, aí teria de estar muito atenta ao progresso da coisa. Não sei. O que sei é que neste tempo desta peça não há televisão, não há telemóveis, não há signos da contemporaneidade, mas há uma modernidade na forma como as pessoas se relacionam com o mistério e com o divino. E hoje nós continuamos muito curiosos com aquilo que desconhecemos.

"Achei que era tempo de procurar outros textos, nós artistas precisamos de textos que possam ser habitados, ora se o texto está a sair a trezentos à hora não mora lá ninguém."

Isto passa-se num ambiente aristocrata, palaciano, e já no “Vidago Palace”, para a RTP, também percorria algo assim. Tem algum fascínio particular por este género de cenário?
Não, de todo. Gosto de viajar entre divisões, é a grande liberdade que temos enquanto atores, é revisitar diferentes formas, cenários.

Foi mais ou menos por essa altura, da “Vidago Palace”, do “País Irmão”, que voltou a surgir na televisão, depois de ter parado de fazer telenovelas.
Sim, ainda agora rejeitei uma, não se pode ter tudo, não consigo fazer tudo, tenho o desejo de conseguir fazer as coisas com respiração. Se perdi na conta bancária, ganho no ar que respiro. Não digo que vou deixar de fazer telenovelas. A conjuntura da nossa vida é decisiva.

Li algures que disse que a partir de um elevado número de episódios as telenovelas esgotam-se. Foi isso que a fez procurar este formato da série?
Sem dúvida. As televisões precisam de ganhar dinheiro com aqueles produtos, a partir de certa altura o milagre começa a ficar gasto, ao fim de um tempo os autores estão cansados, os atores estão cansados, é preciso criar estímulos, meter areia no sistema. Achei que era tempo de procurar outros textos, nós artistas precisamos de textos que possam ser habitados, ora se o texto está a sair a trezentos à hora não mora lá ninguém.

Ao mesmo tempo, cada vez há mais episódios e as pessoas querem-nos.
Muito. As pessoas continuam a querer, mas se não criarmos necessidades nas pessoas elas também não pedem. Ou seja, se servir um menu em casa e nunca apresentar novos pratos, a família não vai pedir mais nada, dentro dos cinco pratos vai fazer exigências.

Cozinha bem?
Adoro cozinhar, estou a ficar um bocado vegetariana, estou chata, mas ainda como carne. Sou muito jeitosa na cozinha.

Qual é a sua especialidade?
Não sei… caril é sempre uma boa aposta.

Voltando às séries, o que encontrou nesses contextos de trabalho?
Uma alegria imensa. Antes da peça estive a fazer uma participação na série do Ivo M. Ferreira, “Sul”, e de facto a energia que está latente nas pessoas que estão a criar neste tipo de produto é incrível, estão com um power diferente, permite o exercício da nossa profissão de outra forma. Aprendemos melhor, damos mais, divertimo-nos muito, estamos mais vivos.

Entretanto escreveu uma história infanto-juvenil publicada no final de 2017 chamada Tattoo – De Noite, Um Cavalo Branco.
Sim, escrevo há muitos anos. Contos para revistas, jornais, crónicas. Um dia achei que estava pronta, mas, contrariamente àquilo que as pessoas me pediram, fui para a literatura infantil. Chateei os editores, não é isso que vende em Portugal, as crianças não leem, mas era isso que queria fazer.

Porquê?
Era mais forte do que eu. Há coisas que superam os autores, mesmo que não se ganhe quase nada, não é essa a questão, não vale a pena contrariar essas coisas urgentes. A Tattoo, que é a heroína deste romance infanto-juvenil, tinha que nascer.

Andava por aqui?
Sim, batia-me à porta. Tinha que sair. Agora já estou com outra heroína… bem, outra heroína, parece que estou a falar de droga.

Mas essa é só uma.
Mas a verdade é que isto é aditivo. Só parei agora para a peça.

Essa sobreposição de processos é tramada?
Sim, o contágio é tramado, quem começa a escrever e escreve todos os dias e escreve de uma forma disciplinada, tem o seu raciocínio, quando entramos num autor que não nós temos que entrar naquele imaginário e como reconhecemos o processo da escrita é como se percebêssemos a pena, a pluma. A nossa pluma, nessa altura, tem que ficar fechada numa caixa. Temos que ter a liberdade de sermos bons espectadores de um autor. É muito giro.

“Quero mesmo viver com esta abertura de espírito, com tempo, não posso dizer que não nem que sim”

Escrever ajudou-a a compreender melhor?
Sim, sem dúvida. Já represento de outra maneira, se calhar vocês não percebem nada, mas para mim, como é uma coisa de imaginação, que tem a ver com esta caixa de expressão que todos temos, acho que é mágico.

Esta nova história é também infanto-juvenil?
Sim, só ainda não sei o formato, não sei se será uma novela, um conto, nasceu como um conto, não queria que fosse romance, não sei.

Há coisas que são mais fortes que os autores.
Pois, pois é.

Quando é que escreve uma peça de teatro?
Não sei, o que for será. Quero mesmo viver com esta abertura de espírito, com tempo, não posso dizer que não nem que sim.

Sente-se privilegiada por poder decidir assim, escolher o que quer, no seu tempo?
É um luxo. Neste momento em Portugal, com as condições que nós temos, nesta versão de democracia, e de política cultural que nós temos… não sei quanto mais tempo vou conseguir viver assim, mas não interessa, neste momento em que estamos a falar é um luxo.

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