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Sem medo e com um tom seguro, María Corina Machado enfrentou diretamente Hugo Chávez na Assembleia Nacional venezuelana em 2011, criticando as políticas seguidas pelo ex-Presidente. “Expropriar é roubar”, disse, uma frase que se tornou quase uma imagem de marca para a engenheira de 56 anos. Para lhe responder, o antigo Chefe de Estado adotou um tom condescendente, atirando-lhe: “Águias não caçam moscas”. Treze anos após este episódio, a mulher empreendeu voos mais altos e tornou-se o principal rosto da oposição da Venezuela a Nicolás Maduro, o sucessor e delfim de Hugo Chávez.
Com ideias liberais num país virado à esquerda, María Corina Machado enfrentou por várias vezes o regime. Anticomunista assumida, organizou manifestações contra o governo, criticou duramente as políticas do chavismo e até defendeu o uso da força para retirar Nicolás Maduro do poder. Raras vezes abandonou o país e combateu sempre para que a Venezuela seguisse um rumo diferente. A sua teimosia e coragem valeram-lhe o cognome de “dama de ferro”, uma vez que é filha de um empresário da área da metalurgia, cujas empresas foram expropriadas por ordem de Hugo Chávez.
O regime sempre a destratou, acusando-a de levar a cabo um “golpe imperialista” em conluio com os Estados Unidos da América. Hugo Chávez classificou os movimentos políticos liderados por María Corina Machado como “conspiradores, golpistas e lacaios” do governo norte-americano. Na mesma linha, Nicolás Maduro tem denunciado que a mulher planeia “ações desestabilizadoras” contra o país.
Nas eleições deste domingo, o regime impediu que María Corina Machado concorresse, pelo que não poderá ser a próxima Presidente da Venezuela. Nas urnas, Nicolás Maduro enfrenta Edmundo González, um diplomata que inicialmente se envolveu com o regime de Hugo Chávez, mas que se foi afastando do chavismo e agora é um dos principais rostos da oposição. Contudo, não há quaisquer dúvidas de que a “dama de ferro” venezuelana está por trás da candidatura do homem de 74 anos que pode derrubar o atual Presidente.
Os dois críticos do regime têm uma “relação estupenda”, descreveu María Corina Machado, numa entrevista ao El País. “Conhecemo-nos, tínhamos apreço e afeto um pelo outro, mas não éramos tão amigos. Agora somos uma equipa, realmente uma equipa. Ele fez um trabalho espetacular”, elogiou. As sondagens mais recentes mostram que Edmundo González deverá ganhar as presidenciais, mas subsistem várias dúvidas sobre o processo eleitoral venezuelano. O receio de que possa haver fraudes eleitorais adensou-se esta sexta-feira à noite quando se soube que uma comitiva de dez eurodeputados, onde se incluía Sebastião Bugalho, foi impedida de entrar no país para acompanhar as eleições deste domingo.
“Até ao fim” — este é o lema da campanha de María Corina Machado, que garantiu que nunca vai desistir da luta “pela conquista da democracia através de eleições livres e limpas”. “Maduro e o seu sistema criminal escolheram o pior caminho: umas eleições fraudulentas. Isso não pode acontecer. Que ninguém duvide: isto é até ao final”, assegurou.
As origens portuguesas, as ligações a Bush e a associação cívica: a vida antes da política María Corina Machado
Nascida em Caracas a 7 de outubro de 1967, María Corina Machado é a mais velha de quatro irmãs. É filha de um empresário na área da metalurgia e de uma psicóloga. Há uma particularidade no nome da política — o último nome é de origem portuguesa. Questionada pela Agência Lusa sobre esse facto, a mulher explicou que o seu apelido vem de uma “família de Portugal, há já vários séculos na Venezuela e que se radicou na Ciudad Bolivar, no estado de Bolivar, no sul da Venezuela”.
Estudou num colégio católico feminino em Caracas, passou uma temporada nos Estados Unidos e licenciou-se em engenharia industrial na Universidade Católica de Andrés Bello. Começou a carreira a trabalhar em empresas do setor industrial, mas também dedicou o seu tempo a organizações de combate à pobreza. Entretanto, Hugo Chávez venceu as presidenciais em 1998 e María Corina Machado entrou em rota de colisão com o regime, discordando das suas ideias.
Em 2002, fundou a associação cívica Súmate. Numa reunião um ano antes com o opositor Alejandro Plaz, os dois combinaram criar uma ONG que tentasse mudar politicamente a Venezuela. “Eu tinha essa sensação inquietante de que não podia ficar em casa a ver o país polarizar-se e a entrar em colapso. Tínhamos de manter o sistema eleitoral, mas mudar o rumo, para dar aos venezuelanos a oportunidade de dissiparem as tensões antes que elas explodissem. Era uma escolha de votos em vez de balas”, justificou.
O primeiro objetivo do Súmate? Fazer um referendo para perceber se Hugo Chávez devia permanecer na presidência da Venezuela. Conseguiram-no em 2004, mas 59,1% dos venezuelanos terão votado para que o Chefe de Estado se mantivesse no cargo, ainda que tenha havido suspeitas de fraude. O regime chavista, por sua vez, ia tentando colar à associação cívica a imagem de ser um cavalo de tróia dos Estados Unidos em território venezuelano. Para essa fama, contribuíram as doações norte-americanas para a associação cívica, algo que foi confirmado pela instituição.
Ao longo dos anos, María Corina Machado teve sempre um contacto permanente com os norte-americanos, principalmente com a administração Bush. Aliás, até chegou a encontrar-se com o antigo Presidente norte-americano em maio de 2005. Anos mais tarde, chegaria a presidente do Súmate e continuava a vigiar atentamente todas as movimentações políticas de Hugo Chávez — este via-a, segundo o New York Times, como um “membro da elite corrupta que estaria a cumprir ordens” de Bush.
A entrada controversa na política: o “capitalismo popular”, os protestos e as acusações de que queria matar Maduro
A entrada na política concretizou-se em 2010, quando foi eleita deputada para a Assembleia Nacional. Enquanto independente, mostrou-se muito crítica do governo, apostando num programa liberal a que deu o nome de “capitalismo popular”. “Queremos políticas sociais que não gerem dependência. Quem acredita que vai derrotar Chávez oferecendo o mesmo está bem enganado”, assinalava a antiga parlamentar num discurso há 14 anos, citada pelo El País.
De esquerda ou de direita? María Corina Machado não respondia à questão. “Se se defender que a erradicação da pobreza é uma responsabilidade de toda a sociedade e é-se de esquerda por isso, então eu sou de esquerda. Se acreditar na liberdade pessoal, nos investimentos e na produtividade é algo de direita, então sou de direita”, argumentava a mulher, mãe de três filhos.
Tentou concorrer às presidenciais da Venezuela em 2012 contra Hugo Chávez, mas o bloco que representava a oposição — que fez uma espécie de eleições diretas — preferiu apostar no governador Henrique Capriles. María Corina Machado apenas obteve 3,7% dos votos. Um ano depois, o Presidente venezuelano morreu de cancro e a sucessão foi traçada: Nicólas Maduro.
A forma como Nicolás Maduro chegou ao poder (primeiro de forma interina e depois com eleições que o Presidente venezuelano ganhou por margem muito curta) motivou protestos nas ruas no início de 2014. María Corina Machado foi uma das principais organizadoras de manifestações que duraram quatro meses e que tinham como objetivo restituir a ordem democrática na Venezuela, protestar contra a escassez de alimentos e contra a crise económica.
O regime reagiu com pulso firme e muita brutalidade: nestes protestos, morreram 43 pessoas e 486 ficaram feridas. O Tribunal Internacional de Justiça, sob a tutela da Organização das Nações Unidas, abriu mesmo um processo contra Nicólas Maduro, acusando o Presidente de levar a cabo “violações de direitos humanos” ao reprimir as manifestações. “Longe de serem atos isolados, os crimes foram coordenados e cometidos de acordo com as políticas estatais, com o conhecimento e o apoio direto dos comandantes e altos funcionários do governo.”
Em março de 2014, María Corina Machado perdeu o mandato de deputada por ter aceitado ser embaixadora do Panamá na Organização de Estados Americanos para denunciar o que se passava na Venezuela. O regime venezuelano justificou que, como desempenhou funções como “funcionária do governo” panamiano, agiu contra o Estado. “A função diplomática não apenas vai contra a função legislativa para a qual foi previamente eleita, assim como está em franca contradição com os deveres como venezuelana e como deputada na Assembleia Nacional”, argumentou o Supremo Tribunal.
E os tribunais do país deixavam igualmente um aviso. Iria perder “imunidade parlamentar” e podia ser “investigada diretamente por tudo o que está a acontecer” na Venezuela, numa referência aos protestos que estavam a tomar conta das ruas. Dois meses depois, o regime acusou mesmo María Corina Machado de querer assassinar Nicolás Maduro, planeando um “banho de sangue no país para promover a intervenção de uma potência estrangeira”.
Apesar de ter negado todas as acusações delirantes de que era alvo, designando-as como uma “infâmia”, a malha estava a apertar-se para María Corina Machado. Em resultado de todas estas polémicas, ficou proibida de deixar a Venezuela. Como relata a CNN internacional, a dissidente política diz que ainda tem dificuldades em deslocar-se dentro do país, uma vez que algumas companhias aéreas recusam transportá-la.
Desde aquele ano, a política tornou-se uma voz mais firme na luta contra o regime. Organizou manifestações, tentou reunir apoio no estrangeiro e defendeu que o país vive numa ditadura. No rescaldo de a Assembleia Nacional venezuelana não ter aceitado Nicolás Maduro como Presidente e Juan Guaidó se ter tornado líder do país, María Corina Machado declarou-lhe o seu apoio para “reconstruir o país” de um “Estado criminal”.
O “fenómeno político” que não pôde concorrer às presidenciais
Em 2019, Juan Guaidó tornou-se o principal rosto da oposição venezuelana, sendo apoiado por vários governos do Ocidente. Obteve o respaldo da política de 56 anos, que, nunca tendo abandonado o país, continuava a lutar contra o regime à sua maneira. Porém, à medida que Nicolás Maduro ia dinamitando as possibilidade de Juan Guaidó se tornar Presidente, era preciso alguém que unisse os movimentos políticos críticos do regime.
Juan Guaidó acabou por fugir para o exílio, para Miami, em 2023, um ano antes das eleições presidenciais. Neste contexto, os movimentos da oposição olharam para María Corina Machado como uma forte candidata a concorrer contra Nicolás Maduro. E, numa espécie de eleições primárias, votaram massivamente na engenheira, que somou mais de 90% dos votos.
Uma cara conhecida dos venezuelanos que insistentemente lutou contra o chavismo — é assim que muitos veem María Corina Machado. Ao El País, Jesús Seguías, analista político, não tem dúvidas de que María Corina Machado materializa o “sentimento de mudança e de oposição ao governo que é maioritário na Venezuela”. “Machado já ultrapassou todos os limites da oposição. É uma líder nacional e encarna a ilusão” da mudança no país.
Ao mesmo jornal espanhol, Diego Bautista Urbaneja, membro da Academia Venezuelana de História, destaca: María Corina Machado é um “fenómeno político” com os seus discursos emocionais e o seu estilo de confronto político. “É uma imagem que é um símbolo, um fervor popular. Falta saber qual será a duração e profundidade.” Num país com uma taxa de inflação galopante em que mais metade da população vive na pobreza e sete milhões de pessoas abandonaram o país nos últimos anos, a engenheira de 56 anos é vista como o rosto da mudança e da esperança.
À Swissinfo, a venezuelana Dominga Pérez, de 42 anos, assinala que María Corina Machado dá essa “esperança” ao país. Mariana Escobar, de 28 anos, concorda: “Queremos que ganhe, para ver se saímos desta crise. Aqui todos somos da oposição”, garante, ressalvando: “Antes éramos chavistas, mas as pessoas acordaram”.
Apesar do capital político que foi obtendo nos últimos tempos, o regime venezuelano não a deixou participar nestas eleições presidenciais. Em causa, estão “irregularidades administrativas” relacionadas com o período em que María Corina Machado era deputada. E foi também acusada de participar numa “trama de corrupção”, que seria encabeçada pelo opositor Juan Guaidó, o que levou a que não possa concorrer a nenhum cargo público nos próximos anos.
A engenheira não ficou surpreendida com a decisão. “Ninguém estranha. Mas se eles acreditam ou acham que essa desqualificação vai diminuir a minha participação [nestas eleições], devem preparar-se. Se já íamos com força, agora ainda vamos com mais”, garantiu María Corina Machado. Após ser eleita pela oposição, começou a procurar um aliado que pudesse concorrer. Inicialmente, a escolha recaiu na académica Corina Yoris, mas o governo venezuelano também impossibilitou a sua candidatura. Depois, o diplomata Edmundo González foi o eleito — e não motivou queixas do regime.
Mas tem enfrentado várias dificuldades para fazer campanha. Na semana passada, o chefe de segurança de María Corina Machado acabou detido pela polícia. No seio do governo de Nicolás Maduro, a dissidente é chamada depreciativamente de “María com ira”. Os filhos da opositora ao regime estão no estrangeiro por questões de segurança. Mas nada parece travar a sua vontade de mudar a forma como o seu país está a ser governado.
A escolha do “pobre velhinho” Edmundo González
A escolha de Edmundo González, um diplomata de 74 anos pouco conhecido e nada carismático, não gerou grande entusiasmo na oposição venezuelana — era visto apenas como um nome temporário e de substituição até se encontrar alguém com mais peso político. Mas acabou mesmo por ser o escolhido para estas presidenciais, o que surpreendeu inclusive o próprio. “Nunca imaginei que estaria nesta posição”, sinalizou o candidato presidencial à BBC, atribuindo a María Corina Machado o cargo de “líder da oposição”.
Não fosse a proibição por parte do regime, seria a política de 56 anos a concorrer nas presidenciais. Neste sentido, Edmundo González é apenas um rosto para que a oposição entre no jogo político — e o homem de 74 anos resigna-se a esse papel. Não envergando bandeiras eleitorais, o candidato presidencial pede apenas que haja “união” entre os venezuelanos após as eleições: “Chega de gritos e de insultos”. “Queremos que aqueles que apoiam o governo — que é um número cada vez menor de pessoas — ouçam o nosso apelo à união de todos os venezuelanos.”
É um tom bastante diferente do usado pelo seu adversário. Com uma retórica inflamada, Nicolás Maduro avisou que poderá haver um “banho de sangue” após as eleições e até uma “guerra civil”. Na presidência, ainda assim, Edmundo González não é encarado como um “pobre velhinho”, uma vez que aceitou fazer parte de um “plano perverso” para “prejudicar” a Venezuela.
As sondagens dão uma inequívoca vantagem, de cerca de 20 pontos percentuais, à oposição. Este sucesso está intrinsecamente ligado ao carisma e à insistência de María Corina Machado, a política “liberal” próxima dos EUA que sempre desafiou o chavismo — e que espera agora derrubar Nicolás Maduro.