Começou por cantar. Gravou discos de fado, participou no Festival da Canção. Até onde teria ido a carreira da cantora Marina Mota se assim que pisou as tábuas do teatro, em 1982, a revista não a tivesse reclamado como sua?
Não se conta a história do género teatral popular sem elencar uma das suas mais proeminentes figuras, mas se Marina Mota é revista à portuguesa, não se reduz a ela. Nos anos 90, entrou na casa de todos com programas como Grande Noite, Marina, Ora bolas Marina, Marina Dona de Revista, Um Sarilho Chamado Marina ou Bora lá Marina. Tornou-se uma das mulheres mais famosas do país e um nome apetecível para uma imprensa cor-de-rosa em efervescência e apetite voraz.
Aos 61 anos, Marina Mota é tão inabalável no resguardo pessoal como no desejo de ser desafiada profissionalmente. Foi sonho primeiro do Teatro Praga que, na revisitação da companhia independente à revista, quase 10 anos depois de Tropa-Fandanga (2014), fosse ela a protagonizar Bravo 2023!, que sobe ao Teatro São Luiz, em Lisboa, de 13 a 22 de dezembro. A Marina o que é de Marina. O espetáculo segue depois para o Porto, com récitas a 12 a 13 de janeiro, no Teatro Rivoli.
A atriz sentou-se com o Observador para falar sobre crescer no Parque Mayer, caminho que não a ilibou do rótulo de “popular” e que a vedou de espaços, gente e mundo. Sem filtros nem pudores diz: “Tudo o que fiz há 40 anos a maior parte das pessoas esqueceu.”
Há uns dias saiu uma notícia onde se lia que se ia reformar. É mesmo assim?
Um dia será. Estou sempre pronta para que isso aconteça. Se não aparecerem projetos que me desafiem, que sejam aliciantes, que me acrescentem alguma coisa, provavelmente. Também pode ser um desabafo meu, também pode acontecer. Tenho a sorte de me autoproduzir e quando estiver cansada de alguma coisa vou para a estrada, que é o que gosto de fazer. Adoro fazer digressões.
Mas faz tenção de parar?
Não sei. Não falei com ninguém. Há um certo tipo de imprensa que gosta de falar por mim e pelos outros. Agora não estou a pensar nisso, sinceramente.
Quando César de Oliveira [nas décadas de 1960 e 1970 um dos nomes grandes do teatro de revista] a convidou para ser primeira atriz do teatro de revista, disse-lhe que “não queria porque não percebia nada daquilo”. Hoje já percebe?
Hoje acho que sim, de revista até percebo bastante, graças a Deus. Quando o César me convidou, tinha-me estreado para aí há dois ou três anos. E, de facto, estreei-me para cantar como atração nacional. Nem sequer era atriz nem sonhava com isso. Não estava minimamente preparada para assumir esse compromisso.
A idade faz-nos questionar mais ou menos?
Depende dos assuntos. Há coisas que já passam, que já me aconteceram, que já vi…
Enquanto atriz, a idade traz segurança ou dúvidas?
Os projetos têm que ser desafiantes. Como costumo dizer, faço com uma perna às costas mais uma personagem popular, sem nenhuma camada divertida ou diferente. A idade o que me traz é a busca de fazer diferente. Ou, pelo menos, que não seja uma colagem exata a uma coisa que já tenha feito. Às vezes as características são muito semelhantes. Ao fim de 50 anos, ou 40 e poucos de teatro, mas 51 de profissão, já fiz de coxa, de gaga, de marreca, de fina, de grossa, de mais ou menos, assim-assim. Chega uma altura que já fica difícil. Tenho que recorrer às pessoas que observo, com quem me cruzo e que vou guardando nas gavetinhas do meu arquivo para aproveitar. Há sempre uma coisinha.
Como é que recebeu o convite do Teatro Praga para com eles fazer uma peça?
Com alguma surpresa, na realidade. Eles também ficaram surpreendidos por eu ter aceitado, não percebo bem porquê [risos].
O André Teodósio e a Cláudia Jardim, da companhia, dizem que durante muito tempo não a contactaram porque achavam que seria impossível a Marina aceitar.
Às vezes cria-se assim uma imagem das pessoas: que são inatingíveis, que não gostam disto ou são daquilo… Acho que a mistura é das coisas mais interessantes de se fazer. Estou sempre em busca de coisas que me complementem, nem que seja para perceber outro tipo de humor, outros métodos de trabalho, [conhecer] colegas com quem nunca me cruzei, [descobrir] outras formas de contracenar, outro gosto cénico. Aceitei porque são uma companhia que conhecia, mas de quem não conhecia o trabalho.
Foi a Cláudia que lhe ligou…
Foi a Cláudia que me ligou, tomámos um café e ela convidou-me. E assim foi, lá estou.
Como está a ser esse processo, essa descoberta?
Tem sido engraçado. Há uma entrega boa de todo o grupo. É evidente um bocadinho diferente da forma de trabalhar dos últimos espetáculos que fiz, que sou eu quem produzo ou com o Filipe [La Féria].
É diferente de que forma?
Por exemplo, um espetáculo no Politeama é um espetáculo de longo curso. Sabemos que vamos estar dez meses em cena. Quando ando na estrada é exatamente a mesma coisa. Não estreio nunca um espetáculo para ensaiar um mês e depois fazer dez espetáculos e vir-me embora. O esforço que é os ensaios, a busca, o construir. É a parte mais morosa e mais desesperante. Quando começa a ficar bom, acabou. É a primeira vez na minha vida que estou a ensaiar um espetáculo durante um mês e pouco para fazer dez agora e mais dois em janeiro e acabar. Outra diferença é que, obviamente, sabemos que é uma companhia subsidiada — pouco, como todas no país, ou a grande maioria. E os espetáculos não têm que ter aquela grandiosidade, por exemplo, que acontece no Politeama, desde que tenha bom gosto. Há muitas diferenças. A própria forma de encenar as pessoas. O André e a Cláudia são pessoas mais livres. Não que eu me sinta presa nos outros lados. Se me perguntarem, às vezes até acho que se deve ser um bocadinho mais rigoroso. Mas é engraçado ver o próprio humor, a escrita, é diferente, abordam outro tipo de temas de outra forma. Tudo isso é engraçado de observar, trocar opiniões e processos.
“Vem aí o furacão Marina”, ouve-se na peça antes de a sua personagem entrar em palco. Reconhece-se na descrição?
Usam muitas vezes esse termo. Tenho um colega que trabalha comigo normalmente e também me chama furacão. Sou “furacão-patroa” [risos].
Porquê furacão-patroa?
Porque é meu assalariado [risos]. Quando produzo é um colega contratado por mim. Às vezes dizem isso e eu não percebo bem porquê. Se calhar é pela forma enérgica como me entrego ao trabalho, só pode ser.
O que achou de “Marina Mota” ser uma personagem de Bravo 2023!? De estar a fazer de si mesma, no fundo.
Para falar muito francamente, perdoem-me a ignorância, mas eu não sabia quem era a Marina Abramović [a personagem Marina Mota surge em confronto com Marina Abramović, em que a atriz reproduz a performance The Artist is Present, que a artista sérvia apresentou no MoMA em 2010]. Tive que ir pesquisar. Podia dizer: não, conheço-a bem, mas não a conhecia minimamente. Acho divertida a junção das duas Marinas tão diferentes uma da outra. Enquanto atriz, obviamente que ali não estou a representar: estou a fazer de mim, satirizando o teatro experimental e as outras formas artísticas de trabalho. Obviamente que é divertido, porque sou eu e faço o que me apetece.
A dada altura, a Marina, vestindo a pele de “Marina, a da Mota”, diz: “querem-me encostar à boxe para me dar o prémio carreira? Não dão. Eu quero o prémio tudo, porque eu sou tudo”.
Não fui eu que escrevi isso. Nunca o escreveria. Nunca o diria se fosse eu a escrever. Eu não sou nada.
Estar no centro da peça não a coloca num pedestal?
Não, não. Nunca estou num espetáculo a pensar em mim. Penso no espetáculo de uma forma geral. Se assim fosse também há ali coisas. Dizem os Praga que isto é revista à forma da companhia. A revista tem uma hierarquia, até no desfile dos finais, na forma como os números aparecem. Não faço nenhuma questão que isso aconteça ali. Estou ali num grupo de colegas, num grupo de atores que adoram a arte representar e é isso que nos une. Essa coisa de estar no centro ou na ponta, não me diz rigorosamente nada. O conceito é fazermos o melhor para o projeto em si. Eu vou servir o projeto e não a mim.
Há um mês, na rádio RFM, disse que não tinha talento para ganhar um Globo de Ouro.
Espero que tenham percebido que foi ironia. Uma publicação qualquer daquelas incríveis dizem que não digeri o facto de o Globo ter sido entregue à Sara [Matos, que venceu a categoria pelo papel na novela da SIC, Sangue Oculto]. Não ouviram, seguramente, a entrevista. A Sara Matos é uma menina super talentosa e gosto muito dela enquanto pessoa, somos amigas. O que quis dizer com isso, e repito, é que o meu Globo de Ouro é, de facto, o público. É para o público que dirijo a minha energia, a minha forma de trabalhar. É para as pessoas que pagam o bilhete para me ver e para as que não pagam porque não podem e que eu convido. Nunca trabalhei em função de prémios e vou continuar a não o fazer, até porque nem sempre acredito neles.
Tenho 51 anos de profissão, vou fazer 42 de teatro. Desculpem a imodéstia, às vezes pode doer a alguns, mas liderei durante mais de uma década programas na SIC. Tenho espetáculos que são espetáculos de longa duração, que estão 10, 11, 12 meses em cena. É porque o público gosta, porque sendo companhias não subsidiadas, se o público não aderisse, não era possível fazê-los. Mesmo assim, ao fim deste tempo todo, nunca tive talento suficiente para ser digna e meritória de um Globo de Ouro. Porque é que havia de ser agora? Se ganhasse acharia estranho. Foi irónico. Não estou a contar com nenhum Globo de Ouro.
Ironicamente ou não, Bravo 2023! arranca com uma personagem a romper palco adentro com um Globo de Ouro na mão.
Sim. Aliás, a peça toda fala de entregas de prémios. Vamos premiar ministros, o bom, o mau, o assim-assim, os atores. O Globo de Ouro é mais uma sátira, obviamente, ao conceito da peça, que é uma peça de entrega de prémios.
Mesmo sem prémios, sente-se reconhecida?
Pelas pessoas que me interessam sim.
Isso é o quê: o público? Os seus pares?
O público. Os meus pares calculo que alguns sim, outros não. Não gostamos todos de amarelo, não é? Não é obrigatório as pessoas gostarem todas de mim, desde que me respeitem. Respeitarem-me todas é que é importante, porque eu também respeito toda a gente.
Numa entrevista em que lhe elogiavam o facto de ter desbravado caminho na comédia e na televisão em particular, colocaram-na ao lado de Herman José e a Marina fez questão de separar: “O Herman sempre foi muito acarinhado pelas elites. Eu sou uma pessoa popular, vim do Parque Mayer, tenho um rótulo na cabeça completamente diferente”.
E é verdade. Aliás, a prova está aí, exatamente. Repare: ainda hoje se fala que o Herman foi, de facto, um desbravador na comédia. E foi, sem dúvida nenhuma. Rendo-lhe todas as homenagens, sou completamente fã. Tudo aquilo que fiz há
40 anos a esta parte, acho que a maior parte das pessoas se esqueceu.
Pelo rótulo de ser popular, pelo facto de ser mulher?
Sim, tudo, mas principalmente pelo facto de vir do Parque Mayer.
É o mesmo motivo que leva a que esta seja a primeira vez que pisa o palco do Teatro São Luiz?
Acho que não. Nunca aconteceu porque, por exemplo, também nunca trabalhei com o Carlos Avilez, que tristemente nos abandonou agora. Mas porque nunca calhou. Às vezes as pessoas também acham que há aí um certo repúdio de um lado ou do outro. Não é verdade. Tristemente, a última mensagem que recebi do Carlos foi exatamente há um mês, no meu aniversário, em outubro. A mensagem dele dizia: “Parabéns a uma das atrizes que mais admiro, com quem espero ainda poder vir a trabalhar. Enquanto há vida, há esperança”. Guardei a mensagem porque gosto muito e continuo a gostar muito do Carlos Avilez. Por acaso já tinha surgido o convite de trabalharmos juntos. Não trabalhámos porque quando o Carlos me convidou eu já tinha outros compromissos e não foi possível.
Lembra-se para que peça a convidou?
Sapateira prodigiosa [peça de Federico Garcia Lorca]. Não aconteceu. Sabe que os palcos e os teatros, para mim, são como as pessoas. Há imensos teatros no país que me deixam de alma cheia. O facto de o São Luiz, ou o Dona Maria. Tenho imensa pena que o ABC tenha ido abaixo, porque esse sim foi o teatro onde me estreei, no Parque Mayer.
Não se estreou no Odéon?
O Odéon foi onde pisei um palco pela primeira vez, mas não enquanto atriz. Estreei-me no teatro em 1982, portanto vai fazer 42 anos. O cinema Odéon foi, de facto, onde pisei o palco pela primeira vez, teria oito anos, talvez, ou nove. Mas foi para cantar, foi uma graça. Fui assistir a uma coisa que era do Marcos Vidal, que se chamava O Domingo da Criança, e que era daquelas coisas de domingos para trabalhadores. Ele convidou todas as crianças, dos sete aos catorze, que soubessem cantar, que se inscrevessem. O prémio era uma motorizada, uma Honda Amigo. E eu inscrevi-me sem os meus pais saberem, sem ninguém saber. Depois fui contactada para lá ir. Ninguém quis ir comigo, só o meu pai é que tinha lata para isso. A minha mãe dizia: “mas tu vais cantar? Tu sabes cantar?” Mas achei giro e ganhei: o concurso e a Honda Amigo.
Com oito anos o que fez com a motorizada?
Não fiz nada, o meu pai teve que a vender e comprou-me uma aparelhagem. Foi a minha primeira incursão nesta área, a brincar. Começou tudo por ser uma brincadeira para mim.
Lamentava o Teatro ABC ter sido destruído.
Faz-me imensa confusão entrar no Parque Mayer e não ver aquele teatro. Como não vejo o Monumental, teatros que vocês já não conheceram.
O Cinema Odéon também está a ser alvo de uma intervenção profunda.
Numa das alturas em que estava a trabalhar no Politeama aquilo já estava em obras e eu pedi para entrar. Emocionei-me a ver aquilo tudo destruído porque era um teatro, de facto, maravilhoso. Faz-me pena os teatros serem deitados abaixo. Agora, cantei no São Luiz na Gala Abraço, por exemplo. Mas não há um “gostava tanto de fazer uma peça no São Luiz…”. Não gostava nada, para mim é um teatro, é um espaço, como qualquer outro, onde a arte que eu gosto se pratica. Mas isso é como a Igreja, gosto muito de ir aos Jerónimos, mas também se passar nesta capela aqui acho incrível.
Mosteiro dos Jerónimos onde, de resto, se casou.
Por acaso, por acaso, sim [risos].
Retomando, nunca sentiu que o rótulo “popular” lhe vedou, ao longo da carreira, determinado tipo de espaço?
Ah, isso seguramente que sim. Sim.
Teatros?
E pessoas, ainda hoje. Quando faço as minhas digressões há teatros no país que não recebem o meu género, por exemplo. Porque comédia e revista, os programadores dizem, normalmente, não se coaduna com a programação da casa. Temos, por exemplo, o Teatro Gil Vicente em Coimbra ou o Theatro Circo em Braga. Agora, não preciso deles para nada, porque há outros espaços.
Acha que receberiam esta revista, Bravo 2023!?
Não sei, nem me interessa, porque eu não iria. Só vou onde me querem receber e onde me tratam bem. Não faço questão de estar em espaços onde as pessoas não gostam de mim ou do género que eu faço. É uma coisa ridícula e eu não tenho paciência. O mundo tem outras coisas bem mais graves para eu me preocupar do que essas coisinhas que não me dizem nada.
Em 51 anos de carreira, fez apenas três filmes.
Três filmes? Qual é o terceiro?
Um Crime de Luxo, em 1991. Linhas de Sangue, em 2018. E Portugal Não Está à Venda, em 2019.
Não, esse [último] não foi um filme. Foi uma curta-metragem que fiz de uma forma graciosa. Convidaram-me e foi uma experiência. Depois filmaram mais umas coisas e fizeram uma longa-metragem, mas eu nem sequer a vi.
Porque não fez mais cinema?
Vai ter que perguntar aos realizadores. A mim não me pergunte. Porque não surgiram convites. Se calhar não sou talentosa o suficiente para fazer cinema [risos]
Está a ser irónica.
Não, minha querida, não sei, não faço a mínima ideia. O que é que quer que lhe diga?
Há um momento em Bravo 2023! em que diz: “Ainda espero fazer um filme do [Manoel de] Oliveira”.
Uma brincadeira, como é óbvio [risos]. Mas, atenção, não fui eu que escrevi o texto! Mas tenho muito prazer em dizer.
A sua primeira revista é no Teatro ABC e chama-se Chá e Porradas [1982]. Nesta também há quem leve muita porrada.
Sim, é uma característica do teatro de revista, a crítica social e política do país e do mundo. É natural.
Só isso prova a pertinência da revista ainda hoje?
Só isso prova a pertinência da revista sempre. Diziam há muitos anos que antes do 25 de abril é que a revista era fantástica, porque era a subtileza do texto, porque não se podia falar disto. Se a revista não tivesse continuado depois do 25 de abril, eu não existia. Estreei-me em 1982. Já foi pós 25 de abril. Se não existisse revista pós 25 de abril, toda esta nova geração — José Raposo, Fernando Mendes, Carlos Cunha, Maria João Abreu — não estava cá. E outra coisa: na revista fazíamos dois espetáculos por dia, de terça a domingo, e três ao domingo. Em teatros cuja lotação nunca é inferior a 500 pessoas. Se são companhias não subsidiadas, nem nunca foram, como é que é possível? Explique-me. O público é todo idiota? Só os crânios que dizem que a revista é uma merda é que são os inteligentes? Estão a chamar burros a 99% dos espectadores.
Acha que há uma desvalorização geral do teatro de revista? Critica-se o género e não o espetáculo?
Sem dúvida! Há pessoas que até falam da revista e nunca viram nenhuma. Já confrontei alguns jornalistas que dizem “ah, a revista antiga”, e eu pergunto: “mas que revistas é que viu?” Não viram nenhuma. Como é que se pode formar uma opinião de uma coisa que nunca se viu? Há uma coisa estranhíssima que é: vamos ao cinema, vamos ver um filme mau e dizemos “pá, o filme com o título X é uma bosta”, ou lemos um livro e “pá, este livro…”, vamos a um espetáculo de música e dizemos “este espetáculo do António e do Francisco não é fixe”. Vamos ver um espetáculo de revista e [dizemos que] a revista é má. Não é a revista, a revista é um género. Podem ter visto um espetáculo de revista mau. E os outros? Quando se aprofunda um bocadinho percebe-se que as pessoas não viram, não sabem do que é que estão a falar.
O desconhecimento vem de um preconceito?
Preconceito e tontice. As pessoas gostam de destilar ódio. Gosto pouco de redes sociais, mas basta ver as caixas de comentários. As pessoas gostam de dizer mal só porque sim.
“Os lábios dela já só murmuram cansaço. Nas veias dela pulsa lento o sangue quente. Aos braços dela já não se cola um abraço. Isto porque ela até se esquece que é gente. A voz calou-se como se pecado fosse falarmos da sua dor”. Lembra-se de cantar isto?
Lembro-me muito bem. Fui eu que escrevi.
Foi?
Ainda não se falava da violência doméstica como se fala agora. Escrevi esse texto há 16 anos.
Cantou-o no palco do Teatro Maria Vitória, em 2007, na peça Hip Hop’arque!. A revista esteve sempre atenta aos problemas sociais, como neste caso a violência doméstica, houve foi quem não reparasse?
Esteve sempre e o público de revista repara muito bem. O público de revista repara em tudo. Fiz outro número na revista, a seguir ou antes, que se chamava Vidas Diferentes, que era sobre uma pessoa com a mobilidade reduzida numa cadeira de rodas, e os meus companheiros de cena, um fazia um cego e outro fazia um surdo. Aprendi língua gestual para fazer esse número. Faço questão sempre na revista que o número sério tenha um objetivo de cidadania. Há muita coisa a fazer ainda sobre a língua gestual. Acho que devia ser obrigatória no ensino primário. Demora-se dois anos a aprender a falar a língua gestual e quebrava-se uma barreira incrível. Havia sempre essa preocupação na revista de chamar a atenção de coisas que é importante resolver na sociedade. Violência doméstica foi outra das minhas batalhas. Vamos falar sobre isto. Quem lá esteve aprendeu muita coisa. Hoje já vejo língua gestual na televisão.
Sobre essa revista, o cineasta Lauro António, que morreu no ano passsado, escreveu então no seu blog: “Marina Mota nunca devia ter abandonado a revista onde foi princesa e hoje é rainha”. Nessa altura, tinha estado 11 anos sem fazer revista. Porquê?
Porque a revista, tanto o Hip hop’arque!, como a Piratada à portuguesa!, como o Ora bolas… pró parque, que fiz no Maria Vitória, foi uma coprodução com o Hélder Costa numa altura em que, de facto, o Maria Vitória não estava bem então eu regressei para dar ali uma forcinha. Mas a revista é um espetáculo muito caro para se fazer bem. Merece uma cenografia incrível, um guarda-roupa incrível, um investimento muito grande. E não é, de facto, nunca um espetáculo apoiado pelo Estado. Vivemos da receita da bilheteira, o que é sempre um risco. Há poucos empresários, ou nenhuns, tirando o Hélder Costa no Maria Vitória, que continua a fazer revista, e o Filipe [La Féria], que vai fazendo também. Não há mais. Quando me estreei havia três teatros a funcionar: o Maria Vitória, o Variedades, o ABC. Havia um investimento grande no género.
A revista dá muito trabalho. A fazer novela, por exemplo, é muito complicado estar a fazer duas coisas ao mesmo tempo. Estive onze anos sem fazer revista porque estive a fazer outras coisas, porque também preciso de fazer outras coisas. Ao fim de 42 anos de teatro e 51 de profissão, a partir de agora decidi ser a minha prioridade. Há coisas que já não faço em simultâneo. Quando fiz esta novela que está agora na SIC, o Filipe La Féria convidou-me para fazer o espetáculo, a revista que ia estrear no Politeama, e não aceitei. Não vou voltar a fazer, são dez meses a dormir três horas. Aceitei fazer este espetáculo com os Praga porque são dez espetáculos. Estou brevemente a começar a gravar a novela da SIC, e tenho que me levantar às sete e meia da manhã. Portanto, se sair do espetáculo à uma… Durmo três horas por noite.
Mencionou a questão do teatro da revista não receber subsídios e é uma argumentação recorrente dos trabalhadores da revista. Enquanto produtora, já tentou pedir?
Já, claro que sim. Até nos espetáculos que faço de digressão. Agora, pós-pandemia, finalmente tive uma vez um apoio da Secretaria de Estado, há dois anos. Mas acho que foi a primeira vez na minha vida. Portanto, o meu apoio é o público. Esse é que merece o tal respeito e a minha vénia sempre.
Em tempos, numa entrevista, disse: “Tudo o que gosto normalmente é maltratado em determinada época e o fado não foi exceção. Agora finalmente está no lugar que merece”. Acha que isso pode acontecer com a revista à portuguesa?
Acho que sim, porque é de facto um género muito especial. Sou muito dura quando digo que há muita gente que fala mal. O Nicolau [Breyner] uma vez fez-me a pergunta e eu obriguei-o a ser ele a responder. Quando ele me dizia: mas porque é que achas que tantos colegas falam mal da revista? E eu disse-lhe: responde tu. E ele respondeu: porque não são capazes. Aí tem a resposta. Para se fazer revista e para se fazer bem, o ator de revista tem que fazer todos os géneros. Na revista pode haver drama, pode haver comédia, pode haver farsa. Tem que se dançar. Ou pelo menos convém. Convém não ser um pé de chumbo. Se puder cantar, melhor. Portanto, abrange uma série de coisas que os outros géneros não abrangem. Tem que ser uma capacidade a nível psicológico de resistência e de rapidez de raciocínio incrível. Uma coisa é nós entrarmos num teatro uma hora antes e irmos fazer uma personagem. Na revista temos às vezes 30 segundos para mudar e entrar a fazer outra coisa completamente diferente. E temos que convencer as pessoas em 7 minutos. Que é o tempo de uma rábula, mais ou menos. É muito difícil e exige um rigor e uma disciplina gigantes. As pessoas, às vezes, confundem o grito com a revista. Na revista não se grita. Fala-se num tom brilhante, sim, mas não se grita. Às vezes vejo coisas na televisão que dizem que é a brincar com a revista. Não. É só ridículo. Mais uma vez, é gente que nunca foi, que não sabe do que é que está a falar.
Como alguém que lá cresceu, o que é que espera do futuro do Parque Mayer?
Eu já não espero nada. Anda-se a falar do futuro do Parque desde que eu me estreei.
Foi homenageada recentemente pelo Presidente da Câmara de Lisboa, Carlos Moedas, aquando o centenário.
[pausa] Vou continuar a aguardar. Mas não acredito, por exemplo, se fizerem espaços com palcos mínimos. A revista merece e precisa de uma grandiosidade a nível cénico. Não adianta fazerem palcos deste tamanho e plateias de 200 lugares, porque não paga o investimento e não há espaço para fazer cenicamente a revista como ela merece.
No Parque Mayer faria sentido a reabilitação de um outro espaço para a revista?
Por exemplo, o Variedades era um teatro lindíssimo. Agora o que fizeram dele, não sei, que ainda não entrei lá.
Teremos de esperar para a abertura no próximo ano. Em dezembro de 2020, durante a pandemia, um discurso seu em direto no programa da manhã na TVI tornou-se viral. Citava a Constituição Portuguesa e falava do direito ao trabalho, particularmente dos trabalhadores da cultura, acusando o Governo de não fazer o suficiente. O que a levou a falar?
Já fui muito interventiva. É de personalidade. Hoje em dia prefiro não ver e não ouvir porque quando leio comentários tenho que contar não é até 10, é até 30. Deixo agora as bandeiras para os outros, porque há gente aí que tem obrigação, até mais jovem, para defender o que é preciso defender. Mas nessa altura estava de facto muito indignada porque brinca-se com as pessoas da cultura. Tive a possibilidade de poder dizer: eu sou de facto uma privilegiada, nunca estive um mês sem trabalho, tenho uma casa onde não senti a pandemia, não vivo num apartamento, mas sou uma exceção. Os meus colegas, principalmente os técnicos que têm famílias, as pessoas serem impedidas de trabalhar sem nenhum tipo de apoio… Acho vergonhoso. E achava vergonhoso o que algumas pessoas diziam: “mas tivessem juntado” ou “não são mais que os outros”. A falar de bem bom porque têm a sua comidinha ao fim do mês. Isso de facto revoltou-me. Acho mesmo que era anticonstitucional o que se estava a fazer às pessoas da minha área.
Voltou a pronunciar-se um ano depois, num programa também na TVI. “A cultura continua a ser algo que não existe para quem manda”, disse.
É verdade.
Este espetáculo visa figuras políticas, membros do Governo. Espera que venham assistir?
Já tive vários a assistir tantas vezes! O Mário Soares era fã de revista, ia sempre e levava sempre tareia quando aparecia. O António Costa, por exemplo, foi ver-me ao Politeama e eu criticava-o imenso, brincava com ele. Ele ria-se das coisas que estávamos a dizer. Uma coisa é criticar, outra coisa é ofender.
Alguma vez viu o ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, na revista?
Não, mas também não tenho ido à revista. Mas eles normalmente em épocas eleitorais aparecem mais.
Fez dezenas de espetáculos, quase todos teatro de revista. Há pouco revelou que o Carlos Avilez lhe lançou a hipótese de trabalharem juntos. Em algum momento da sua carreira teve tentação de experimentar outro tipo de repertório no teatro, ou achou sempre que a revista era o seu género de eleição?
Não, o meu género é o meu género. Adoro fazer revista, é o género que gosto mais de fazer, ponto. Depois da revista vem a comédia, de que também gosto muito. Agora, isso não quer dizer que não faça outros géneros. É como na televisão, as pessoas dão-me personagens mais levezinhas, mas não foi por isso que deixei de fazer o Motel Valkyrias (série co-produzida pela RTP e a produtora portuguesa SPi com a TV Galiza e a HBO Max), por exemplo, ou Antónia Novais na novela Para Sempre (TVI), que de cómico tinha zero. Gosto mais de revista primeiro porque me desafia e depois porque me preenche, me dá uma alegria e me desgasta muito menos. Porque não sou uma atriz de técnica. Sou uma atriz de emoções. Se houver uma cena e é para chorar, não ponho batom japonês, choro. Se a cena me toca, choro. Portanto, obviamente chego a casa desgastada. Quando faço personagens mais sérias há um desgaste maior porque é uma intensidade dura de gerir para fazer com verdade. É essa a razão de dizer que prefiro a comédia, porque dá uma certa leveza no fim do dia.
Em Motel Valkyrias — papel que lhe valeu a única nomeação ao Globo de Ouro de Melhor Atriz —, trabalhou com a Maria João Bastos, que sobre si diz: “era impressionante estar a contracenar com a Marina e de repente até me esquecer de como ela falava português e galego. Era perfeito”.
A personagem do Motel Valkyrias vivia na Raia, portanto lidava com galegos e com portugueses. Não faria muito sentido ela não saber falar galego. Tive 15 horas com uma professora via Zoom. As duas primeiras foram para eu tentar perceber se percebia os guiões em galego. As outras foram para aprender a falar galego para os guiões que nós tínhamos. Provavelmente se tivesse que ir à Galiza agora não ia falar galego, lembro-me de algumas coisas, da fonética estranha que tem a língua. Acho que era o mínimo que podia fazer para defender a personagem.
Estamos habituados a vê-la em registos mais cómicos, e esta personagem nada tinha a ver com isso, era dramática e sombria. Foi o seu maior desafio profissional?
Não, não foi. A Antónia Novais na novela Para Sempre também é um desafio. O que é interessante é quando nos dão um perfil de uma personagem. Tenho que a interiorizar e começar a perceber: quem é esta pessoa? Ela sofre com o quê? Diverte-se com o quê? Gosta do quê? Porque é que que ela é assim? Na novela então, farto-me de chatear. Pode não estar escrito, pode não vir o espectador a saber, mas eu tenho que saber porque é que abandonei um filho. Para criar uma personagem tenho que saber.
É algo que procura em si ou que exige ao criador da personagem?
Procuro, tem que haver uma razão. É má, ok, mas má ao ponto de conseguir matar alguém? Uma pessoa má, está bem, mas o que é ser mau? A Antónia Novais, por exemplo, deu-me muito prazer fazer porque a mulher não era só má, era má, era boa, era frágil, era dura, era sarcástica. É engraçado construir uma personagem e fazê-la existir, dar-lhe vida, pô-la a respirar. Os autores — obviamente com todo o respeito, porque escrever é das coisas mais difíceis — escrevem qualquer coisa no papel e o papel não se queixa, não se vai rasgar sozinho. Quando se pega numa pessoa e se põe a pessoa a tirar do papel e a dar vida, a respirar… Como é que esta mulher ri? Como é que ela anda? Há imensos pormenores que são importantes. Há aqui uma busca de tentar construir uma personagem de dentro. Esse é o desafio.
Sempre foi exigente com o texto?
Sim.
Na tal crítica do Lauro António, o cineasta continuava: “Marina Mota não falha uma intervenção, mostra talento de sobra, mesmo quando o texto não a ajuda”.
Pois, porque às vezes nem sempre nem sempre temos a felicidade de ter uma coisa na mão que já por si é bom. Às vezes chegam-nos coisas um bocadinho mais frágeis e então temos que fazer os possíveis por defender às vezes o indefensável. Faz-se o melhor que se pode com o que nos chega à mão.
Percebi que nunca leva o texto para o plateau.
Não, não.
Dando tanta importância ao estudo intensivo do texto, permite-se algum tipo de improviso?
Muito. Mas acho que só se pode improvisar quando se sabe muito bem o que se está a fazer. O teatro é generosidade, não represento sozinha. Se estiver a fazer um monólogo é uma coisa, mas estou a contracenar com um colega e é muito importante não prejudicar o meu colega em nada. Qualquer improviso meu tem que ser uma coisa bem medida. Tem que se saber voltar ao sítio para não levar a outra pessoa, que às vezes até pode ser mais inexperiente, a falhar por uma gracinha que eu quis fazer. É também uma questão de rigor e disciplina. Um improviso é muito giro, mas na revista é um bocadinho diferente do stand-up, por exemplo. Somos muitos em cena. Se eu improvisar muito num quadro de 10 minutos, um espetáculo em vez de ter três vai passar a ter quatro horas. Tem que haver uma boa gestão de tempo. O que é que é importante no texto dizer exatamente? Às vezes uma palavra pode lixar um colega.
É preciso companheirismo no plateau?
É fundamental. Sou rigorosa no texto. Aqui há uma altura que eu tenho que dizer: “tens tido muita saída”, porque o que o colega me responde é “não, tenho é tido muitas entradas”. Se eu lhe perguntar qualquer outra coisa que queira dizer o mesmo, ele ou tem de facto uma capacidade de raciocínio para responder outra coisa ou então está tudo lixado. Mais que decorar textos é importante perceber os textos. O decorar não é a base de coisa nenhuma. Os papagaios também decoram, também falam e não são atores.
Quando se fala sobre artistas, há muitas vezes uma ideia de individualismo, de privação da vida pessoal em prol da carreira. A Marina sempre sublinhou que colocou sempre a família primeiro.
E é. A minha carreira não é de todo a minha prioridade. Gosto muito. Gosto muito de exercer, tenho todo o respeito, mas não é a minha prioridade. Nunca foi e nunca será.
Isso foi uma coisa muito basilar desde o princípio? Nunca se deixou deslumbrar?
Não, não, não. Não sofro disso, graças a Deus. Percebo que seja pouco normal, até porque a maior parte dos meus colegas de sucesso e que toda a gente conhece, a grande maioria, foi atrás de um sonho. Nunca quis ser atriz. Isto tudo aconteceu porque sim. Tanto não era importante que acho que qualquer colega meu se fosse convidado para ser primeiro ator de uma companhia ou ser protagonista de uma novela, pensaria: que incrível. Eu simplesmente não aceitei porque achei que não estava preparada. Não é uma questão de idade, nessa altura tinha 24 ou 25 anos. Se estivesse muito interessado em chegar lá, não sei onde, se calhar teria sido incrível.
Em 1995, no programa A Noite de Reis, na RTP, Nicolau Breyner pergunta-lhe se é uma pessoa que se apaixona facilmente. E a Marina contesta: “sim, por pessoas, por coisas, por trabalho. A paixão, apesar de efémera, é uma coisa que nos faz falta”. Continua a apaixonar-se por coisas, pessoas e trabalho?
Continuo, mas cada vez é mais difícil apaixonar-me por coisas, pessoas e trabalho.
Porquê?
Porque as pessoas estão piores, porque houve uma grande regressão na forma de se trabalhar e… as coisas ainda me apaixonam, mas também é raro.
Houve uma regressão em quê?
Várias coisas. O fazer-se agora uma coisa que é para daqui a bocadinho. Fazer um espetáculo para estrear daqui a 10 dias. Na forma como hoje em dia se faz televisão, por exemplo. Perdeu-se muito brio em muitos setores.
Não se perde tempo a pensar?
Acho que não se perde tempo nenhum a pensar [risos]. Dever-se-ia perder muito mais.
Numa entrevista há uns anos dizia: “achei sempre que ser uma boa pessoa era melhor do que ser uma boa artista”.
E é. Que engraçado. Está a ver? No básico acho que não mudei muito.
Não é possível ser-se as duas coisas?
Deve ser, acho que sim. Mas acho que se tiver que querer só uma, prefiro uma boa pessoa do que uma boa artista. Uma boa artista que seja uma cabra não me interessa nada.
É na vida pessoal muito diferente daquilo que mostra na televisão?
Diga-me você, estou aqui. Acho que não. Quer dizer, depende do ponto de vista. Na televisão ou a trabalhar sou vista como uma pessoa extrovertida, na minha vida privada se calhar sou muito mais discreta do que aquilo que as pessoas imaginam. Gosto de viver longe da confusão, não gosto de grandes multidões, não gosto de chamar a atenção sobre mim própria. Dificilmente me verá em festas, em grandes eventos. Daqui a bocado tenho que ir para Lisboa e é uma coisa horrível para mim. Se calhar aí sou diferente.
É lisboeta, cresceu em Alcântara, mas fugiu do centro da cidade.
Aos 30 anos. Já não aguentava mais. Não gosto, não.
O que é que ditou essa saída?
Muita coisa. Ainda hoje, por exemplo, ir para Lisboa e ver a amálgama de gente que não se cumprimenta, que não diz “boa tarde”, que não diz “se faz favor”, que não sorri… Quando o sinal está vermelho e passa a verde e buzinam passado dois segundos… Esse tipo de coisas. Como era maluquinha e facilmente levantava da mão e dava uma pêra a alguém… [risos]
Ouvi dizer que tinha a fama de “gata brava” na escola.
Sim, depois o tempo foi-me dando mais tolerância. Menos paciência, mas mais tolerância. Hoje gosto de estar longe. Cada vez sou mais bicho do mato.
Sente-se mais livre?
Nunca me senti de outra forma. Sempre me senti livre.
O distanciamento não lhe dá isso? Ao não viver em volta de uma certa bolha e entourage.
Mas eu nunca vivi. Nunca vivi.
Isso trouxe-lhe dissabores?
Provavelmente sim. Até porque, de uma forma geral, as pessoas que estão em cargos de poder e etc. gostam de ser bajuladas, e eu não sou nada disso. Não ponho nunca a carreira à frente daquilo que acho enquanto pessoa. Há determinadas cedências que se faz, porque não fica bem dizer, porque a pessoa não vai gostar ou não vai perceber. Sempre me estive a marimbar para o politicamente correto. Se não está certo vou dizer que não está certo, independentemente de quem for a pessoa. Sempre me senti livre.
Começou por cantar, gravou discos de fado. Hoje canta menos.
Hoje canto menos.
Como é a relação com a sua voz?
Nunca tive voz de canto. Quando digo “canto” é porque continuo a cantar. Nos espetáculos do Filipe, por exemplo, canto sempre. Se fizer um espetáculo meu, se for revista, vou cantar. Quando digo deixei de cantar com regularidade é porque o meu último espetáculo foi no Caixa Alfama para aí há cinco anos e daí para cá deixei. Fui convidada para fazer este ano e por insegurança não aceitei.
Porquê?
A voz é um músculo e precisa de ser trabalhado. Como não o faço há muito tempo, perdi a segurança. O que não quer dizer que não volte um dia e diga: bora lá tratar disso.
Está pacificada com a insegurança ou di-lo com alguma mágoa?
Não, não. Tenho às vezes frustração, mas comigo. Então estão me a convidar para fazer uma coisa de que eu gosto e eu com medo de aceitar isto? Obviamente tenho que ultrapassar, mas para isso tenho que ter tempo e disponibilidade mental. Não aconteceu porque também não é primordial. Mas sou fadista mesmo calada. Gosto de ouvir os meus colegas que cantam bem e fico feliz por isso.
Quem é que gosta de ouvir?
Muita gente. A Sara Correia, por exemplo, gosto imenso. Ricardo Ribeiro, Carminho, Camané. Estou só a falar de fadistas, não é? Mas também gosto de ouvir Áurea, Marisa Liz, António Zambujo, Fernando Daniel, Paulo Gonzo, sei lá. Temos tanta gente a cantar bem.
Se no palco a revista é o seu género de eleição, na música é o fado?
Sim, gosto muito de fado.
E escrever?
Há bocado falou-me de um tema que escrevi. Às vezes escrevo. Nesse caso era importante que eu escrevesse o poema porque era uma rábula do Francisco Nicholson, mas eu não estava muito satisfeita com a letra do fado. Decidi vir para casa e compus a música e fiz a letra. Acho que por acaso o resultado foi fixe. A letra e a música são minhas.
Como é que um dia gostava de ser lembrada?
Não penso muito nisso. Boa pessoa. Boa pessoa está bom.