Quando Mark Lewisohn se propôs a escrever All These Years, um livro em três volumes sobre a história dos Beatles, deixou claro de que esta seria a verdadeira biografia da banda de Liverpool. Não há aqui arrogância, ao longo da vida Lewisohn teve um acesso privilegiado à existência dos Beatles. Nasceu em 1958 e passou a infância a ouvir a música da banda inglesa. Aos nove anos, usou o próprio dinheiro para pagar a subscrição do clube de fãs dos Beatles.
Em 1977 começa a escrever para a fanzine Beatles Monthly, onde respondia a cartas dos fãs. O seu gosto transformou-se numa carreira e Mark assumiu o papel de especialista na carreira dos Beatles, papel que se foi adensando na década seguinte com dois livros: The Beatles Live! (1986), um registo sobre todas as atuações da banda, e The Complete Beatles Recording Sessions (1988), resultado de ter ouvido as gravações originais de todas as sessões dos Beatles em Abbey Road. Tem trinta anos, os seus editores querem vê-lo a escrever uma biografia — não necessariamente dos Beatles, mas uma biografia. Lewisohn acha que ainda não tem músculo para tal.
Passa a década seguinte dedicado a um projeto hercúleo, Radio Times Guide to TV Comedy (1998), um guia sobre todas as comédias britânicas. Aos quarenta cede finalmente à vontade dos editores e atira-se para uma biografia, a do humorista Benny Hill (1924-1992). Não gostava particularmente do comediante, mas a oportunidade de trabalhar uma figura daquele nível mediático deu-lhe a confiança que precisava para assumir aquilo para que se preparou durante toda a vida: a biografia definitiva dos Beatles.
O primeiro volume de All These Years — com o título Tune In — foi publicado em 2013. Passaram-se mais de dez anos e ainda não há sinal do segundo. Mark está a escrevê-lo, mas ainda não sabe quando o terá pronto. Esteve em Lisboa a propósito do ciclo “A Arte da Biografia” na Fundação Calouste Gulbenkian, que decorreu nos dias 13 e 14 de Março. Na conferência que apresentou falou sobre a preocupação em contar uma história do mundo no primeiro volume de All These Years, queria situar aquela cidade, Liverpool, aquele país, Inglaterra, o mundo, para o leitor sentir o quão tudo mudou por causa dos Beatles.
All These Years terá um segundo e um terceiro volumes: Turn On e Drop Out. Se o primeiro terminava em 1962 (apesar das quase mil páginas), o segundo deverá compreender o intervalo temporal entre 1963 to 1966 e o terceiro entre 1967 e 1969.
Quando fala do seu trabalho, da sua pesquisa, percebe-se que quando se refere a All These Years como “a biografia que interessa dos Beatles” não é por arrogância, é antes o resultado do método e da pesquisa que tem feito ao longo de duas décadas. Tem procurado e encontrado documentos para quem ninguém nunca olhou desde que foram criados e, tal como disse na conferência, ao olhar para os mesmos – contratos, propostas – tem conseguido também uma ideia das coisas que os Beatles rejeitavam e reafirma a convicção de que tomaram sempre as decisões certas.
Os Beatles mudaram o mundo. E, muito dificilmente, outra banda mudará o mundo tanto como eles. O primeiro volume de All These Years conta como isso começou a acontecer. Aliás: Mark Lewisohn mostra ao leitor essa mudança, fá-lo sentir a mudança em processo, como se espera que os livros de história façam. Falámos com ele durante a estadia do escritor em Lisboa.
Está aqui nesta sessão de conferências da Gulbenkian com outros biógrafos. Aprende alguma coisa com eles?
Interessa-me ouvir, claro, mas no primeiro dia não houve muita conversa sobre o processo. Pensei que iria existir mais, talvez aconteça. Isso para mim seria instrutivo de ouvir. Para lá disso, estou interessado na vida das pessoas sobre quem eles estão a escrever.
Como biógrafo, sente que se mete na cabeça do seu objeto de estudo? Ou não é esse o processo?
Não, não faço isso. E não preciso. Sei que estou nesta conferência com biógrafos e que estou a escrever uma biografia, mas prefiro considerar-me num historiador. Preciso de encontrar aquilo que preciso de encontrar. Para mim, isso é o que é relevante para tornar claro aquilo que estou a investigar. E para tornar esse caminho esclarecido. Parece bastante simples, mas nem sempre é.
Essa visão de historiador relaciona-se com a ideia de que se propôs com All These Years, a de conseguir a biografia definitiva dos Beatles?
Há muitas biografias, mas não há realmente uma história dos Beatles. Esta é a primeira. Há muitos livros que olham para aspetos particulares da vida deles e muitos dos livros mais famosos sobre eles foram escritos por jornalistas. Eu nunca fui jornalista. Alguns desses livros foram escritos como se fossem trabalhos jornalísticos. E penso que nem sempre têm um particular interesse histórico. Por isso, o que quis fazer foi algo que ninguém nunca fez. E é a maior biografia porque considera tudo.
Esse tudo causa-lhe preocupação?
Não tive preocupações… mas sabia que havia muito material, porque quando comecei já tinha muitos anos de investigação sobre os Beatles.
30 anos?
Trinta anos, na altura, sim. Agora são mais. E sabia que havia muita boa informação e conhecimento que ainda não havia sido usado. E sabia que existia ainda muito mais por descobrir. Propus-me a fazê-lo e sabia que conseguia fazê-lo. Mas penso que medi mal o quão imenso este trabalho seria.
De que maneira?
Muito material de arquivo. Sou uma espécie de “primeiro historiador dos Beatles”. E o primeiro a reconhecer que os documentos de arquivo são essenciais para contar uma história rigorosa dos Beatles. Ao longo destes anos tive acesso a muitos e muitos arquivos. E também sabia onde podia encontrar algumas coisas que andava à procura. Sabia que havia sítios onde ainda não tinha ido e onde tinha de ir para descobrir mais. Sabia onde encontrar as entrevistas, as pessoas com quem falar e as peças de jornalismo que, na altura, captavam o momento e que, entretanto, se tornaram documentos históricos. Se olhamos para as coisas com distância, elas ganham esse aspeto histórico. Sabia que iria existir muito material, mas não tinha uma ideia precisa de quanto. E se continuarmos à procura, encontramos sempre mais. E esse encontrar mais atrasa-me um pouco no meu trabalho. Mas não consigo descartar a informação que acabei de encontrar. É um dilema com o qual é preciso saber lidar, ainda que por vezes pareça uma maldição.
Trabalhou para o Paul McCartney durante algum tempo. Além do John Lennon, que não chegou a conhecer, o Paul é o mais acessível dos Beatles?
Sim. Bom, o John morreu [1980] quando isto tudo ainda estava a acontecer. Não teve tempo de ver os Beatles a tornarem-se história, pelo menos não como a entendemos hoje. Mas creio que foi a morte dele que acelerou o processo de veneração dos Beatles. O Ringo e o George não são desinteressados… bom, o George também já nos deixou [2001], mas creio que não se queriam chatear muito com isto. Diria que pensavam algo como “porque é que ainda estamos a falar dos Beatles?”. Ainda falei muito com o Ringo, mas ele estava menos envolvido do que os restantes no processo criativo. Mas o Paul tem interesse, tem orgulho, anda por aí e está disponível. E, normalmente, ele quer fazer as coisas. Trabalhei para ele muitos anos [entre 1987 e 2002, por exemplo, foi editor e redator do Club Sandwich, um jornal trimestral que fazia para Paul e Linda McCartney, além de ter sido o responsável de muitas liner notes em várias edições discográficas] mas agora não tenho falado com ele. Se precisar e lhe enviar um e-mail, quase de certeza que me responde de volta. Mas em relação aos dias em que lhe ligava e em que falávamos, esses já estão distantes.
Tem ideia de quando terá o segundo volume pronto?
Não faço mesmo ideia, sinto até que devo pedir desculpa… Sinto-me mal a dizer isto, mas é a verdade.
Está a fazer o segundo e o terceiro volume ao mesmo tempo?
Grande parte das entrevistas, da investigação e das notas está tratada. Mas de momento só estou a escrever o segundo. Ainda não passei para o terceiro.
Em relação ao primeiro, aposto que descobriu muita coisa entretanto que gostava que estivesse lá. Pensa em reescrevê-lo?
Não necessariamente. Mas tenho um documento onde vou guardando nova informação que tem surgido desde que o livro saiu. A publicação de um livro destes traz ao de cima mais informação, há muita coisa que não poderia ter sido descoberta se o livro não tivesse saído. Por vezes parece um processo inacabável.
Pode dar um exemplo?
O irmão do Paul, o Mike McCartney, publicou um livro no ano passado. Sei que o Stuart Sutcliffe [o primeiro baixista dos Beatles] não se dava particularmente bem com o Paul, mas dava-se com o Mike. E enquanto o Stuart esteve em Hamburgo, trocou correspondência com o Mike em Liverpool. Numa das cartas, o Stuart menciona que está farto. Eu sabia que ele tinha voltado para Inglaterra pouco antes de morrer, no início de 1962, mas não sabia quando. E esforcei-me para saber a data, mas não consegui. Acontece que foi no fim de fevereiro e, no início de março, os Beatles foram ao BBC Radio Studio pela primeira vez, para gravarem uma atuação, ainda antes de terem um contrato discográfico. E eu tinha falado com o Paul sobre isto, com o produtor que estava na rádio nesse dia, até visitei o estúdio onde foi feita a gravação e vi todos os arquivos. Mas havia uma coisa que só soube no ano passado: que o Stuart Sutcliffe estava lá. E isso é importante e adoraria ter sabido isso antes. Mas não sabia, ainda não tinha visto essa carta do Mike, o Mike ainda não a tinha mostrado.
Por vezes é preciso tempo até que as pessoas estejam dispostas a revelar os seus documentos.
Sim, e podemos tentar persuadi-las a mostrar o que têm, mas muitas vezes não o fazem, não estão prontas. E ele estava obviamente a guardar essa informação, por isso eu ainda não tinha visto essa carta, não sabia da sua existência: e como não sabia que sequer existia, nem sabia que tinha de ir à procura dela. E depois foi extraordinário saber que o Stuart estava lá, porque ele teve oportunidade de ver o início da aventura dos Beatles antes de morrer.
Há pouco mencionou que é bom a fazer o que faz. É persuasivo por natureza ou aprendeu isso com o trabalho?
Diria que tenho bom faro. E há muitos momentos de sorte. O primeiro contrato dos Beatles com o Brian Epstein [manager dos Beatles até 1967] tinha quatro páginas. Mas eu só tinha três páginas do contrato. Descobri que um dos solicitadores que escreveu o contrato ainda estava vivo. E fui à procura dele. Descobri-o, liguei-lhe, disse o que estava a fazer e ele foi muito recetivo. Se eu tivesse as quatro páginas nunca teria pensado em procurá-lo. Mas bom, adiante: ligo-lhe, ele diz que tem a página e que vive em Liverpool. Pergunto-lhe se o posso visitar da próxima vez que for lá. Diz que sim e quando vou lá e entro no escritório dele, ele tira a página de uma caixa cheia de papéis. E eu fico intrigado: o que é que há naquela caixa? E pergunto–lhe, é uma caixa cheia de papéis, consigo ver alguns meio para fora da caixa. Ele diz que são papéis do Brian Epstein do primeiro ano em que ele trabalhou com os Beatles. Bom, é claro que tinha de ver o que estava naquela caixa. Ele diz que sim, mas que não pode ser naquele dia. Mas que posso ir noutra data. No meu regresso a casa, a caixa não me sai da cabeça. E mal chego a casa, ligo-lhe de volta, e digo-lhe que tenho de ir a Liverpool na semana seguinte, preciso de saber se o posso visitar. Ele diz que sim. Fui, passei um dia lá. E era material extraordinário, sem aqueles documentos o livro seria muito mais pobre. Tive sorte…
Desde que publicou o livro que tem mais facilidade na hora de chegar às pessoas que podem ter informações? Sente que transmite mais legitimidade e credibilidade?
As pessoas ficam com uma perceção do que estou a fazer e fica mais fácil, isso é óbvio. Mas há outras coisas em jogo que podem influenciar as decisões. Por exemplo, algumas pessoas já foram entrevistadas demasiadas vezes e não querem falar mais. Mas também há algumas que se apercebem que vão morrer em breve e que, se não falarem agora, a sua história não irá ser contada. E se não contarem a sua história agora, não farão parte da história dos Beatles, porque eu estou a escrever este livro. E, sejamos francos: haverá alguém que possa fazer parte da história dos Beatles e não queira?
Nasceu em 1958. Lembra-se do seu primeiro contacto com os Beatles?
Aconteceu pouco depois dos meus cinco anos. Gostava mais e mais de música. Era fácil para os meus pais saberem o que me oferecer, porque eu queria sempre discos, e queria sempre o último disco dos Beatles. Aos nove anos, com o meu próprio dinheiro, juntei-me ao clube de fãs dos Beatles, recebia a revista deles mensalmente, que estava cheia de informação e fotografias. Foi assim que comecei a ser informado sobre as coisas que iam acontecendo.
Teve noção do final da banda?
Não me lembro muito disso. Mas não me chateou, era uma daquelas coisas, não sabia que os grupos acabavam. Contudo, ainda hoje acho que foi a coisa certa. Acho que fizeram bem. Eles sabiam que a coisa estava a seguir o caminho que tinha de seguir. Se não tivessem acabado, é possível que o que viessem a fazer não fosse tão bom. Ou seja: eles eram super talentosos e eram brilhantes juntos, a música seria ótima, mas os gostos estavam a mudar e se calhar já não iriam chegar aos tops. É muito difícil saber quando acabar algo.
E eles souberam.
Penso que se eles estivessem aqui hoje, diriam que não tinham noção de que estavam sempre a reinventar-se. Na cabeça deles, estavam só a ficar mais velhos, mais maduros, influenciados por sons diferentes, coisas diferentes, a seguir os seus interesses. Do nosso ponto de vista, parece que se estavam sempre a reinventar a música pop, mas acho que só estavam a andar para a frente.
Já sabe onde termina o terceiro volume?
Sim, no final de 1970, no dia em que Paul McCartney entrega os papéis para terminar o lado empresarial entre eles. Terminaram a banda, mas o lado do negócio demorou alguns anos até ficar decidido, isso só se resolveu no final de 1974, quatro anos depois de se separarem. Houve uma altura em que pensei fazer um quarto livro sobre esses quatro anos. Mas já estarei muito velho para fazer isso.
Sente-se com sorte por estar a contar a história de uma banda com tanta informação disponível?
Sim, a década de 1960 foi um período em que se usavam gravadores em fita, por isso há imensos registos áudio dos Beatles, muitas transmissões de rádio, muitas conferências de imprensa. Muitas entrevistas que foram gravadas em fita ainda existem. Mas também foi o início da cassete de vídeo, por isso há imenso material da televisão, não todas as presenças deles, mas muitas. E em termos de documentação, surgiram as fotocopiadores e ainda hoje conseguimos ler uma fotocópia desse tempo. E, claro, também há muitos documentos originais, escritos em máquinas de escrever… tenho mesmo muito material. Se fosse nos 1970s, talvez fosse diferente, porque surgiram os computadores. E hoje, com o email e as mensagens, muita dessa informação perde-se e deixa de existir. Tenho pena de quem um dia escrever a história de algo hoje, porque não vão ter tanta informação para trabalhar como eu. Por outro lado, eu tenho muita, que é também um problema, estou a afundar-me em material.