Foi uma pedrada no charco. Num momento em que as atenções estão concentradas na guerra entre o Hamas e Israel, um ataque terrorista no Irão em Kerman, que matou mais de 80 pessoas, colocou em cena um ator que parecia estar afastado do conflito: o autoproclamado Estado Islâmico, também conhecido como Daesh. Para além de ter reivindicado o atentado desta quarta-feira, o grupo terrorista de matriz sunita anunciou uma “nova campanha” para os seus militantes. “Matem-nos onde os encontrarem” é o lema, colocando na mira os três maiores inimigos: Israel, Ocidente e os xiitas, o que gera implicações diretas no país onde a maioria da população e o regime seguem aquele ramo do islamismo — o Irão.
Inicialmente, as autoridades iranianas sugeriram que Israel tinha estado por trás do ataque. O contexto e o timing pareciam indicar precisamente para isso. Inimigos há décadas, a tensão aumentou entre Teerão e Telavive após as incursões em solo israelita levadas a cabo pelo Hamas a 7 de outubro e o início da guerra na Faixa de Gaza. O Irão declarou o seu apoio àquele grupo islâmico e instruiu os seus grupos aliados, como o libanês Hezbollah ou o iemenita Houthi, para que criassem dificuldades às tropas israelitas. Adicionalmente, o atentado surgia um dia após Israel ter matado o número dois do Hamas, Saleh al-Arouri, no estrangeiro, neste caso no Líbano.
Contrariamente ao que o Irão acreditava em primeira instância, o autoproclamado Estado Islâmico veio reivindicar o ataque. Ora, o regime iraniano não contava com “o Joker”, como definiu Aaron Y. Zelin, membro do The Washington Institute for Near East Policy, à Associated Press, que acrescentou que os militantes daquele grupo terrorista querem “ver o mundo a arder”. “Não se importam como, desde que consigam tirar proveito disso.”
O ataque desta quarta-feira, juntamente com a nova campanha, colocou novamente o autoproclamado Estado Islâmico, movimento que atingiu o seu apogeu em 2015 e que foi perdendo fulgor ao longo dos anos, novamente nas bocas do mundo. Isto numa altura em que se acumulam as tensões no Médio Oriente, manifestadas num antagonismo entre o Irão e os seus aliados e Israel.
A nova campanha do autoproclamado Estado Islâmico no início de 2024
Nas redes sociais, num áudio com cerca de 30 minutos, o porta-voz do Daesh, Abu Hazifa al-Ansari, explicou no que consiste a nova campanha, que deveria ocorrer na Europa, no Estados Unidos e nos “países dos ateus” aliados de Israel, de modo a vingar os muçulmanos palestinianos e de outros países do Médio Oriente. “Que eles saibam que serão responsabilizados pelos seus crimes na Palestina, no Iraque, no Levante e no resto dos países muçulmanos. Nas ruas de Washington, Paris, Londres, Roma e nos países dos ateus.”
Da mensagem não ficaram de fora alguns países de maioria muçulmana, tais como o Egito, a Jordânia ou os Emirados Árabes Unidos. Se bem que se manifestem solidários à causa palestiniana e até sigam a matriz sunita tal como o autoproclamado Estado Islâmico, reconhecem internacionalmente Israel e mantêm boas relações com o Ocidente.
“No âmbito da nossa fé de que a guerra é com os judeus e com os seus aliados em qualquer lado, o Daesh anuncia o envio de todos os seus combatentes, especialmente, e de todos os muçulmanos, em geral, em apoio aos vulneráveis”, afirmou o porta-voz do grupo terrorista, argumentando serem seu alvo “os judeus, cristãos e os seus aliados criminosos em qualquer lado debaixo do céu”.
Neste processo de vingança, o autoproclamado Estado Islâmico apelou à “diversificação dos planos e operações com explosivos, tiros, armas brancas e atropelamentos”, assim como para não se distinguir entre “ateus civis e militares”, porque os “exércitos judeus e cristãos bombardeiam os países muçulmanos sem diferenciar entre civis e militares”.
Durante o áudio, Abu Hazifa al Ansari também menciona o Irão, deixando bem claro a animosidade do grupo contra o regime daquele país. Acusando Teerão de se querer aproveitar da causa palestiniana, o porta-voz atirou contra o “eixo imaginário”, numa alusão ao eixo da resistência contra Israel criado pela diplomacia iraniana e que junta Hamas, Hezbollah, Houthis, Irão, Jihad islâmica, entre outros. “O Irão criou esse projeto e o primeiro objetivo passa por conglomerar todas as fações palestinianas como representantes do Irão”, denunciou.
Como argumento, Abu Hazifa al-Ansari ilustra que o “eixo imaginário” escuda-se de integrar “a batalha dura” que Gaza está a “enfrentar sozinha com sangue das suas crianças e mulheres”. Ao mesmo tempo, o porta-voz também deixou um conselho a algumas fações palestinianas, referindo que estas se afastaram dos ensinamentos do Islão durante o combate. “Matar judeus não é uma indicação de estar no caminho correto. Antes disso, os comunistas, os patriotas e combatentes nacionalistas todos lutaram contra os judeus. Mas a sua luta resultou do comando de Deus?”, questionou.
O problema para o autodeterminado Estado Islâmico é que os militantes do Hamas estão a ser demasiado nacionalistas na procura da implementação do Estado Palestiniano. “Para alcançarem a vitória, eles devem procurar estabelecer um califado”, assinalou Abu Hazifa al Ansari.
“O início forte” do autoproclamado do Estado Islâmico, após “meses de reduzida atividade global”
O Estado Islâmico proclamou o califado em junho de 2014. A partir daí, os militantes daquele grupo islâmico controlaram partes da Síria e do Iraque (perdendo-as praticamente todas entretanto), ao mesmo tempo que levavam a cabo vários ataques terroristas um pouco por toda a Europa. Um dos mais marcantes ocorreu a 13 de novembro de 2015 em Paris, tendo tido lugar em vários pontos da capital francesa, tais como a sala de espetáculos Bataclan.
Recentemente, os ataques terroristas abrandaram na Europa, ainda que continuem com alguma intensidade em países como Moçambique, a República Democrática do Congo ou a Síria. Segundo a especialista em jidahismo Mina Al-Lami, “2023 foi um ano difícil para o autoproclamado Estado Islâmico, cuja atividade desceu para mais de metade quando comparado com o ano anterior”. Num relatório escrito para a plataforma BBC Monitoring, a analista declara que, em 2023, os “ataques diminuíram em quantidade e qualidade” na maioria dos ramos espalhados por vários países.
1/ 2023 has been a tough one for #ISIS, whose activity was down by more than half compared to last year, and whose leadership suffered yet another blow. Read our data-driven analysis about IS activities and messaging this year: ????https://t.co/pfCaTn8JTG pic.twitter.com/eQ5MEEaXOK
— Mina Al-Lami (@Minalami) December 21, 2023
O centro de contraterrorismo norte-americano corrobora esta tese, num relatório publicado em agosto de 2023. As suas atividades estavam num “ponto baixo”, devido ao desaparecimento “dos elementos mais perigosos do Estado Islâmico no Iraque”. O documento ressalva, não obstante, que o grupo terrorismo estava mais ativo em África, continente no qual poderia aumentar as suas tentativas de “expansão”.
Este aparente enfraquecimento do grupo terrorista parece ter sido contrariado com as declarações dos últimos dias, acredita Mina Al-Lami, numa publicação na sua conta pessoal do X (antigo Twitter). “O autoproclamado Estado Islâmico não anunciou uma campanha idêntica o ano passado”, nota a especialista, acrescentando que o Daesh “parece estar empenhado num início do ano forte, especialmente após meses de atividade reduzida globalmente”.
Logo após o anúncio da nova campanha “matem-nos onde os encontrarem”, a analista apurou que o autoproclamado do Estado Islâmico tinha “reivindicado mais de 30 ataques em vários países”, precisamente sob o mote da campanha. No entanto, além do que aconteceu no Irão, os atentados tiveram pouco impacto.
Por sua vez, o especialista na região do Médio Oriente, Aymenn Jawad al-Tamimi, comentou à agência Reuters que o atentado no Irão é um sinal de um esforço para voltar a ganhar poder e relevância. “O objetivo do grupo permanece o mesmo”, assinala, apontando que a finalidade passa por “estabelecer um califado que deverá comandar o mundo inteiro”, lutando contra “os inimigos” que se coloquem no seu caminho.
O autoproclamado Estado Islâmico já deu provas no passado que não tem limites para a construção do seu califado. Com a situação de segurança precária no Médio Oriente decorrente da guerra entre Israel e o Hamas (que conta ainda com o eixo de resistência formado pelo Irão), esta nova campanha deste “joker” deverá contribuir para uma atmosfera ainda mais conturbada para a região. E não só — deverá ter igualmente implicações no Ocidente e em todos os “aliados” israelitas.