Recomeço, primeiro dia, reiniciar. A ala mais conservadora do CDS está a aproveitar o Congresso deste fim de semana para pressionar Nuno Melo a fixar o partido mais à direita. De ex-líderes, como Manuel Monteiro, a atuais dirigentes, como Paulo Núncio, a exigência é que o CDS resgate bandeiras perdidas para o Chega e negoceie sem complexos com o parceiro de Governo (o PSD) para conseguir marcar a agenda nestes temas. Os congressistas — na reunião magna que decorre este sábado e domingo em Viseu — parecem gostar do plano de afinação ideológica do CDS e reagiram com aplausos a qualquer referência ao aborto, à ideologia de género ou à eutanásia.
A estratégia tem duas etapas: assumir a defesa dos valores de direita na AD e crescer para o PSD. Manuel Monteiro deixou um primeiro conselho que é também uma espécie de aviso a Luís Montenegro: “É bom que o nosso parceiro saiba que existe uma coligação e que o governo é um governo de dois partidos e não apenas de um.” O antigo líder parlamentar Nuno Magalhães alinhou pelo mesmo diapasão e disse que na coligação “lealdade não é subserviência” e “solidariedade não é submissão”.
A base para fazer essa exigência foi comum a quase todas as grandes figuras do partido: Luís Montenegro só é primeiro-ministro porque foi a votos coligado com o CDS. O próprio Nuno Melo foi porta-voz dessa ideia, que resumiu naquilo a que chamou “um exercício aritmético”: “É evidente que a vitória aconteceu porque o CDS se juntou ao PSD”.
Manuel Monteiro considera que este ascendente é uma boa razão para não sacrificar as bandeiras àquilo que o parceiro PSD acha ou não prejudicial para o Governo. “O que é que isto significa? Significa que nós não temos que pedir desculpa, doutor Paulo Núncio, por sermos contra o aborto“, atirou o ex-líder do CDS. A sala aplaudiu.
E o ex-presidente do partido continuou com a lição: “Significa que, quando houve um referendo em Portugal, o primeiro sobre esta matéria, o partido que deu a cara foi o CDS. Também foi acusado, espezinhado, assobiado, mas nós lá estávamos, na perspetiva que sempre tivemos de que os valores não se negoceiam, os valores não se traem, não se colocam em segundo plano.”
Paulo Núncio — que durante a campanha eleitoral foi obrigado a moderar-se depois de um puxão de orelhas do PSD por ter falado sobre aborto — tinha discursado umas horas antes, sem abdicar de ter algumas das (antigas) bandeiras do CDS no seu discurso. O líder parlamentar deixava a promessa: “Acompanharemos com cuidado a decisão do Tribunal Constitucional sobre a lei da eutanásia, na sequência do pedido apresentado pela Provedora de Justiça a solicitação do CDS.” E acabaria por ir também à questão do aborto — que lhe tinha dado o tal dissabor na campanha — ao acrescentar: “A vida humana, quer no início da gestação, quer no final do seu período, continua a ser, como sempre foi, uma causa do CDS.”
Paulo Núncio acrescentaria ainda, num momento mais emotivo, e olhando para a deputada que, no CDS, tem tratado das matérias legislativas nesta área: “Ao defendermos a causa da vida, honraremos o trabalho incansável de uma das melhores deputadas que o CDS já teve, a Isabel Galriça Neto, no combate por um país mais humano e por um país mais justo.”
Também Telmo Correia, atual secretário de Estado no Ministério da Administração Interna, defendeu do púlpito que a “família deve ser defendida”, mas sugeriu — o que tem mais peso por ser governante — que o partido liderasse o espaço à direita dentro da coligação governamental.
O “sururu” e a família para pressionar o PSD
A pressão de Manuel Monteiro — o congressista que, por ser ex-líder, discursou mais tempo, cerca de 40 minutos — é dupla: não é apenas sobre Nuno Melo, mas também sobre Luís Montenegro. No púlpito do Congresso lembrou, aliás, que é um dos autores do livro “Identidade e Família”, obra apresentada por Pedro Passos Coelho no meio de uma polémica pública. Para o ex-líder do CDS, o livro “causou um sururu“, “como se defender a identidade e defender a família fosse um crime”.
Apontando ainda mais ao PSD, Manuel Monteiro identificou o problema de “algumas pessoas que querem os votos da direita desprezando os valores da direita.” E até nomeou, para que todos percebessem que estava a falar tanto do PSD e como de algumas alas do CDS: “Isso tanto vale para nós, como vale para o Partido Social Democrata”.
Em entrevista à Rádio Observador, Manuel Monteiro complementava este sábado a ideia de que o “novo desafio da nova vida do CDS-PP começa agora” e que o futuro do partido “passa pela afirmação do CDS como um partido conservador“. O ex-líder diz que o partido “se perdeu dentro de si próprio” e que não se deve retirar a ideologia da política. Culpa Cavaco Silva pela ideia de que “os portugueses não têm ideologia” e que o que o que importa é fazer obra. “Quando tiramos a ideologia da política, é como uma comida sem sabor”, atira.
Manuel Monteiro chega a auto-responsabilizar-se pela perda de identidade do partido, mas nunca esconde o confronto com a visão de Assunção Cristas, que pretendia ter um partido ao centro e catch all. Não é por isso de estranhar que, minutos depois da intervenção do ex-líder do CDS, Cecília Meireles até tenha respondido com alguma irritabilidade ao tema do aborto referido por Manuel Monteiro: “A lei está bem como está. Não é um tema tabu, é um não-tema”.
O problema é que o vazio à direita foi entretanto ocupado, como o próprio Manuel Monteiro reconheceu em declarações ao Observador: “Não foi o Chega que inventou bandeiras, foi o CDS que as perdeu”.
Os “caladinhos” do Chega e o CDS “dono da casa”
Manuel Monteiro não concorda que os eleitores conservadores perdidos para o Chega já não voltem. Pelo contrário. “Não podemos defender as mesmas coisas e não podemos dizer que quem vota em nós está bem e que a gente que vota no Chega é burra”, avisa.
O centrista diz que o desafio do CDS deve ser, precisamente, “trazer os eleitores de volta, atraí-los”, até porque, acredita, esse é um terreno onde o partido tem provas dadas: “O CDS é o dono da casa”. E Manuel Monteiro não perde tempo, colando o Chega a uma imagem de direita fofinha, que se modera para ganhar votos.
Referindo-se indiretamente ao Chega, Manuel Monteiro atirou: “Não me assustam pessoas que são tão corajosas na defesa dos valores, mas que durante a campanha eleitoral, quando perceberam que queriam agradar a todos, meteram esses valores na gaveta e nem abriram a boca sobre eles.” E acrescentou: “Eles eram contra o aborto, eram contra a identidade de género, eram contra a eutanásia. Na campanha eleitoral, caladinhos. Caladinhos, não fossem assustar a caça. Essa é uma diferença essencial. Porque o CDS é um partido que não tem medo de perder votos”.
Nesta linha, o CDS também vai firmando diferenças nas semelhanças que tem com o Chega. Manuel Monteiro, por exemplo, ataca os subsidiodependentes, mas rejeita a ideia de associá-los a qualquer grupo (como faz André Ventura) e até lembra que o CDS chegou a ser “o partido dos ciganos” e que a “comunidade cigana” chegou a fazer “a segurança da comitiva do CDS no Alentejo” nos anos 70. Também Telmo Correia faz questão de destacar diferenças, por exemplo, na imigração: “Ao contrário de outros, não somos contra a imigração; somos pelo rigor na entrada, humanidade na integração”. De qualquer forma, Telmo Correia deixou claro o que pretende para o partido: “A nossa identidade é sermos o braço direito da AD, o braço direito de Portugal”.