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Era dia de Reis e, para assinalar o início de mais um ano, perto de 50 pessoas decidiram juntar-se para jantar. O local escolhido foi a cidade de Évora e, mais do que uma comemoração pela chegada de 2024, havia uma paixão a unir estes participantes: as motas. Todos pertencem a um grupo motard, com sede em Évora. Pelo menos a maioria é sócia do grupo — cada membro podia levar familiares ou amigos mais próximos ao jantar e, “normalmente, levam os filhos”, conta ao Observador uma das sócias do grupo.
A filha de um dos sócios é Maria (nome fictício), que tinha na altura 12 anos. No final do jantar, juntaram-se todos para registar o momento e, na fotografia, perto de Maria, surge um jovem de camisola branca. É Miguel Bravo, cantor natural da Azaruja conhecido pelos concertos em festas populares e pela sua participação no Got Talent em 2021, e está ali porque o pai também faz parte do grupo de motards.
O jantar terminou por volta da meia noite e a família de Maria foi para casa. A viagem era curta e mais ou menos 20 minutos depois já estavam todos em Courelas da Toura – mãe, pai e filha. Por volta da uma da manhã, cai na caixa de mensagens do Instagram de Maria uma mensagem de Miguel Bravo. “Estás tão bonita. Estás a ficar muito jeitosa, com um corpo muito lindo”, dizia Miguel, conta ao Observador um dos membros da família da jovem que estava a dois meses de chegar aos 13 anos. “Ela respondeu com três k” – o equivalente a um riso por escrito –, continuou.
E assim começaram as conversas entre Miguel Bravo e Maria, que saltaram naquela noite do Instagram para o WhatsApp. Os dois vivem em terras vizinhas, ele na Azaruja e ela em Courelas da Toura, mas há muito mais a separá-los do que a distância física. Há um fosso entre as idades destes dois: ela menor de idade; ele um adulto.
O fim daquele jantar foi só o início de uma troca de mensagens que culminou com a detenção de Miguel Bravo, no passado sábado à noite, quando este se preparava para entrar em palco, por suspeitas de três crimes de abuso sexual de menores e de três crimes de pornografia de menores. O caso continua em investigação e a Polícia Judiciária, apurou o Observador, não exclui a existência de outras vítimas.
Os pedidos de fotografias íntimas e a queixa na Polícia Judiciária
As conversas duraram cerca de sete meses, entre janeiro e julho, e Miguel Bravo começou por pedir fotografias íntimas à menor. Já com os ficheiros no seu telemóvel, explicou a mesma fonte (um familiar de Maria que pediu para não ser identificado), “ameaçou-a para ter mais”. “Ou mandas mais ou vou espalhar as fotografias”, continuou. Depois surgiram as fotografias e vídeos, também íntimos, enviados pelo cantor de 21 anos para o telemóvel de Maria. “Em abril, as coisas já não estavam bem, a gente pediu ajuda, mas não sabia explicar que ajuda, porque eu não sabia o que se estava a passar. A gente sabia que havia qualquer coisa, ela andava diferente”, acrescentou.
Também em abril, Maria ainda falou com a pediatra e com a médica de família, numa tentativa de ter acesso a uma consulta de psicologia. “Mas perguntaram: ‘porque é que precisas de uma consulta?’. A Maria disse que andava muito nervosa. Foi feito um pedido e o que estava escrito no pedido é que não havia necessidade de ter psicólogo, porque havia na escola, mas na escola só para o fim do ano letivo é que a chamaram e foi lá duas ou três vezes nas últimas semanas de aulas.”
Pelo meio, enquanto os dois trocavam mensagens e Maria recebia chamadas de Miguel Bravo, as notas da jovem agora com 13 anos começaram a baixar. As duas negativas que teve no primeiro período transformaram-se em sete logo no período seguinte e não desapareceram no fim do ano. “Começou a desinteressar-se de tudo, fechava sempre a porta do quarto, o que não era normal, já não estava connosco como antes, já não fazia companhia”, conta a mesma familiar, acrescentando que a menor terá agora de repetir o sétimo ano.
Foi já em julho que Maria entregou o telemóvel à mãe, sem explicar o que se passava. Disse apenas que precisava de alterar uma password e deixou a conversa com Miguel Bravo à vista da mãe — o cantor oferecia 20 euros a Maria se esta enviasse uma fotografia sua. A partir dessa altura, sem saber, o cantor deixou de falar com a menor, passando a falar com a sua mãe — que acabou por fazer queixa às autoridades. Todas as conversas ficaram guardadas no telemóvel da jovem, o que, segundo apurou o Observador junto de fonte da PJ, tem sido crucial para a investigação, uma vez que Miguel Bravo apagou todos os registos do seu telemóvel.
Aliás, também de acordo com esta familiar, nas conversas este terá pedido várias vezes à menor para que apagasse a troca de mensagens, tendo chegado ainda a oferecer 100 euros por uma fotografia — esta última conversa foi numa chamada telefónica e, por isso, não é possível recuperar o registo.
“De cabeça perdida”, a mãe de Maria foi até à casa dos pais de Miguel, mas o jovem de 21 anos não estava lá. Acabou por falar com ele através de uma chamada, ainda na presença dos pais dele. “Primeiro negou tudo, depois a primeira coisa que disse foi que não lhe tocou e que só tinha de pedir perdão”. Entre a queixa e a detenção passou pouco mais de uma semana e, segundo fonte da Polícia Judiciária, o facto de Miguel Bravo ter apagado todas as mensagens que tinha no seu telemóvel torna mais difícil a investigação, para apurar se existem outras vítimas.
“Não é ainda possível dizer se o conteúdo apagado é ou não recuperável, mas para já a prova dos factos relativos a esta primeira vítima [a Maria] só foi possível de alcançar com recurso ao telemóvel da menor, que continha as conversas, as fotografias e os vídeos”, revelou ao Observador fonte da PJ. Para que sejam encontradas mais vítimas é, por isso, fundamental que as mesmas apresentem queixa à Polícia Judiciária.
Para já, Miguel Bravo saiu em liberdade depois de ter sido presente no Tribunal de Instrução Criminal de Évora, tendo o juiz de instrução decretado como medida de coação que o cantor não esteja a menos de 500 metros da menor.
Um dos primeiros concertos foi no café da família da vítima
O jantar do grupo de motards não foi o único momento em que as duas famílias se juntaram. Mas foi graças ao grupo de motards que se conheceram, já que os pais de Maria e de Miguel fazem parte do núcleo de fundadores. E foi em 2016, no café que a mãe de Maria teve durante alguns anos na sua terra, em Courelas da Toura, que Miguel Bravo deu um dos seus primeiros concertos — eram os primeiros passos de uma carreira que hoje é conhecida a nível nacional, em casamentos e em festas populares. “Tinha um órgão pequenino e uma coluna pequenina e já cantava”, conta ao Observador outro membro da família de Maria. Miguel tinha 13 anos e, nessa noite, não recebeu dinheiro pelo pequeno espetáculo: “As pessoas davam o que queriam, mas os pais não aceitaram dinheiro nenhum”.
Quando cantou no café, Miguel Bravo tinha mais ou menos um ano de carreira. Pelo menos foi o que disse o próprio na Rádio Renascença, há cerca de quatro meses, quando esteve no Programa “As Três da Manhã”. “Sou músico, animador, entretenho pessoas e gosto de ver pessoas felizes”, começou por dizer.
“Comecei aos 12 anos em batizados, coisas mais privadas. Comecei porque quis. Desde os quatro anos que ia a festas populares, com guitarras, metia-me à frente do palco, eles chamavam-me para o palco. E depois tenho uma coisa: é que eu nunca cantei nada de jeito, mas sei entreter pessoas, é o que me vale”.
E foi precisamente isso que Manuel Moura dos Santos, jurado do programa Got Talent, transmitido pela RTP, disse a Miguel Bravo em 2021, quando apareceu em palco com uma camisola vermelha com as suas iniciais em branco e um órgão: “Tu, de facto, tens a noção de entretenimento. Cantar é zero, mas também não é preciso, pelos vistos. És um animador por excelência e a tua atuação valeu por isso”. De máscara, numa altura em que a pandemia ainda era uma realidade, tanto os jurados como as pessoas que estavam a assistir acabaram a atuação de Miguel Bravo (que na altura tinha 18 anos) a dançar e admirados com as suas declarações sobre os espetáculos: “Fiz, em 2019, 253 espetáculos”. Com luz verde para passar à fase seguinte, admitiu, na segunda atuação, que já tinha 160 concertos marcados para aquele ano. “O tipo de espetáculo que eu faço é um típico cantar português, que anima todas as pessoas à minha volta e, neste momento, devido à pandemia, tenho um show móvel”, acrescentava.
Quatro concertos na mesma noite com mais de 300 quilómetros de distância
Os concertos sempre foram muitos. Começaram a aumentar depois do programa Got Talent e começaram também a aumentar os contactos feitos por associações, municípios e particulares, a maioria através das redes sociais, sobretudo pelo Instagram. Mas com os pedidos a multiplicarem-se, vieram também as sobreposições de espetáculos — Miguel Bravo chegava a marcar concertos com mais de 300 quilómetros de distância, praticamente à mesma hora.
Foi o que aconteceu com o agrupamento de escuteiros da Areosa, no Porto, que estava responsável pela organização do arraial de São Pedro deste ano. Queriam ter a animação de Miguel Bravo e um dos organizadores, Pedro Santos, enviou uma mensagem ao cantor através do Instagram. A resposta foi imediata, contou ao Observador, e Miguel Bravo enviou logo o seu contacto pessoal e exigiu 500 euros pelo espetáculo que seria realizado na noite de 29 de junho. Mas metade do pagamento teria de ser feito no momento por Mb Way, ficando automaticamente disponível na conta de Miguel Bravo.
“Disse que tinha de debater o valor com o resto do grupo”, explicou Pedro Santos, acrescentando que o jovem de 21 anos começou a insistir para que a decisão fosse tomada o mais rápido possível, assim como o pagamento.
O tempo ia passando e as insistências de Miguel Bravo aumentavam, tendo chegado a baixar o valor pedido inicialmente. Ficaram pelos 250 euros e o grupo de escuteiros enviou logo 180 euros através da aplicação Mb Way. “Recebemos logo um e-mail dele com o nome dele, com os dados do Cartão de Cidadão, a dizer que declarava que tinha recebido aquele dinheiro e que no dia 29 de junho recebia os restantes 70 euros”, contou Pedro Santos.
Com tudo tratado, o grupo de escuteiros da Areosa decidiu divulgar o cartaz das festas populares e os organizadores começaram a receber contactos com a indicação de que Miguel Bravo tinha espetáculos marcados para essa noite noutros pontos do país. Só para a noite de 19 de junho, tinha um concerto em Alfragide, na Amadora, outro em Vila Real, outro em Benavente e outro na Areosa. “Perguntei como é que ele conseguia fazer tudo e ele mandava áudios a dizer que estava tudo tratado. Mas a partir daí não dava para contactar por chamada, só por WhatsApp”, explicou. Com a data a aproximar-se, este grupo optou por arranjar outra solução, mas nunca conseguiu recuperar os 180 euros que pagou a Miguel Bravo. “Só foi a Benavente, porque era o único concerto que tinha sido marcado pela agência. Fechou quatro noites e só fez um concerto”, disse ainda Pedro Santos, acrescentando que ainda falou com a agência, que disse não ter conhecimento dos concertos marcados através das redes sociais.
Este agrupamento de escuteiros avançou com uma queixa na PSP do Porto, mas nem todas as pessoas lesadas neste esquema fizeram o mesmo. Ainda que esta não seja uma prática recente do artista: as histórias são várias e as queixas em comentários e publicações nas redes sociais também não são de agora. Já em 2022, Miguel Bravo fez o mesmo em Ourique. A câmara municipal contratou-o para as festas de Garvão, mas Miguel não chegou a aparecer. “Lamentavelmente, Miguel Bravo faltou ao compromisso com a feira de Garvão sabendo-se que tinha vários agendamentos para o mesmo dia e horas”, escreveu o município no Facebook. Contactado pelo Observador, Marcelo Guerreiro, presidente da autarquia, explicou que não chegaram a fazer queixa, apesar de terem inicialmente pensado nisso, uma vez que, neste caso, não tinha sido feito qualquer pagamento.
Mas a falta de comparência e a não devolução do dinheiro não é uma prática exclusiva de festas populares e arraiais. E as queixas estendem-se ao mundo dos casamentos. No ano passado, Daniela Ramalho estava a preparar o seu casamento e enviou uma mensagem através do Instagram a Miguel Bravo. A resposta também foi imediata: por 600 euros, cantava e ainda levava os seus equipamentos de som e luz. “Para marcar, terá de sinalizar 250 euros de entrada e no dia paga o restante”, lê-se numa das mensagens que Daniela Ramalho partilhou com o Observador. “Temos coreografias, festa rija com os convidados”, acrescentava o jovem.
E, mais uma vez, Miguel Bravo começou a pressionar para que a transferência fosse feita na hora, o que levou Daniela Ramalho a questionar: “Mas porquê tanta insistência em relação ao pagamento?”. “Não é nada disso, apenas é a forma como marco as coisas, pois já muita gente me deixou na mão. Não leve a mal, é de confiança e vai ter uma grande festa”, respondeu Miguel Bravo. A transferência foi feita e Miguel Bravo não voltou a entrar em contacto com os noivos para discutir os pormenores do casamento, que estava marcado para outubro. “Ele nunca mais disse nada. A senhora da quinta disse que achava estranho ele não dizer nada, que já estávamos perto do casamento e disse para arranjarmos outra opção, porque se ele não diz nada o mais certo é falhar”, explicou.
Foi já em junho que Daniela Ramalho decidiu fazer uma pesquisa rápida e descobriu que, afinal, o cantor que viu nas festas de Freixial do Campo, em Castelo Branco, era conhecido também por “burlas”. Procurou o nome de Miguel Bravo e encontrou dezenas de queixas relacionadas com falhas na prestação dos seus serviços e, nessa altura, a opção foi cancelar o que tinha combinado com o cantor. Pediu o dinheiro de volta, mas nunca chegou a recebê-lo, apesar de enviar mensagens todos os dias. A resposta era sempre a mesma, até deixar de responder: “Vou pagar. Prometo, sem falta”. Mas, tal como o município de Ourique, Daniela Ramalho também não avançou com qualquer queixa na polícia.
O Observador questionou a Procuradoria-Geral da República sobre possíveis investigações em curso, mas não obteve resposta até à publicação deste artigo. E do lado da PSP e da GNR foi indicado que não podem ser fornecidos dados relativamente a uma pessoa em particular, uma vez que está em causa a proteção dos respetivos dados. No entanto, o Observador confirmou junto de uma fonte conhecedora destes casos que só à PSP foram apresentadas várias queixas, de Norte a Sul do país, contra Miguel Bravo por cobrança de serviços que nunca chegou a prestar.
Não tinha carta de condução, mas tinha carro de luxo
Também no programa da Rádio Renascença, Miguel Bravo contou que aos 12 anos já ganhava algum dinheiro. “Era o amigo que pagava todos os almoços na escola”, disse a rir. Mas pela Azaruja, a freguesia onde vive e para onde voltou depois de ser libertado, quem o conhece conta ao Observador que nos últimos tempos “estava sempre a pedir para lhe pagarem a conta do café, porque nunca tinha dinheiro”.
E há até quem lhe tenha “dado umas oliveiras para ele vender azeite e ganhar algum dinheiro”, como contou ao Observador um dos habitantes da Azaruja, que preferiu manter o anonimato. Com os termómetros a marcarem 47 graus, este morador, sentado num banco de pedra com vista para uma praça de touros que já não é utilizada, explicou que Miguel Bravo terá conseguido algum dinheiro com a venda de azeite, mas “no dia seguinte já não tinha dinheiro”. “Apareceu no café e já estava a pedir para lhe pagarem a conta”, acrescentou.
São poucas as pessoas que andam pelas ruas da Azaruja pelos dias em que o calor só permite estar à sombra. E as que ainda circulam ou estão sentadas nos bancos à procura de um abrigo dizem que ficaram surpreendidas com a detenção de Miguel Bravo, mas há muito que as histórias das alegadas burlas são conhecidas. “Não tenho nada a dizer, é um rapaz de 21 anos com uma cabeça de 14, é um miúdo”, diz outro morador da Azaruja ao Observador. E os que se juntam à sombra vão dizendo que não acreditam. “Custa-me a crer, mas o tribunal lá sabe o que faz”, vão acrescentando.
Era uma vida de altos e baixos. De dias em que andava sem dinheiro e de períodos em que gastava muito. A vida que os vizinhos observavam contrasta por isso com os excessos que a investigação da Polícia Judiciária já encontrou, com gastos que estão longe de ser compatíveis com os rendimentos que conseguia através dos concertos que dava.
“Tinha uma vida de luxo. Não tinha carta de condução, mas tinha um bom carro e uma pessoa para conduzi-lo”, apurou o Observador junto de fonte desta polícia, sublinhando que parte dos exageros dos últimos anos passava por grandes jantares, que incluíam “altas mariscadas”.
A forma como a fama terá mudado a sua vida foi descrita pela irmã nas redes sociais, logo após a sua detenção. “O Miguel tornou-se alguém que deixei de conhecer. A suposta ‘fama’ iluminou-o, mas… a mesma ofuscou-o”, sentenciava Raquel Bravo no seu Instagram, adiantando que o irmão “deixou de ser o miúdo humilde, cativante, bom amigo, para procurar ser falado em tudo o que é sítio”.
“O Miguel tornou-se o seu pior amigo, sem dar conta, sem aceitar qualquer tipo de ajuda. A falta de maturidade prejudicava-o. Falta-lhe os pés bem assentes no chão. Uma perspetiva de futuro e a certeza de que para se ter amigos não teremos que lhes oferecer dinheiro. Assim como pagar tudo e mais alguma coisa. O Miguel faz o que gosta, que sorte ele tem e não a valoriza”, lamentava ainda, rematando que o jovem “ganha o que muito de nós teremos que trabalhar alguns meses para conseguir ganhar” — mas “com a perda da noção do valor do dinheiro, o mesmo virou um simples papel e fácil de alcançar”.
Cantor Miguel Bravo sai em liberdade após detenção por suspeitas de crimes sexuais