Conan, o cão do candidato presidencial argentino Javier Milei, morreu em 2018. Com uma personalidade solitária, o economista contou, em várias entrevistas, que o animal lhe salvou a vida e foi a sua companhia durante várias épocas festivas. Tinha uma afeição tão intensa com o animal que, após a sua morte, decidiu cloná-lo. Agora, aquele que poderá vir a ser o próximo Presidente da Argentina, tem quatro ‘réplicas’, iguais a Conan. “São os meus filhinhos de quatro patas.”
Este episódio é demonstrativo da personalidade excêntrica de Javier Milei, um economista esotérico considerado “louco” pelos críticos e um “génio” pelos admiradores. O homem de 53 anos, uma celebridade televisiva na Argentina, é o favorito das sondagens para ocupar a presidência do país da América do Sul, mesmo sendo um outsider político. “Anarcocapitalista” e libertário que deseja limitar a influência do Estado na economia, o candidato tem como um dos seus ídolos o ‘pai’ do liberalismo: Adam Smith.
Mas a segunda volta das eleições argentinas, que decorrem este domingo, é uma corrida que não conta apenas com Javier Milei. Menos polémico e com um perfil mais técnico, Sergio Massa, o atual ministro da Economia e que tentou gerir no último ano um país que vive com uma inflação galopante, espera assumir a presidência. Representante nestas presidenciais do movimento político argentino peronismo, o governante é hoje visto igualmente como o herdeiro da presidência de Cristina Kirchner.
O percurso político de Sergio Massa foi, no entanto, tudo menos estável. Mudou de partido, entrou e saiu do governo, incompabilizou-se com o peronismo e com a ex-Presidente Cristina Kirchner — os seus apoiantes chegaram a considerá-lo um “traidor” —, mas voltou a ser acolhido por aquele movimento político, que continua a ser influente na sociedade argentina e agora é o seu principal rosto.
Um destes dois homens será o próximo Presidente argentino e terá de enfrentar um contexto interno bastante difícil. Fora de fronteiras, principalmente entre os vizinhos da Argentina, existe alguma apreensão caso Javier Milei seja eleito chefe de Estado. Numa América do Sul mais à esquerda, um anarcocapitalista, rotulado como sendo extrema-direita, alterará o panorama político e poderá dar força a políticos com ideologias idênticas.
O vizinho Brasil é dos que têm expressado mais preocupação. O Presidente brasileiro, Lula da Silva, atirou que é preciso que a Argentina tenha um Chefe de Estado que “que goste de democracia, que respeite as instituições, que goste do Mercosul, que goste da América do Sul”, num claro recado a Javier Milei. A animosidade é recíproca; o argentino tem criticado duramente o petista, apelidando-o de “comunista” e “corrupto”.
Javier Milei. O polémico candidato que defende a dolarização da Argentina e o mercado livre
Uma motoserra. Esta ferramenta é o símbolo da campanha de Javier Milei. Por um lado, demonstra o corte com o passado peronista que o candidato quer empreender na política argentina. Por outro, acaba por ser uma representação do estilo agressivo, polémico e barulhento que o economista tem adotado ao longo dos últimos meses.
Um dos alvos do estilo agressivo de Javier Milei é o argentino Papa Francisco. “Um representante maligno”, “um jesuíta que promove o comunismo” e “uma personagem nefasta” foram alguns dos insultos que o candidato lhe dedicou nos últimos tempos. O Vaticano reprovou esta atitude e respondeu: “O Papa é para [a Igreja] um profeta da dignidade humana num tempo de violência e exclusão”.
Porém, mesmo que estas palavras lhe façam perder votos num país extremamente católico, este é o estilo do economista, que aplica uma retórica mais inflamada contra adversários políticos e todos aqueles aqueles que lhe fazem frente. Num país com a economia em chamas e uma forte instabilidade social, esta forma de comunicar tem ganhado adeptos. “A gente começa a ouvir um senhor indignado e pensa ‘finalmente alguém fala como eu’, porque tem a franqueza de dizer as coisas como são”, defende Belén Amadeo, politóloga da Universidade de Buenos Aires, em declarações à Agence France-Presse.
A par da agressividade, o modo de vida excêntrico dá nas vistas e cativa parte do eleitorado. Apesar de comentar apenas assuntos económicos nos programas de informação, Javier Milei — com a sua postura arrojada e comentários nada convencionais — converteu-se numa estrela televisiva, capaz de gerar grandes audiências. Para além disso, as suas declarações eram alvo de discussão nas redes sociais. A sua vida privada também fez manchetes nas revistas cor de rosa — e o economista não tinha medo de contar detalhes, revelando, por exemplo, numa entrevista, as suas “experiências de sexo tântrico”.
“Sabem qual é a diferença entre um génio e um louco? O sucesso”, responde Javier Milei a todos aqueles que reprovam o seu estilo de vida. Após o comentário económico, o candidato presidencial entrou na vida política em 2021 e teve uma ascensão meteórica. Se por um lado é de certo modo um amador, por outro vários analistas consideram que, num país onde a taxa de inflação chegou aos 142%, isso acaba por ser uma vantagem, dado que o desvincula dos restantes políticos argentinos.
Na ótica de Belén Amadeo, o economista não faz parte da “casta” política argentina, estreitamente ligada ao peronismo, ganhando a fama, nas redes sociais, de uma personagem “simpática” precisamente porque “não é político”. E é em plataformas como o Facebook, o TikTok e o Instagram que Javier Milei consegue atingir grande parte do seu eleitorado: os jovens.
Segundo várias sondagens, o voto jovem é a “pedra angular” do sucesso eleitoral de Javier Milei, o que ganha força com o facto de no país se poder votar a partir dos 16 anos. Numa das sondagens, mais de 60% dos jovens entre os 16 e os 24 anos apontaram que vão votar no economista; apenas 31% dizem que vão votar no adversário Sergio Massa. À Folha de São Paulo, Mariano Pérez, um youtuber argentino de 20 anos, contou que recorda os tempos em que o economista fazia apenas comentário económico na televisão: “Quando Milei começou a ter destaque, eu tinha uns 16 anos. Passava o dia todo no Youtube ou nas redes sociais e adorava como ele discutia com os jornalistas e como ele defendia as suas com ideias com paixão. Eu pensava: ‘É isto que eu penso'”.
Enfrentando cada vez mais dificuldades, num país em que poucos dizem ver futuro, a geração Z olha para Javier Milei como alguém que é capaz de mudar a economia na Argentina — e muitos concordam igualmente com as ideias libertárias do candidato.
No âmbito económico, não é surpresa para ninguém que Javier Milei quer diminuir ao máximo o papel de Estado na economia. Assim, o candidato pretende diminuir o papel do banco central, cortar os gastos públicos e adotar um estado social mínimo. Sendo uma das suas bandeiras acabar com os subsídios, as suas políticas levariam a um inevitável aumento do custo de vida. Mesmo assim, isso parece não incomodar os votantes. À agência Reuters, Valentina, de 21 anos, contou que vai votar neste candidato, porque “concorda com a maioria dos seus planos económicos”, ressalvando, no entanto, que não “é a sua primeira escolha”. “É o que tenho.”
Uma das medidas mais polémicas do programa eleitoral de Javier Milei passa pela dolarização da economia, isto é, o dólar norte-americano passar a ser a moeda oficial da Argentina, substituindo o peso argentino. “Jamais em pesos, jamais em pesos. O peso é a moeda emitida pelos políticos argentinos, portanto não pode valer nem estrume, porque esses lixos não servem nem para adubo”, atirou o economista argentino.
Usando o dólar como moeda oficial, o banco central argentino — que Milei disse querer “dinamitar” — deixava de ter o controlo da política monetária. Isso impediria que o sistema financeiro do país emitisse moeda quando desejasse, uma prática que o atual governo tem seguido e que gera inflação — o dinheiro desvaloriza e fica sem valor rapidamente. Mas certos economistas têm dúvidas sobre a eficácia medida. À CNN, o economista Claudio Loser descreve o conceito como “atrativo”, mas reconheceu que a prática “é muito difícil”.
“Não se trata apenas de converter o dinheiro em circulação, mas também empréstimos e depósitos. Não é algo automático. Tem de haver um sistema de apoio para conseguir essa mudança e não há nenhuma garantia que uma dolarização gere uma estabilidade económica automática”, opina o economista.
Javier Milei apresenta ainda ideias sociais conservadoras. Além de ser um liberal no domínio económico, é contra o aborto, contra a educação social nas escolas, contra a união de pessoas com o mesmo sexo, contra o “marxismo cultural” e duvida que as alterações climáticas sejam causadas pelo homem. Simultaneamente, deseja liberalizar a venda e posse de armas e até de órgãos humanos.
Tudo isto faz com que seja comparado ao antigo Presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, e ao ex-Presidente norte-americano, Donald Trump. Na política externa, Javier Milei lançou várias críticas à China e ao governo brasileiro — e é um acérrimo defensor de Israel. Se vencer as eleições, as relações com Lula da Silva e com o Mercosul complicar-se-ão — e o economista já prometeu que, caso vença, “não falará” com aquele que seria o seu homólogo brasileiro.
Sergio Massa. O veterano político que gere a economia do país
Sergio Massa é um político experiente, habituado aos corredores do poder. Contra todas as expectativas e as sondagens, venceu a primeira volta das eleições presidenciais argentinas, conquistando 36,6% dos votos. Em segundo, a menos sete pontos percentuais, ficou Javier Milei. O resultado foi inesperado, mas o candidato mostrou, ao longo dos seus 30 anos de carreira, uma capacidade fora do normal para virar o jogo a seu favor.
Tido como um “negociador nato”, Massa foi escolhido, em julho de 2022, para o cargo de ministro da Economia, numa altura em que taxa de inflação já era elevada. O estado em que assumiu o cargo — surgindo como um ‘salvador’ das contas públicas — foi fundamental, uma vez que, escreve a Folha de São Paulo, a sociedade argentina não o culpa diretamente pela crise económica. Além disso, mesmo estando próximo de círculos de partidos de centro-esquerda, o advogado de 51 anos mantém uma boa relação com os empresários do país, algo que cimenta a sua reputação.
Por conta do seu cargo, a campanha de Sergio Massa dá grande ênfase à redução da inflação. O ministro promete criar empregos, explorar os recursos naturais argentinos e discutir a questão do endividamento com organizações internacionais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI).
Num duelo político contra um candidato com uma retórica agressiva e menos comedida, Sergio Massa tenta passar uma imagem moderada. Como refere à BBC Facundo Nejamkis, diretor da Opina Argentina, o político tem tentado alertar “para os riscos que Milei tem para o sistema democrático”. “Tenta atrair outros eleitores e opositores que não gostam do peronismo, mas que são sensíveis à discussão da democracia e das instituições, que a liderança de Milei coloca em xeque.”
Outro dos trunfos, mesmo tendo a inflação e as condições de vida piorado nos últimos anos, consiste em ser o defensor da “justiça social”, contrapondo-se radicalmente ao rival. A ideia de um Estado que providencie aos cidadãos certos apoios sociais “está muito presente no inconsciente coletivo argentino”, constata Facundo Nejamkis.
Ainda assim, o percurso político de Sergio Massa levanta algumas dúvidas a parte do eleitorado. Devido à sua inconstância, é conhecido como o “político panqueca” por ter mudado inúmeras vezes de posição. O jornalista Christian Sanz, que acompanha o ministro há mais de dez anos, define-o da seguinte maneira: “Ele não tem ideologia, é um homem pragmático, que se move somente pelas suas ambições, o que é perigoso. Não lhe importa se o veem como de direita ou esquerda, ele é um catavento”.
Independentemente das incoerências que foi mantendo ao longo dos 30 anos, Sergio Massa herdou grande parte do eleitorado peronista e da antiga Presidente Cristina Kirchner. Contando com o aparelho de Estado a seu favor — já chegou a ser acusado de usar meios estatais para fazer campanha —, o candidato é uma espécie de continuidade na política argentina, se bem que se esforce por distinguir-se dos antigos governantes.
Sergio Massa conta igualmente com vários apoios de peso na comunidade internacional, nomeadamente o de Lula da Silva e o do chefe do governo espanhol, Pedro Sánchez. Com este candidato na presidência argentina, não se esperam grandes mudanças na política externa do país, mantendo, por exemplo, boas relações com Brasília.
O que esperar das eleições?
Milhões de argentinos estão a votar este domingo — as urnas abriram às 08h00 e fecham às 18h00 (mais três horas em Lisboa) — e os resultados serão conhecidos as 21h00 (00h00 em Lisboa). A contagem, essa deverá estar concluída apenas durante a madrugada.
As tendências das sondagens não são claras — os resultados estão taco a taco. Algumas dão a vitória a Javier Milei, outras a Sergio Massa, ainda que o primeiro tenha uma pequena vantagem. Está, ainda assim, tudo em aberto, havendo muitos indecisos que nos últimos dias ainda não tinham decidido o seu sentido de voto.
Acá una recopilación de las últimas encuestas para la segunda vuelta de las #EleccionesArgentina, antes del #DebatePresidencial y de la veda; vía 1816.????????
Esta semana seguirán circulando sondeos privadamente en Argentina o en forma pública fuera. https://t.co/lC6NwtgXgm pic.twitter.com/BFsHcpZpkn— Aldo Lema – Uruguay (@AldoLema_uy) November 13, 2023
Javier Milei conta com outra importante vantagem. A terceira candidata mais votada na primeira volta das eleições presidenciais argentinas, Patricia Bullrich (do partido de centro-direita Proposta Republicana), que obteve um resultado na ordem dos 24% dos votos, declarou o seu apoio ao economista. Não se sabe, no entanto, qual será o impacto deste anúncio — e se haverá transferência de votos.
Nas urnas, 35 milhões de argentinos terão de escolher entre uma novidade arriscada e uma aposta na continuidade. O primeiro promete mudar o status quo radicalmente, o segundo prosseguir o rumo do peronismo com pequenas alterações. De todos os modos, como sublinhou a analista política Ana Iparraguirre à Agence France-Presse, os próximos tempos serão conturbados na Argentina. “Quem quer que tome posse terá de fazer algumas decisões rápidas. E vai prejudicar a população.”