A indigitação formal de Luís Montenegro, largos minutos depois da meia-noite, obrigou o social-democrata a arrancar de Lisboa em direção ao Porto, viajar noite dentro, apanhar um voo (Ryanair) para Bruxelas às seis da manhã e aterrar na Bélgica quase às dez. Apesar do inusitado vaivém de Montenegro (saiu de Belém quase às sete da tarde, regressou às 11 da noite e despediu-se dos jornalistas 30 minutos depois da meia noite, sem dizer nada de substantivo), o gesto de Marcelo teve a dupla função de cumprir um ritual constitucional – por tradição, o Presidente da República recebe a figura que vai chefiar o governo antes de o indigitar formalmente – mas também de entregar a Montenegro o fato de primeiro-ministro indigitado pronto a estrear nos palcos europeus — e isso teve um especial significado político.
Na véspera da cimeira do Partido Popular Europeu (PPE), e com António Costa em périplo europeu, a decisão de Marcelo Rebelo de Sousa (a pedido de Montenegro) permitiu ao social-democrata apresentar-se em Bruxelas não como o senhor que se segue, mas como o primeiro-ministro de facto. Não é um pormenor de somenos: atendendo à suspeição generalizada que existe (cá como lá) em relação ao prazo de validade do futuro governo, Ursula von der Leyen e Roberta Metsola, a presidente da Comissão Europeia e a presidente do Parlamento Europeu, respetivamente, aproveitaram a nova dimensão política do social-democrata também para passar uma mensagem: há um novo ciclo político em Portugal, agora quem manda é um dos seus e o PPE confia em Montenegro.
Mesmo que não tivesse sido indigitado àquela hora, Montenegro seria sempre recebido por von der Leyen ou Metsola. Mas houve um pormenor a fazer toda a diferença. Os encontros, sabe o Observador, foram marcados a pedido das próprias e que ambas fizeram questão de receber Luís Montenegro nas instalações da Comissão Europeia e do Parlamento Europeu, respetivamente, reforçando o simbolismo da transição de pastas.
Mesmo com António Costa ainda em jogo (literalmente, uma vez que o primeiro-ministro cessante também se encontrava em Bruxelas), Von der Leyen e Metsola quiseram reconhecer publicamente o novo estatuto de Luís Montenegro e registar que há mais um Estado-membro da União Europeu a ser liderado por alguém do PPE. Com um pormenor: no caso de Von der Leyen, a presidente da Comissão Europeia e recandidata ao cargo posou na véspera com Costa; no dia seguinte, fez questão de se encontrar com Montenegro. Rei morto, rei posto.
O café que selou o virar de página
A cimeira do PPE, família política europeia a que pertencem PSD e CDS, estava marcada há muito (acontece sempre antes do Conselho Europeu) e não é sequer a primeira vez que Luís Montenegro se encontra com os seus parceiros europeus. Lá e cá, de resto. Ainda em dezembro, por exemplo, Roberta Metsola participou numa reunião do Conselho Estratégico Nacional do PSD, em Lisboa, já em clima de pré-campanha eleitoral. Aliás, além das habituais participações nas cimeiras organizadas pelo PPE, onde há sempre espaço para reuniões bilaterais com os vários protagonistas (Manfred Weber, Angelika Winzig, Alberto Feijóo, por exemplo), Montenegro foi participando em sessões de formação organizadas pela sua família política europeia pensadas para preparar os líderes que compõem o PPE, transmitir as principais orientações e, naturalmente, receber os contributos de quem está à frente dos partidos em cada país.
Em vésperas de eleições europeias, onde se vai discutir a composição do próximo Parlamento Europeu, o novo equilíbrio de poderes e a distribuição de pastas entre as várias famílias europeias, este foi um sinal importante para os socialistas e para António Costa, que ainda manterá intacta a aspiração de vir a ser presidente do Conselho Europeu: em Portugal, o centro de decisão mudou. O sonho europeu de Costa dependerá sempre da boa vontade do PPE e da correlação de forças que resultar das próximas eleições europeias — e Montenegro terá uma palavra a dizer.
De resto, os dois – Montenegro e Costa – encontraram-se e tomaram um café no Sofitel Brussels Europe, onde a comitiva portuguesa tem por norma instalar-se. O encontro, garantem ao Observador fontes sociais-democratas, não foi planeado, ainda que, na véspera, António Costa tenha sinalizado a forte possibilidade de se encontrarem esta quinta-feira. Os dois surgiram à frente das câmaras, para eternizar momento, e logo depois o socialista convidou o sucessor para um café, no interior do hotel.
Aparecer ao lado de Montenegro, agora membro de direito reforçado do PPE, ajuda naturalmente às aspirações que António Costa possa ainda ter. Pelo menos, não prejudica. À saída, em declarações aos jornalistas enquanto caminhava pelo Parc Léopold com a presidente do Parlamento Europeu, Roberta Metsola, em Bruxelas, Montenegro assumia a boa relação institucional entre os dois e não escondia a boa disposição.
“Até posso confidenciar que nos temos encontrado quase sempre que há reuniões do Conselho Europeu, têm acontecido esses encontros, até aqui António Costa no exercício da sua função de primeiro-ministro e eu de líder da oposição, e a partir de agora com a assunção da responsabilidade, que ele teve até aqui, da minha parte, e ele com outros projetos seguramente”, disse.
Ora, nos últimos dois dias, Montenegro foi duas vezes desafiado a esclarecer se o futuro governo apoiaria ou não uma eventual candidatura de António Costa a presidente do Conselho Europeu. Nas duas vezes, o novo primeiro-ministro recusou responder à questão: “É prematuro dizer seja o que for sobre isso”, repetiu esta manhã. Para ser bem sucedida, essa candidatura terá de contar com a boa vontade do PPE; e é muito difícil imaginar essa campanha de António Costa sem o apoio do Governo português e do primeiro-ministro.
Para já, garante-se no PSD, é de facto muito cedo para se dizer se o governo da Aliança Democrática verá ou não com bons olhos essa eventual candidatura. Até porque há muitos pratos a rodar no ar ao mesmo tempo: ainda europeias, há vários países a ir a votos e a escolher os futuros governos; depois das europeias, é preciso ver como ficam as famílias europeias e qual é o peso relativo de cada uma, sendo que é provável, nesta altura, que o PPE saia vencedor dessas eleições.
Só depois disso será possível ter uma noção sobre a distribuição de pastas que vai exigir e será ou não um socialista a ocupar o cargo de presidente do Conselho Europeu. Confirmando-se esse cenário, que não é inverosímil, é preciso perceber se António Costa tem de facto vontade de abraçar esse desafio — ainda falta perceber como se vão desenrolar as suspeitas judiciais que recaem sobre o primeiro-ministro cessante e de que forma é que isso pode condicionar o futuro político do socialista.
Montenegro sugere que Costa maquilhou execução de fundos
Mas o facto de ter aparecido ao lado de António Costa teve outro mérito: permitiu carregar na mensagem de que a situação política em Portugal é estável e que “não há nenhuma razão” para haver preocupações em Bruxelas. “Não há nenhuma razão para colocar em causa a estabilidade do país, a estabilidade de uma solução de Governo, que, embora não disponha de maioria absoluta na Assembleia da República, dispõe da confiança dos eleitores”, sublinhou Montenegro à saída do encontro com Von der Leyen.
Além disso, era importante garantir que o novo governo português está comprometido com os compromissos europeus assumidos, mesmo tendo em conta a complexa aritmética parlamentar que saiu das eleições de 10 de março. “Não temos nenhuma dúvida sobre o papel que nos cabe desempenhar no seio da União, da construção de uma Europa mais unida, mais coesa do ponto de vista social, com a capacidade de dar aos cidadãos a maior qualidade de vida, de ter um crescimento económico que garanta também que o Estado social não é posto em causa“, repetiu Montenegro.
Ainda assim, e apesar do aparente clima de cumplicidade entre primeiro-ministro cessante e indigitado, o social-democrata não deixou de aproveitar o encontro com Von der Leyen para mandar um recado para dentro de portas: assim que tomar posse, Montenegro vai tratar de perceber se o Governo cessante escondeu alguma coisa sobre a aplicação dos fundos europeus, em particular a execução do Programa de Recuperação e Resiliência.
“Às vezes, dá-se um panorama muito otimista sobre alguns dossiês, [mas] a verdade é que há atrasos que nunca foram recuperados”, sugeriu o social-democrata, antes de deixar a suspeita no ar: “Espero que não haja nenhum problema quanto ao cumprimento dos compromissos que ainda dependem exclusivamente do Governo que está em funções. Espero que não [se percam verbas], embora saibamos que alguns compromissos que o Governo português [cessante] assumiu que não estão ainda cumpridos, que já foram causa de atraso no desembolso de algumas tranches e sabemos que haverá uma que estará disponibilizada no final deste mês de março”.
O primeiro-ministro indigitado não ficaria sem resposta. Horas depois, Mariana Vieira da Silva, ainda ministra da Presidência, depois do Conselho de Ministros, defendeu que o país “está na liderança” da execução do PRR e que Montenegro tem tudo pronto para pedir a quinta tranche do apoio europeu. “Portugal é um dos países que mais executou o PRR. Faremos questão de mostrar no final do Governo, apresentando a execução do PRR, o ponto de situação”, prometeu Vieira da Silva. O novo ciclo político pode ter começado em clima paz e amor entre Luís Montenegro e António Costa. Mas o combate político não está suspenso. Pelo contrário.