Nada fazia prever que, enquanto falava como habitual no seu espaço de comentário da SIC Notícias, no final de abril, Mariana Mortágua — que enumerava os motivos pelos quais diz ser alvo de perseguição política — disparasse uma informação que fará de si uma pioneira na política portuguesa: “Sou uma mulher lésbica”, afirmou. A frase foi dita de passagem, as reações resumiram-se praticamente ao silêncio, mas isso não apaga o facto de Mortágua se tornar assim a primeira líder partidária assumidamente homossexual em Portugal.
E isso tem valor político? Curiosamente, as reações dividem-se — e são diferentes dentro e fora do partido. Dentro do Bloco, os militantes e dirigentes contactados pelo Observador tendem a desvalorizar a revelação ou, pelo menos, o seu significado político — e atribuem a afirmação a uma opção pessoal da líder e a uma vontade de falar do assunto nos termos que escolheu e no timing em que o quis fazer, muito mais do que a uma afirmação propositadamente política.
Mas fora do partido, em setores ligados ao ativismo LGBT e contactados pelo Observador, a reação é diferente: o gesto é importante e é político, fosse ou não essa a intenção de Mortágua, acreditam Graça Fonseca, a primeira governante do país a assumir que era homossexual, Ana Aresta, presidente da ILGA, e Isabel Moreira, deputada do PS e ativista. Se a declaração é, nestes setores, saudada, dentro da ala crítica do Bloco já não é bem assim: há quem argumente que Mortágua usou apenas uma estratégia de “vitimização” e que a orientação sexual da nova líder — ou de qualquer pessoa — não “diz respeito” aos outros.
Bloco vê declaração com “naturalidade”, mas há críticas
“Sei que este tipo de pressão e perseguição política vai continuar e até subir de tom. Seja porque sou mulher, seja porque sou de esquerda, seja porque sou uma mulher lésbica, seja porque sou filha de um resistente antifascista, seja porque, aparentemente, tenho o dom de incomodar algumas pessoas com muito poder. Sei que infelizmente e para algumas pessoas vale tudo na política”. Estávamos a 24 de abril e Mortágua fazia a referência à sua orientação sexual pelo meio de um comentário sobre os processos judiciais de que tem sido alvo — um deles, que tinha a ver com os pagamentos pelos comentários televisivos que recebeu enquanto era deputada em exclusividade (montante que devolveu) acabava de ser arquivado.
Depois, nada. Silêncio, dentro e fora do partido. No Bloco, a tese repetida por vários dirigentes e militantes é a mesma: não é um dado relevante; não foi uma grande revelação; é indiferente; Portugal é um país em que felizmente estas coisas já são vistas com “naturalidade”; o eleitorado separa as coisas.
Praticamente a única reação política que se ouviu foi num tweet de André Ventura, que rezava assim: “Mariana Mortágua, eu não quero saber se és lésbica ou trans, ou outra coisa qualquer, mas se recebes dinheiro público indevido ou acumulas salários de forma ilícita enquanto deputada, isso já me preocupa”.
Então, porque é que Mortágua decidiu revelar a informação? “Quis sinalizar que está preparada para esses ataques e que não se deixará intimidar por nenhuma dessas afirmações e pertenças. É uma dirigente que tem a sua história política e familiar e não se deixará intimidar em todas essas condições que assume com orgulho. Vi como uma afirmação de combatividade, orgulho e cabeça levantada”, explica o dirigente José Soeiro, em jeito de desafio: “Habituem-se, não conseguirão condicionar nem intimidá-la”.
A questão do condicionamento é a mais repetida: Mariana Mortágua estava já nessa altura na condição de candidata à liderança do Bloco de Esquerda e, se é verdade que já era uma dirigente com muito peso no Bloco e uma deputada com grande exposição pública, igualmente verdade é que como líder essa exposição cresceria e muito. E sabia que o assunto acabaria por ser trazido a público, tendo preferido controlar o momento e a forma como aconteceu.
Ou seja, de novo: uma opção pessoal, que o Bloco resiste em considerar que possa funcionar como uma bandeira num partido sempre defensor das causas LGBT. Assim “não permite boatos” e mata o assunto, acredita o partido. Mesmo que haja pessoas de esquerda que até valorizam o facto de ter assumido a sua homossexualidade, defende-se nos corredores do partido, isso não funciona contra ou a favor da nova líder e do Bloco — até pessoas homofóbicas poderão votar nela, aventa-se, na convicção de que em Portugal a orientação sexual não é fator que pese na hora de votar.
É verdade que “o Bloco caminha lado a lado com a história das conquistas dos direitos LGBT”, concede o dirigente Fabian Figueiredo, remetendo depois, mais uma vez, para a dimensão pessoal da decisão: “Fez aquela declaração que para ela foi importante, e ainda bem que a faz, abraço essa vontade. Orgulho-me do partido de que faço parte, em que estas declarações são vistas com naturalidade“.
Não é em todo o partido, no entanto: ao Observador, o líder da alternativa interna derrotada, Pedro Soares, mostra-se cético sobre a declaração. “Respeito, mas não me diz respeito”, começa por dizer, elaborando: “Acho que não havia necessidade, ainda para mais dentro do Bloco, em que a questão das opções sexuais nem é uma questão que ninguém levanta. Foi um bocadinho uma ideia de vitimização. Somos todos perseguidos, eu também…”, ironiza, defendendo que ninguém deve ser perseguido ou discriminado — mas se quer tornar pública essa informação é “uma opção individual”.
Graça Fonseca fala em “gesto político”. Casos ainda são raros
Curiosamente, fora do Bloco e em setores associados ao ativismo LGBT a questão parece ter sido vista de outra forma, bem mais política e não numa perspetiva individual.
Em Portugal, não são muitos os políticos que têm assumido a sua homossexualidade. Graça Fonseca, antiga ministra da Cultura de António Costa, foi a primeira governante em funções a fazê-lo, em 2017, e na altura assumiu a dimensão “absolutamente política” da revelação, defendendo que também o fazia por uma questão de representatividade: “Acho que se as pessoas começarem a olhar para políticos, pessoas do cinema, desportistas, sabendo-os homossexuais, como é o meu caso, isso pode fazer que a próxima vez que sai uma notícia sobre pessoas serem mortas por serem homossexuais pensem em alguém por quem até têm simpatia”, disse numa entrevista ao Diário de Notícias.
“Se as pessoas perceberem que há um seu semelhante, que não odeiam, que é homossexual, isso pode fazer que a forma como olham para isso seja por um lado menos não querer saber se essas pessoas são perseguidas, por outro lado até defender que assim não seja. Mas mesmo que seja só deixar de não querer saber já é um ganho.” Na mesma entrevista, frisava a diferença entre privacidade e a identidade: a primeira é “fundamental”, a segunda é só dizer quem se é — como ser “morena de olhos verdes”, ou lésbica, no caso.
“Mas, mais do que gostar que houvesse outras pessoas a fazer o mesmo, acho que seria importante”, rematava a governante na altura. Agora, contactada pelo Observador, mostrou-se satisfeita com a afirmação de Mortágua: “É importante existirem líderes políticos, à esquerda e à direita, que assumem a sua orientação sexual, pois com esse gesto, que é político, contribuem para quebrar preconceitos”.
“É a afirmação, pelo exemplo, de um princípio fundamental em democracia, mas que tantos ainda insistem em ignorar – que nas nossas diferenças, todos somos iguais em direitos, liberdades e garantias”, diz a antiga ministra. Ao caso de Fonseca seguiu-se o exemplo do colega de Executivo André Moz Caldas, que assumiu ser “o primeiro membro do Governo casado com uma pessoa do mesmo sexo”. Contactado pelo Observador, não conseguiu responder em tempo útil mas remeteu para a entrevista à revista da Universidade de Lisboa em que falou sobre o assunto, e em que defendia que a solução para combater a homofobia também passa por “as pessoas públicas viverem a sua homossexualidade com naturalidade“.
“Não faço disso especial alarde público, mas também não sinto que seja apenas um aspeto da minha vida pessoal“, dizia então. “E espero que isso possa significar, para os jovens portugueses, que não estão condenados a um ostracismo. Se houver um jovem que, pelo meu exemplo, se possa sentir mais livre para viver a sua orientação sexual abertamente, eu ficaria muito feliz”. Até porque se dizia consciente de que, se não se sente “vitimizado” por isso, também se deve ao seu contexto — ter nascido em Lisboa e num ambiente familiar e social “progressista”. “Não nos podemos permitir vitimizar-nos, e devemos desarmar os nossos adversários vivendo abertamente a sexualidade”.
A seguir, caso raro para um partido conservador, foi a vez do antigo dirigente do CDS e governante Adolfo Mesquita Nunes — fê-lo numa entrevista de vida concedida ao Expresso, à boleia de um comentário sobre cartazes na Covilhã, onde era autarca, em que tinham escrito a palavra “gay” por cima da sua fotografia, explicando que não mandara retirá-los porque não era mentira. “Para hoje alguém estar confortável com a sua orientação sexual houve muita gente com uma coragem infinitamente superior”, acrescentava então.
E, depois, a vez de Paulo Rangel, outro dos raros políticos da direita a fazê-lo — num contexto de campanha interna no PSD, onde lutava para derrubar Rui Rio, revelou na SIC que é homossexual: “Não é nenhum problema. Foi uma coisa que nunca escondi, não é nenhum segredo”, disse, embora admitindo que se a sua mãe não tivesse já falecido não teria falado publicamente do assunto. No PSD, houve sempre a convicção de que a revelação poderia ter contribuído, nalguns setores, para a derrota de Rangel nas eleições internas — um cenário que ninguém coloca que pudesse acontecer no Bloco.
“Alguém no país saberá que não está sozinho”
“É importante que todas as estruturas, sejam de esquerda ou de direita, promovam espaços de diálogo e visibilidade. É preciso apelar a que olhem para dentro e se transformem em estruturas inclusivas”, comenta ao Observador Ana Aresta, presidente da ILGA Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual, Trans e Intersexo. E considera muito positivo haver — e neste ponto é relevante que o coming out aconteça no Bloco de Esquerda — uma líder que “é também uma mulher lésbica e que alerta para os contextos discriminatórios”.
Mas não é só no Bloco que isto deve acontecer: “O que é importante é que as pessoas homossexuais também são seres políticos e têm opiniões e visões diferentes sobre o espetro político”.
“Enquanto houver direitos humanos a conquistar, a identidade será sempre uma questão política. É bom que olhemos para esse assunto como tal”, defende Aresta. “Às vezes pode parecer que já não é relevante haver figuras públicas que façam os seus coming outs, mas algures alguém no país saberá que não está sozinho e perceberá que pode chegar a lugares de poder e visibilidade”.
No PS, Isabel Moreira, que saudou imediatamente a revelação de Mariana Mortágua, concorda com Aresta, sublinhando sobretudo a importância da questão da representatividade. “É importante que as pessoas que pertençam a grupos minoritários — sejam pessoas LGBT, racializadas, mulheres — se vejam representados em cargos de poder e de liderança. Essa visibilidade e normalização é empoderadora“.
Não é que seja “critério” para se votar em alguém, frisa Moreira; mas é importante para ajuda qualquer jovem que “esteja com medo ou sinta preconceito” e que veja na televisão alguém na política ativa. “E pensa: calma, afinal não há nada de errado comigo, posso ter uma vida como os outros e até liderar um partido e candidatar-me a Presidente da República”.
Quando as pessoas não se veem representadas em séries, filmes ou até na política, frisa a deputada socialista, “pensam que não há lugar para elas”. Nessa lógica, a afirmação de Mortágua seria mais um passo para lhes garantir esse lugar.