Num percurso profissional marcado por várias fases, houve sempre uma constante: “Tinha a certeza que, independentemente do que fosse fazer, era a área materno-infantil que tinha gosto de trabalhar”, explica ao Observador a enfermeira Carmen Ferreira, de 36 anos. Foi por isso que escolheu seguir enfermagem, consciente da importância do trabalho dos enfermeiros no acompanhamento da mulher, tanto no parto como no pós-parto. Entrou à primeira na primeira opção para a faculdade e foi fazendo o seu percurso, sempre direcionado na saúde materna.
Quando terminou a faculdade teve “a sorte de ser logo chamada para o Hospital de Santa Maria”, para a área da saúde da mulher. Foi mudando de serviços e acumulando mais experiências, trabalhou em paralelo em clínicas e hospitais privados. Lançou o blogue “Amamentar com Amor” — que evoluiu mais tarde para “Bebé Saudável” — por sentir, à época, que faltava em Portugal informação digital útil sobre a gravidez, o parto, o pós-parto e os bebés.
Hoje, tem mais de 148 mil seguidores no Instagram, onde publica regularmente conselhos e dicas sobre a parentalidade. “Isto era um passatempo que foi crescendo. Durante a pandemia, foquei-me mais no projeto digital, sem nunca deixar de exercer.” Foi também nessa fase que acabou por lançar o livro “Estamos Grávidos! E agora?”, que descreve como um “sucesso gigantesco”, bestseller da Manuscrito que já vai na 14.ª edição. Seguiram-se “Nascemos! E agora?”, em 2021, e a agenda planner “Vamos ser pais! E agora?”, em 2022.
Há cerca de um mês, inaugurou a clínica MaterCare com uma visão integrativa, onde juntou com a sócia (a enfermeira Tatiana) uma equipa multidisciplinar preparada para acompanhar casais e bebés, incluindo obstetra, pediatra, enfermeira, osteopata e fisioterapeuta. “Posso ter um resultado muito maior se tiver uma equipa a olhar para aquela família e não só o meu olhar em concreto”, conta.
Quais são os mitos mais comuns que lhe surgem?
Na gravidez, há muitos mitos relacionados com o bem-estar da grávida, como, por exemplo, pensarem que têm de parar de treinar ou que não podem ter relações sexuais. Já no pós-parto, por exemplo, há zonas de Portugal onde é costume vestir os bebés de amarelo para dar sorte. Isto, na verdade, não tem nada de mau, mas não é obrigatório que os pais tenham de ser limitados por uma questão como esta.
De que formas é que a “avalanche” de informação disponível nas redes sociais gera mais confusão do que ajuda?
Tanta informação parece tornar as pessoas menos informadas. Por vezes, alguém pode estar apenas a dar uma opinião na internet, mas quem lê pode considerar aquilo como lei. Os casais devem saber onde procurar as informações, como, por exemplo, seguindo as orientações da Organização Mundial da Saúde ou da Direção-Geral da Saúde, e adaptar estas orientações a cada situação. O próprio casal tem de estar informado e decidir o que faz sentido para si.
Como vê os fundamentalismos em torno da maternidade?
Nós sabemos que, por exemplo, a amamentação e o parto vaginal têm vantagens mas, por diferentes razões, podem não ser o “plano A” de muitas famílias e, portanto, é preciso perceber e respeitar diferentes opções e oferecer alternativas que tranquilizem nas tomadas de decisão. A informação é sempre benéfica, mas as pessoas têm de fazer a triagem de onde vem e discutir o tema com a equipa de saúde, ter bom senso e equilíbrio. Na maternidade — como na vida em geral — nem tudo é preto no branco, há muitos cinzentos. Os fundamentalismos não levam a lado nenhum. O que defendo, como profissional de saúde, é que as pessoas têm de tomar decisões baseadas em informação e não em medo, porque se eu tomo uma decisão baseada em medo, muito provavelmente não vai ser a decisão acertada para mim. Este é o grande desafio que os casais enfrentam hoje, porque gera muito stress e ansiedade. Qualquer informação mais extremista ou qualquer partilha mais violenta, até do ponto de vista da comunicação, pode ter um impacto grande na experiência da mulher.
Como vê os grupos de mães no WhatsApp?
Considero que, em geral, são uma grande ajuda, porque cada vez estamos mais isoladas nas fases de gravidez e pós-parto. Quem não tem família por perto, ou uma comunidade forte, pode sentir-se especialmente isolada durante esses períodos. Nos grupos de WhatsApp temos um espaço para desabafar coisas sobre as quais, se calhar, não podemos falar com as nossas amigas, porque elas não estão na mesma fase de vida. Agora, temos de ter alguma atenção a isto: o que se faz, ou o que se diz que se faz, é a realidade de cada um, é adaptado à família de cada um e, muitas vezes, não é 100% real, porque é apenas uma parte. Tal como quando se mostra nas redes sociais algumas coisas, aquilo é apenas a ponta do iceberg, não é o iceberg inteiro. Portanto, a partilha pode gerar falsas perspetivas da maternidade. Alguém dizer que toma todos os dias o pequeno-almoço em família, por exemplo, pode levar a que outra pessoa se sinta mal por não fazer o mesmo, mas se calhar as coisas, na prática, não são bem assim.
Há mães que se queixam precisamente de se sentirem mais ansiosas por se confrontarem com hábitos que não aplicam nas suas vidas familiares.
Cabe-nos a nós, um bocadinho a todos, perceber que as pessoas vão provavelmente partilhar mais coisas boas do que más, porque é o que normalmente se faz nas redes sociais. Não quer dizer que não seja real, até pode ser, mas não é sempre assim, 24 horas por dia. Quem partilha deve ter essa sensibilidade, de explicar que nem sempre é assim. A experiência que se tem com um bebé não é igual para todos. Muitas vezes, isto da maternidade é um bocadinho um faroeste, porque algumas pessoas acham que o que fazem com o filho é a lei, e é assim que tem de ser para todos. Chegam a dar orientações a outras mães, nos grupos e nas redes sociais, como se fosse aquilo o certo e mais nada fosse aceitável.
O que acontece quando as mães tentam diagnosticar os bebés dos outros?
Os grupos têm o lado bom de unir as mulheres, promovendo a partilha, mas depois têm esse efeito. Há mães que dão respostas prontas sem avaliar os bebés. É que, quando não se é profissional de saúde e não se está habituado a fazer diagnósticos, há uma tendência de dizer: “Ah, deve ser isto”. Mas há toda uma análise que tem que ser feita do bebé e da situação que não pode fazer-se por WhatsApp. É preciso ver, é preciso tocar, é preciso ter um histórico. O que vejo nestes grupos é muito isso, algumas mães têm um problema e outras mães fazem os diagnósticos e dão os tratamentos. É preciso ter algum cuidado, porque até para nós, profissionais de saúde, é difícil fazer estes diagnósticos assim, quanto mais para alguém que tem apenas como experiência os seus próprios filhos.
Os bebés acabam por ser postos em posições vulneráveis?
Nesses grupos, há partilhas de fotos da cara e de partes genitais do bebé, e preocupo-me cada vez mais, tendo em conta o mundo em que vivemos, onde essas imagens vão parar. Penso que as participações deviam ser moderadas por profissionais de saúde. Tenho um grupo desses associado à “Revista do Bebé” e sou eu que o modero. Temos algum cuidado com estas questões e há sempre a ressalva de que ali não se fazem diagnósticos, porque é impossível fazê-lo por mensagem. É um suporte de partilha. Acima de tudo, as mães têm de se proteger a si e ao seu bebé, não se expondo dessa forma. E as equipas de saúde têm de estar disponíveis para ajudar também no digital, dando suporte a estas mães. Estamos a viver uma mudança de paradigma que tem de ser abordada com cuidado, porque há situações que podem tornar-se graves nesta questão das orientações entre mães, que podem por em causa a saúde do bebé, mas que depois não são puníveis. Não há responsabilidade imputada a estes grupos.
Há também mais guerras entre mães em torno das escolhas de cada uma?
Quando se fala de bebés, não há propriamente regras, há bases orientadoras, e não é porque uma mãe fez cesariana, ou por escolher não amamentar, que vai deixar de sentir os benefícios de estar com o seu bebé. Nós sabemos que todas as escolhas têm consequências, mas todas as escolhas também devem ser acolhidas e orientadas, e não censuradas. A bandeira da parentalidade gera muitas guerras. A maternidade devia, na verdade, unir mais do que desunir. Falamos muito da escolha informada, dos direitos do corpo, mas depois, quando se exerce esse direito, parece que todas as mães criticam ou têm algo negativo a dizer sobre a tomada de decisão daquela mulher. A parentalidade deve unir-nos em prol do que realmente interessa, que são a saúde, o bem-estar e o cuidado integral dos bebés e das mães.
Concorda que está a acontecer uma espécie de boom em torno das questões da parentalidade?
Nos últimos anos, as novas gerações estão, de facto, mais preocupadas com a vivência da maternidade e com o legado que querem deixar aos filhos. Nota-se cada vez mais esta preocupação e este empenho dos pais em fazerem as coisas de forma diferente, mais pensada, mais refletida. Penso que seja fruto dos tempos que vivemos, em que temos menos filhos do que antigamente e, portanto, podemos dedicar-lhes mais tempo, mais recursos, mais conhecimento. E isso é bom, claro. Também somos pais tendencialmente mais tarde, o que nos faz ter outra consciência, mas também traz outros desafios.
Que desafios são esses?
Do ponto de vista da saúde, temos um desafio grande, não é? É o nosso relógio biológico. Ele não é impeditivo, mas naturalmente temos uma questão biológica, quer queiramos, quer não, que existe, e quanto mais tempo passa, mais esta questão vem para cima da mesa, mais pressão cria nos casais. Temos casais que, do ponto de vista profissional e da sua vida conjugal, só conseguem ser pais mais tarde, e não no timing do relógio biológico. Estes pais podem ter um maior risco associado à gravidez, por vários motivos. Pode aumentar o risco de diabetes e de algumas alterações cromossómicas. O tempo vai progressivamente tendo um impacto na qualidade das nossas células. Por outro lado, os casais que têm os seus filhos mais tarde podem, até, estar mais maduros e tomar decisões de vida que os suportem melhor na parentalidade, coisa que, se fosse mais cedo, poderiam não ter abertura ou facilidade do ponto de vista laboral para fazer.
Devia começar a pensar-se na parentalidade mais cedo?
Precisamos, de facto, de olhar para a nossa fertilidade um bocadinho mais cedo. Mesmo que não queiramos ser pais nos próximos anos, é preciso irmos construindo, do ponto de vista físico, os alicerces importantes para uma gravidez no futuro. E, muitas vezes, a grande maioria das pessoas que são pais mais tarde já têm estes desafios físicos, a que acrescem estilos de vida pouco adequados, o que dificulta todo o processo. Por isso, mesmo que não queiram ser pais agora, é sempre bom os casais irem refletindo sobre os seus estilos de vida e serem acompanhados nesse sentido também pela equipa de saúde.
Já surgiram questões de pais preocupados sobre como lidar com a identidade de género dos filhos?
Sim, creio que já se vem preparando mais essas questões e noto diferença. Cada vez há mais casais que não querem saber o sexo do bebé, coisa que, há uns anos, não acontecia nunca, era das primeiras coisas que os pais queriam saber. Isto é algo relativamente recente e acho que pode ser uma opção interessante para alguns casais. Nós, profissionais de saúde, só temos de apoiar a decisão dos pais, nomeadamente nestas questões. Mas não tenho ainda muita informação concreta relativamente a isso, até porque é algo recente. Talvez na próxima geração venhamos a lidar com mais questões ligadas a esse tópico.
Tem sensibilidades específicas para lidar com pais quando o casal, por exemplo, é composto por duas pessoas do mesmo género?
Sim. É algo cada vez mais frequente e ainda bem, porque quer dizer que estamos com recursos para dar suporte a estes casais. É mais frequente receber duas mães, mas também já tivemos dois pais em acompanhamento. Digo mais frequente [entre mães] porque, do ponto de vista legal em Portugal, [o processo] é mais fácil de ser agilizado do que quando são dois homens, até porque, no segundo caso, pode implicar que estes casais recorram a serviços fora do nosso país. Na verdade, é tudo muito semelhante. Não temos grandes diferenças nos cuidados ao bebé, não é algo que vá comprometer muito ou necessitar de uma alteração grande nos ensinos que fazemos às famílias. Eventualmente, pode ter de se validar, no caso de serem duas mães, se querem as duas amamentar ou só uma. Vamos ter de aferir e fazer um plano de amamentação. Mas, tirando essas questões mais específicas, não temos diferença, porque os cuidados são transversais aos casais.
Pegando na amamentação, fale-me sobre a questão das dores, que aflige muitas mães.
Estamos muito programados para a ideia de que o parto dói e a amamentação dói, de que temos de aguentar mas, na verdade, não temos. Na amamentação então, quando há dor, é mesmo necessário avaliarmos o que se está a passar, porque pode ser um sinal do corpo de que as coisas não estão a funcionar bem entre a boca do bebé e a maminha da mãe. Temos de perceber o que é, o que se está a passar e dar recursos a esta mulher. Na grande maioria dos serviços, não existem recursos para ajudar estas mulheres, então a resposta que se dá é que têm de aguentar. E não, não têm de aguentar. Podemos investigar e tratar a causa, há vários produtos, materiais e dispositivos que podem ajudar.
É um mito que as mulheres têm de sofrer?
É um grande mito que existe, que a mulher tem de ter dor e sofrer uma penitência, quase. Há várias causas para as dores, mas podemos encontrá-las e ajudar os pais. As dores existem, sim, mas devemos procurar ajuda, não precisamos de desistir e deitar a toalha ao chão, ou assumir que não vai correr bem, que temos um problema e que nunca vamos conseguir amamentar.
E como se desconstrói a culpa, a pressão e o julgamento quando uma mãe não consegue amamentar?
É muito difícil. Há que perceber, do ponto de vista emocional, as motivações, expectativas e objetivo da mãe no plano de amamentação. Se aquela mulher acha que atingiu o seu limite e não pretende continuar a amamentar, temos de dar-lhe os recursos e as informações necessárias para decidir o seu caminho. E também de tirar-lhe essa culpa, porque existem várias formas de alimentar o bebé. Claro que não posso dizer, enquanto profissional de saúde, que o leite materno não é a melhor opção, estaria a mentir, mas temos outras formas de alimentação do bebé com as quais a mãe pode sentir-se bem. Às vezes há quem diga a brincar que “nasce uma mãe, nasce uma culpa”. É quase inevitável as mães sentirem culpa, mas é importante tranquilizar aquelas mulheres de que está tudo bem em seguirem outro caminho, desde que sejam devidamente apoiadas. Conheço mulheres que desistiram da amamentação porque não tiveram apoio. É difícil lidar com esse luto e com essas emoções.
Que importância têm as rotinas, tanto para a mãe como para o bebé?
As rotinas são muito orientadoras para os bebés porque dão-lhes noção de previsibilidade, e isso acalma-os e ajuda-os a adaptarem-se a esta vida cá fora. Para os pais, são um fio condutor para não se sentirem totalmente à deriva. E, portanto, ter aqui uma sequência de acontecimentos pode ser importante.
Há um patamar a partir do qual a obsessão com a rotina pode ser negativa?
Uma rotina altamente rígida, fixa, com imensas atividades, pode aumentar mais o stress dos pais do que propriamente beneficiá-los. E pode não ter um grande efeito benéfico no bebé. Uma sequência de acontecimentos ao longo dos dias, que vai mudando e evoluindo conforme o bebé vai crescendo, pode ser o melhor caminho. A rotina é negativa quando há demasiado controlo e obsessão, não abrindo exceções.
Como se lida com as poucas horas de sono?
Bom, esse tema surge logo na gravidez. Os pais engravidam e já estão a dizer que nunca mais vão dormir na vida. E, na verdade, não tem de ser necessariamente assim. Temos de entender que o sono do bebé vai sendo construído e vai evoluindo ao longo do tempo. É expectável que, no primeiro mês de vida, o bebé ainda esteja a ajustar o seu ritmo cá fora, porque ainda vem com o ritmo fetal. Portanto, durante o primeiro mês de vida, pode haver mais mamadas noturnas e noites mais exigentes. É por isso que a rede de apoio é importante, para dar suporte a estes pais para que, durante o dia, tenham alguns períodos de descanso, não fiquem sobrecarregados e consigam aguentar esse ritmo do primeiro mês. A parte hormonal no pós-parto também pesa nisso e o nosso corpo está programado para nos ajudar a lidar com a privação de sono.
E depois do primeiro mês, o que se pode esperar?
Daí para a frente, o sono vai evoluindo, o próprio bebé vai espaçando progressivamente as mamadas noturnas e, a partir do terceiro mês, mais coisa menos coisa, já temos umas noites tendencialmente mais tranquilas. Mas há sempre desafios. Ou são os dentes a nascer, ou o bebé vai para a creche, ou fica doente com ranho. Vai haver sempre desafios nos primeiros tempos de vida, mas não é suposto ser um pânico. Quando os pais reportam que têm muitas dificuldades no sono, é importante avaliarmos como está a respiração do bebé, se a língua está bem, fazer uma avaliação multidisciplinar para perceber se há uma causa física ou se é, de facto, a rotina que não está ajustada ao bebé. Agora, há que tirar um bocadinho este medo de cima dos pais, porque às vezes dizem-me que até têm medo de dizer que está a correr bem, mas não tem de correr mal.
Há coisas que os pais compram que são completamente desnecessárias?
Muitas. Não recomendo nada além do básico e tudo o que for preciso ser adquirido, deve ser feito progressivamente. A premissa é mesmo “menos é mais”. Hoje em dia, somos todos muito pressionados pelo marketing, mas um bebé não precisa de tantas coisas quanto isso. Em geral, os pais compram sempre coisas a mais.
Dê-me um exemplo.
Comprar uma bomba da extração de leite na gravidez. Na minha opinião, não faz sentido comprar nessa fase. Se é uma gravidez de baixo risco, se não vai ter gémeos, à partida pode esperar um bocadinho, até porque as maternidades, por exemplo, têm bombas à disposição dos pais. São daquelas coisas que mais vale esperar para ver.
Agora em relação à fertilidade. É verdade que tomar a pílula muitos anos dificulta o processo de engravidar?
A pílula inibe a ovulação, adormece a parte hormonal do ciclo. Para uma mulher que quer engravidar, pode ser mais difícil estar atenta ao corpo, porque se calhar não conhece os sinais de que o corpo está fértil. E o cérebro pode demorar algum tempo até se coordenar com os ovários porque, se aquela comunicação entre cérebro, ovários e útero esteve adormecida algum tempo, é preciso também algum tempo para voltar a funcionar. Não quer dizer que seja mais difícil engravidar para mulheres que tiveram o uso prolongado da pílula, mas temos aqui estes dois fatores. Por um lado, são mulheres que não estão habituadas a ver os seus sinais de fertilidade e que não sabem o período ideal para ter a relação. Por outro lado, pode haver uma falta de comunicação entre o cérebro e o aparelho reprodutor devido a este tempo prolongado de uso de pílula. Mas não é impeditivo da mulher engravidar, pode é demorar o seu tempo.
E há sangues que são realmente incompatíveis entre pais e mães?
Não. Há uma questão do grupo sanguíneo da mulher que é muito importante, que tem que ver com o fator Rh negativo. Se o companheiro for Rh positivo, as mulheres com o fator Rh negativo precisam de fazer uma injeção durante a gravidez, que se chama imunoglobulina anti-D, para que não desenvolvam anticorpos e, numa próxima gravidez, não tenham perdas gestacionais, porque o corpo desenvolve anticorpos para combater essa incompatibilidade. Mas não é incompatível de todo, desde que possamos identificá-lo atempadamente para administrarmos esta injeção. Se isto for feito, não há qualquer problema e a incompatibilidade resolve-se. Mulheres que tenham um fator Rh negativo têm de estar mais atentas ao grupo sanguíneo do parceiro, para perceberem se é positivo, ou se é também negativo, que seria o ideal. No segundo caso, não precisam de fazer nada, porque não vão ter incompatibilidade. Só têm incompatibilidade se a mãe for negativa e o pai positivo. Se os dois forem negativos, está tudo bem.
Em relação à incidência de perdas gestacionais, há muitas mulheres que vivem estas experiências sozinhas, sem saberem que é comum, porque ainda parece ser tema tabu. A Carmen é procurada para falar sobre estes temas?
Cada vez mais. Cada vez somos pais mais tarde, cada vez mais os nossos estilos de vida não são adequados, por stress, pelos padrões de sono, pela alimentação, pelo sedentarismo. Isso, naturalmente, tem um impacto na fertilidade e, consequentemente, na progressão, sucesso e evolução da gravidez. Há muitos fatores associados a estas perdas que já conhecemos e outros que ainda estão por descobrir. Mas sabemos que é uma realidade comum. Há muitas gravidezes que não são evolutivas, independentemente de ser primeiro ou segundo filho, e muitas vezes isto está relacionado com multifatores, não é só um. É algo para que ninguém nos prepara e de que se fala pouco. É um tabu, parece que há uma perda na família e ninguém fala sobre isso. Mas depois vamos a ver e, quando contamos a alguém, afinal já toda a gente passou por isso.
Como é que se lida com isto, emocionalmente?
É preciso falar. Ainda que seja um tema pesado, é importante ser falado entre os casais e entre as mulheres, até para ajustarmos as nossas expectativas, porque cada vez mais recorremos a tratamentos de fertilidade, e, muitas vezes, estes tratamentos podem não gerar um bebé logo. Trabalhar as expetativas é muito importante para que os casais tenham algum suporte emocional. Mas a verdade é que ainda se dá pouca atenção a este tema, infelizmente.
Como é que o fator stress influencia toda a experiência?
Na verdade implica tudo, porque o corpo em stress liberta mais hormonas e substâncias que não são benéficas para a evolução da gravidez, no parto e até na amamentação. O stress pode ser benéfico em algumas questões do dia-a-dia. Se não tivéssemos “stress bom”, não reagíamos, não nos levantávamos de manhã. Mas um stress crónico, constante e em altos níveis, tem um impacto até no funcionamento cerebral e em todas as substâncias que produzimos. Isso vai afetar o metabolismo, o sono, e tudo isso tem um impacto, na fertilidade. Um corpo que está em stress é um corpo que está em alerta e que não vai despender energia para a reprodução. Depois, durante a gravidez, também já sabemos que o stress pode ter um impacto no crescimento do feto, aumentar a restrição de crescimento. No pós-parto também tem um impacto na questão da produção de leite, por exemplo. Muitas vezes, as mães com mais stress podem ter maior dificuldade na produção de oxitocina, e isso leva a que tenham mais dificuldade não na produção do leite, mas que o leite saia. Portanto, nós, que hoje em dia estamos altamente stressados e levamos vidas cheia de estímulos, temos mesmo de aprender a gerir o stress, porque tem um impacto físico e emocional no nosso corpo.
Já assistiu a situações de violência obstétrica?
Já assisti a situações que, na altura, não me apercebi que se tratavam de violência obstétrica. Hoje, há um alerta maior para isto. Como profissionais de saúde, isso faz-nos refletir sobre as nossas práticas. Hoje, se assistisse a determinadas práticas, não iria permitir que acontecessem. A consciência vai aumentando e nós estamos sempre numa curva de crescimento pessoal, profissional e de conhecimento. A melhor forma que temos de combater a violência obstétrica é dando informação aos casais porque, quanto mais exigentes e informados forem, mais temos de estar preparados nós, profissionais de saúde, para dar resposta às demandas dos nossos utentes. O principal motor vem daí. Já estamos a mudar o nosso paradigma, de ser centrado no profissional de saúde para passar a ser centrado na experiência do casal e no bem-estar do bebé.
Como se sinaliza a violência obstétrica?
Temos de perceber que a violência obstétrica pode não ser só algo físico, mas também violência verbal. É completamente inadmissível, nos tempos de hoje, enquanto profissionais de saúde, não termos uma relação terapêutica e de empatia com os pacientes. Uma coisa que costumo dizer às minhas grávidas é que, se realmente aquele profissional não se adequa à nossa forma de estar, nem respeita as nossas tomadas de decisão, podemos trocar de profissional. Claro que quem está num registo de vigilância pública também tem esse direito, pode é ter menos opções de escolha, infelizmente, devido a todas as questões por que sabemos que o SNS está a passar, mas também tem o poder de escolher se quer continuar com aquele profissional ou não. E isso é muito importante, porque muitas vezes a população feminina acha que é feio estar a trocar, que se calhar o profissional vai ficar triste ou incomodado. Não, é um direito daquela família e daquele casal. Está tudo bem se quiserem trocar, se acharem que não foram ouvidas, que não foram respeitadas, porque é importante que se sintam bem nesse momento, em que estão altamente expostas durante todo o processo de gravidez, no parto e pós-parto, e, portanto, têm de estar num sítio seguro e protegido e não em guerra. Mais uma vez, o parto e toda a gravidez não se coadunam com as hormonas de stress. Não temos de estar em guerra uns com os outros, trabalhamos os dois, profissionais e família, uns a favor dos outros. É esta mensagem que quero passar às pessoas.
Também é procurada por homens que querem saber de que formas é que podem acompanhar melhor o processo da mulher?
Sim, cada vez mais. Cada vez mais temos pais muito interessados no processo e muito participativos no pós-parto. Nota-se uma diferença bastante grande de há uns anos para cá, os pais têm feito este esforço de se envolverem e de estarem mais presentes. É muito importante que tenham uma participação cada vez mais ativa, porque isto é algo partilhado entre dois e não só o processo de uma pessoa. É uma tendência, felizmente.
Qual é o papel do pai nos primeiros 12 meses do bebé?
Ui, muita coisa. Além de segurança e apoio à mãe, há uma participação nas tarefas, no envolvimento e na vinculação do bebé. Nos primeiros tempos de vida, sabemos que o bebé está muito dependente da biologia da mãe. Se esta mulher estiver tranquila e segura, se não estiver sobrecarregada de tarefas, se houver uma partilha de tarefas, mas também de emoções e de peso da maternidade entre o casal, sem dúvida nenhuma que terá um pós-parto muito mais leve e saudável, quer do ponto de vista mental, quer do ponto de vista físico. Depois, claro, os pais devem dar suporte à mulher em todas as outras tarefas também, porque assistimos cada vez mais a mulheres altamente sobrecarregadas no pós-parto e isso é uma realidade muito comum que temos de começar a aliviar, porque estas mulheres acabam por não estar disponíveis para passar tempo com os seus bebés.
Que impacto tem esta sobrecarga sobre mulheres?
Tem todo um impacto nas questões pós-parto, nas vivências da maternidade, até mesmo na taxa do divórcio. Temos todos, enquanto sociedade, de repensar como se vive o pós-parto, as licenças de maternidade, os apoios de creches. Não temos uma sociedade preparada para receber bebés. Temos uma sociedade envelhecida e vamos precisar muito destes bebés para o nosso futuro. E, portanto, precisamos de famílias felizes do ponto de vista emocional, com saúde mental, com saúde física. É uma questão de saúde pública que devia interessar muito mais do que realmente interessa. Uma mãe sobrecarregada vai faltar muito mais vezes ao trabalho do que uma mãe com apoio. É preciso pensar nisto, porque tem um impacto sobre a nossa sociedade e implicações em todos nós.