Os caminhos serpenteiam a serra e, à esquerda ou à direita, o cenário é verde. Um parque eólico, ao longe, impõe-se sobre as montanhas. As letras na placa onde se lê “Campo Benfeito” são tão grandes quanto as que dizem “Teatro” e ambas apontam na mesma direção.
É em plena Serra do Montemuro, a mais de mil metros de altitude, que fica a pequena aldeia de Campo Benfeito, no concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Foi lá que, há mais de 30 anos, a serra deu nome a uma companhia de teatro, que se tornou profissional e constitui ainda hoje uma referência na criação, difusão e programação artística fora das grandes metrópoles. O Teatro Regional da Serra do Montemuro emprega oito pessoas e organiza anualmente o Altitudes, um festival de teatro que atrai à aldeia centenas de visitantes. Campo Benfeito, onde vivem cerca de 40 pessoas, chega a ter quase 300 por estes dias.
Nas curvas das ruas da aldeia, nas esquinas das casas de granito, os habitantes e residentes temporários cruzam-se e cumprimentam-se. Para muitos, a procissão até ao teatro, um grande pavilhão verde como a montanha instalado no topo da aldeia, é uma tradição. É o caso de um grupo de jovens de 20 e poucos anos que ali passa todo o mês de agosto.
“Apesar de não ter nascido cá, isto para mim é a minha casa”, diz Sara Silva, 22 anos, cuja avó nasceu e cresceu em Campo Benfeito, antes de partir para Lisboa em busca de emprego. Durante a escola secundária, Sara trouxe os amigos à aldeia serrana para celebrar o aniversário e, nos últimos cinco anos, foi ali que passaram todos os verões. “Até já temos a aldeia tatuada”, comenta, exibindo o tornozelo desenhado com as montanhas que se identificam na paisagem. “É um sítio muito especial para todos nós. Como antes não havia aqui rede (hoje há, mas de apenas uma operadora) criávamos conexões e amizades muito mais fortes. Não havia distrações por isso convivíamos muito mais uns com os outros, não havia aquela necessidade de estar sempre a olhar para o telemóvel ou responder uma mensagem porque não havia rede. Sinto que, apesar de sermos de diferentes sítios de Portugal, estes são os meus amigos. Tenho amigos em Lisboa, mas estes são os meus amigos.”
Estão à espera do quarto elemento minutos antes de se abrirem as portas para Antiquário, uma criação da companhia Cem Palcos e do Teatro do Montemuro, que inaugura o Festival Altitudes, que decorre de 10 a 17 de agosto. “São as pessoas da aldeia que o fazem, por isso este é obrigatório. Os outros depende da peça, se gostamos ou não”, explica Guilherme Rodrigues, 22, do mesmo grupo. “Gostamos de ver a companhia da nossa terra também para ajudar, para que isto continue e que não deixe de ser uma tradição”, interpela Sara. “Isto dinamiza muito a aldeia, traz muita gente diferente e abre muito a cabeça também às pessoas de cá”.
São novos e velhos, casais e famílias os que sobem a serra até ao Teatro que durante oito dias recebe criações como Salgueiro Maia: Cartografia de um Monólogo, do Teatro do Noroeste, Júlio César, da Companhia do Chapitô, Juiz da Beira, do Teatro das Beiras, ou Granito, da Palmilha Dentada. Também há concertos, ateliers, um filme e uma conferência. Como sempre, o início do Altitudes faz-se com uma produção da companhia anfitriã, o Teatro do Montemuro. Desta vez, o grupo apresentou um espetáculo sobre dois sócios de uma loja de antiguidades que veem o negócio de uma vida a afundar. Com texto de Sandro William Junqueira, a encenação é de Graeme Pulleyn e Paulo Duarte.
A sala, como sempre, está a rebentar pelas costuras. Tal como quase todos os espetáculos do festival, também este está esgotado há vários dias, mesmo com o aluguer de uma bancada maior durante o evento, para acomodar 174 pessoas (a bancada do teatro tem habitualmente 56 lugares). “E mesmo assim não chega”, diz Joana Miranda, responsável pela comunicação da companhia. “Tomara que tivéssemos mais espaço”. Mas é o limite máximo de segurança imposto pela IGAC — Inspeção Geral de Atividades Culturais, tendo em conta as dimensões do pavilhão.
“A mobilização das pessoas ao teatro aqui não é nada difícil”, assume Eduardo Correia, diretor artístico e fundador do Teatro do Montemuro. “O que é muito curioso é que já tivemos espetáculos de música — do Sérgio Godinho, do Jorge Palma, do Camané — que esgotaram só depois de alguns espetáculos de teatro”, nota.
É um fenómeno, para muitos, difícil de compreender: a existência de uma companhia de teatro numa povoação onde não há um café, um restaurante ou sequer uma pequena mercearia. Atualmente, o Teatro do Montemuro dá emprego a uma equipa permanente de oito pessoas: Eduardo Correia, ator e diretor artístico, Paulo Duarte, ator e diretor financeiro, Sofia Macedo, produtora, Abel Duarte, ator e diretor de cena, Carlos Cal, responsável pelos cenários e pelo bar (que abre umas horas antes dos espetáculos), Conceição Almeida, que gere os espaços, Joana Miranda, responsável pela comunicação, e José José, assistente técnico, e mais recente adição.
A companhia é apoiada pela Direção Geral das Artes (DGARtes) e pela Câmara Municipal de Castro Daire, definindo-se como uma companhia de itinerância. Quer isto dizer que, apesar de apresentar pelo menos um espetáculo por mês naquele espaço, dedica-se a mostrá-los pelo país, levando também peças infantis a escolas dos municípios com os quais tem protocolo: Castro Daire, Resende, Cinfães e Arouca.
Não há tempo para o teatro? “Se calhar aqui criam esse tempo”
“Noutro dia chegou um grupo de pessoas à minha rua e perguntou-me assim: olhe, onde é que é o café? E eu disse: é aqui. E meti seis ou sete pessoas na minha casa”. O anfitrião ocasional é Germano Duarte, natural de Campo Benfeito e que retornou à aldeia depois de uma vida como oficial na Marinha. Os 85 anos dão-lhe memórias de uma terra “isolada em plena serra”, “mas sempre muito laboriosa”. Vive a uma centena de metros do teatro e é um espectador assíduo. “Sempre que há teatro estou aqui!”, diz à saída de uma apresentação. É sócio da associação do Teatro Montemuro e paga uma cota anual de 10 euros, o que lhe permite acesso aos bilhetes a um custo reduzido — o preço normal é seis euros, mas há vários descontos e as crianças até aos 12 anos não pagam.
Às 10h30 da manhã há fila para entrar na sala e ver A Caixa de Nove Lados, um espetáculo de marionetas em que uma avó e uma neta viajam pelo mundo fantástico que se encontra dentro de uma caixa de costura. O início da peça, às escuras, é pontuado com uma voz doce e chorosa: “mãe, tenho medo”.
“Na verdade, o espetáculo é sobre isso: o medo. A conclusão da história é que temos que o enfrentar”, diz Samantha Jesus, finda a peça. É uma das intérpretes e a diretora artística da Historioscópio, companhia de teatro infantil e familiar criada no Porto em 2013 e que se serve do potencial expressivo e dramatúrgico do teatro de marionetas para estimular a imaginação e a liberdade de pensamento dos mais pequenos.
“O espetáculo começa um bocadinho mais escuro, é normal as crianças mais pequeninas terem esse medo de o que vai acontecer a seguir”. Marta Costa, intérprete que a acompanha, complementa: “Quando isso acontece parece que o propósito do espetáculo fica mesmo cumprido. Não é que queiramos provocar medo, mas a sensação está a ser mesmo vivida. Para nós [alguma criança chorar] é totalmente compreensível porque sabemos que vamos desconstruir esse medo quando acender a luz e começarmos com a história.” Não tarda, a audiência estará a soltar fartas gargalhadas. “É normal ter medo e desconfiar do que é que vai acontecer a seguir, lidar com essas emoções, tentar descobrir… Está tudo certo. O rir e o chorar são coisas humanas”, desvaloriza Samantha, que tem um gosto especial em estar ali pela primeira vez com a companhia com sede em Valongo. “Sou de Viseu, costumava vir aqui na minha adolescência e vinha ao Atitudes. É muito bom poder voltar a este espaço com tão boas memórias e agora com um espetáculo”.
No final, ainda com as mãos a dar vida às personagens, a dupla convida as crianças a tomar o palco e a conhecer os protagonistas da história. Muitos tiram fotografias. “A família vem de propósito a Campo Benfeito só pelo teatro. Compramos sempre bilhetes para a semana toda”, diz Marco Amaral, pai de Lourenço, um dos que faz fila para registar o momento ao lado das marionetas. Tem seis anos, veste uma camisola azul e a sua personagem favorita é a avó, “porque é a mais crescida”. A família vive no Porto, mas tem raízes em Campo Benfeito. “O meu avô é que era daqui”, diz a mãe, Luísa. “Vimos sempre todos os anos, os miúdos gostam muito. Temos três filhos, mas mesmo antes de termos já vínhamos ao teatro. Agora eles também vêm e gostam muito”. No Porto, admite, não têm o mesmo hábito. “Faz-nos mais sentido aqui. Vamos ver uma peça ou outra, mas é raro. Aqui vimos ver as peças todas. O nosso verão já não faz sentido sem vir cá”.
“Passa pela disponibilidade das pessoas”, crê Abel Duarte, diretor de cena do Teatro Montemuro, convidado a apontar os motivos para o intenso consumo cultural de quem não coloca o teatro na agenda ao longo do ano. “Muita gente tira férias e está disponível para esta semana para ir ao teatro. Não me admira muito que as pessoas dos grandes centros não vão ao teatro porque, sejamos honestos, não há tempo. É sempre a desculpa, não há tempo. Se calhar aqui criam esse tempo”, constata.
Num fontanário, um garoto refresca-se do calor infernal de agosto. Quem quiser outra bebida tem de andar pouco mais de um quilómetro até à aldeia mais próxima e encontrar a Liga de Amigos do Rossão, um pequeno café à beira da estrada onde se joga à sueca na esplanada e uma moeda de 50 cêntimos ainda paga uma dose de cafeína. A outra opção é a roullotte que, nos últimos anos, se instala no fundo de Campo Benfeito para aproveitar o público que ruma ao festival. Servem-se bifanas, cervejas, gelados. É lá que se acumula gente depois dos espetáculos.
Quando a barriga dá horas se percebe que a azáfama provocada pelo festival extravasa a aldeia. Na Gralheira, uma povoação a oito quilómetros dali, pertencente ao município de Cinfães, conhecida pelo cabrito assado, posta de carne arouquesa e cozido à portuguesa, os restaurantes estão repletos nos dias do Altitudes. Sem reserva feita atempadamente não há mesas, e só resta uma hipótese: comprar pizzas nos mesmos restaurantes (iguarias feitas em forno de lenha e muito gabadas pelos mais jovens) e assentar arraiais no Parque das Merendas.
Teatro do Montemuro: como tudo começou
Em Campo Benfeito, o teatro já leva décadas de costumes. “Existia uma tradição nos anos 1950 e 60, por intermédio de um padre e de uma catequista. Depois, com a grande desertificação dos anos 70, a coisa morreu. Mas essa catequista continuou a fazer algumas atividades”, recorda Eduardo Correia.
Sem sonhar, preparava-se assim o terreno ideal para que, no final dos anos 80, o ICA – Institute of Cultural Affairs, uma organização não-governamental internacional e sem fins lucrativos que trabalhava em zonas rurais, identificasse potencial no município de Castro Daire. Os jovens de Campo Benfeito participaram em festivais organizados pelo ICA em várias aldeias, mas, se na grande maioria os participantes tinham pouca idade, os de Campo Benfeito eram já mais crescidos, adolescentes.
Foi então que o inglês Graeme Pulleyn, voluntário no ICA e com experiência em teatro, chegou ao território, marcando-o para sempre. Enturmou-se com o grupo e tornou-se um dos propulsores para a fundação da companhia de teatro (onde se manteve até 2004).
Com ele, a partir de 1990, o grupo de jovens começou a criar espetáculos, mas também a fazer visitas a idosos, a recolher histórias. “De 90 a 95 trabalhámos muito, de uma forma muito experimental, fizemos vários programas, desde residências artísticas, intercâmbios, que foi aí uma fonte também de inspiração e de conhecimento”, lembra o diretor artístico. Pelo meio, foram pedindo apoios ao ICA para projetos, e conquistando um espaço: o salão paroquial do Fôjo, no topo da aldeia.
Em 1992, organizaram o 1º Encontro Cultural do Montemuro, o que viria a, cinco anos mais tarde, dar lugar ao primeiro Festival Altitudes, em 1997. “Surgiu pela necessidade de podermos trazer espetáculos de qualidade, profissionais, aqui à nossa população, à nossa comunidade. E depois, outro lado, a outra parte, é que nós começámos a ser convidados por muitas companhias que organizavam festivais. E era uma forma também de retribuir. Essa partilha, essa relação que fomos criando, e que felizmente ainda se mantém até hoje”, diz Eduardo.
Foi ainda nos anos 90 que dois membros da companhia inglesa Pentabus Theatre visitaram Campo Benfeito. Da visita surge a ideia de uma residência artística, que culmina num espetáculo bilingue com uma temporada nas aldeias do distrito de Viseu e outra em Inglaterra. A peça viria a revelar-se determinante para a criação da companhia. Depois de se mostrar em terras inglesas, Lobo-Wolf estreou-se em Portugal na Escola Secundária de Castro Daire, em 1995, mas foi no Finta, o festival Internacional de Teatro em Tondela, que tudo mudou.
Segundo a companhia, terá sido a resenha de Manuel João Gomes, antigo crítico de teatro do jornal Público e figura de relevo na divulgação do teatro que se fazia pelo país, a motivar a programação de Lobo-Wolf por todo o país. “O espetáculo ganhou uma dimensão que não contávamos. Foi aí que um conjunto de pessoas disseram que, com este caminho e este passado, nos devíamos candidatar aos apoios do Estado”. Assim fizeram. Candidataram-se a um apoio pontual e classificaram a companhia como profissional em 1996. “A partir daí começámos a crescer, fomos sempre apoiados, os primeiros dois três anos com apoios pontuais, depois com um apoio anual, depois bianuais, e agora de quatro em quatro anos”.
Nas últimas décadas, são muitas as memórias de espetáculos, programas e pessoas que se inscreveram na história do teatro, mas 2002 foi um ano-chave, com a mudança para uma nova casa: um pavilhão com as condições que há muito ambicionavam. “Estávamos muito limitados a nível técnico e, durante o inverno, era insuportável, não havia condições nenhumas para os colaboradores, cenógrafos e encenadores que convidávamos. Para nós era desumano, e nascemos aqui na aldeia, quanto mais para as pessoas que vêm de fora”, recorda Paulo Duarte, membro da companhia. Ainda tentaram que o espaço onde estavam, que era detido pela paróquia, lhes fosse cedido por um período de 20 anos para que pudessem concorrer a fundos públicos e fazer as obras necessárias, “mas como a paróquia tem sete aldeias o padre não queria decidir sozinho… Foi complicado”. Acabaram por encontrar um terreno à venda e não hesitaram em comprá-lo. Mas vazio de pouco lhes servia. “É uma história engraçada”, diz Paulo. “Concorremos a um apoio para construir o espaço, o pavilhão, e não foi aprovado. Entretanto veio aí um ministro qualquer e queria aprovar um projeto e foram buscar a nossa candidatura. É tudo uma questão de sorte. É persistência, é prazer, é dedicação, mas é preciso ter sorte em tudo.”
Sorte ou não, foi fundamental para a companhia dar o salto. Tal como apoio de Jorge Sampaio, então presidente da República (1996-2006), mencionam. “Veio cá visitar-nos e depois foi ver os nossos espetáculos em Lisboa. Diziam as más línguas que a companhia do Montemuro era a companhia preferida do Jorge Sampaio”, ri Eduardo, antes de admitir: “Aproveitámos isso para criar uma determinada pressão”. O Espaço Montemuro, um pavilhão verde de 24 metros por 12, hoje coberto por uma obra da artista Tamara Alves, que o pintou em 2021, durante o festival, é a prova que conseguiram.
Assim como a antena, luta de muitos anos, que agora se ergue ao lado do pavilhão. Chegou apenas em 2020, e graças à companhia. “Insistíamos que devíamos ter rede aqui. Era um problema. Um dia a Altice veio ali a um comício a convite da autarquia de Castro Daire e nós fomos lá”, conta Paulo. Dois meses depois, “um senhor lá apareceu com uma proposta”. De todo o espaço na serra, a operadora ditou que só naquele espaço poderia ficar a antena, que permite a clientes MEO fazer comunicações. “Queríamos muito ter rede. Tivemos que aceitar”.
Sangue, suor, lágrimas e rigor
Três décadas depois, o festival Altitudes soma 27 edições e o Teatro do Montemuro continua firme na sua vontade de mostrar que é possível apresentar espetáculos com a mesma qualidade artística em teatros nacionais, escolas ou espaços comunitários de aldeias beirãs. “Em todos os trabalhos tem que haver prazer, gosto pelo que se faz e, acima de tudo, também rigor. Nós somos bastante rigorosos no trabalho”, sublinha Abel. “Procuramos sempre outras formas de contar histórias, mas temos uma base que nos referencia, que é: os nossos textos são todos originais. Agarramos muito nisso”. Além disso, “nunca deixamos o espírito de atores de teatro amador”. Que espírito é esse? “Normalmente há uma brincadeira, não há aquela coisa ‘nós somos estes atores de nariz empinado’. Não, somos nós, que viemos de uma aldeia, temos isto e gostamos de contar histórias. Mantemos este espírito de uma família, um grupo, somos todos um só, ou tentamos ser. Cada um com a sua responsabilidade. É o que dá mais resistência para este grupo se manter.”
A cada ano que passa, procuram ultrapassar-se, seja nos cenários, entre penedos ou construídos de raíz, ou nas histórias que refletem as vivências na aldeia. E aprendem com os encenadores, atores, companhias que convidam. “Vêm trabalhar connosco pessoas novas que têm uma outra forma de estar em palco, de criação de personagem. Vamos olhando e vamos roubando também isso. É uma aprendizagem”, diz Paulo. “Dizem-nos que têm muito a aprender connosco, mas nós também. Haja a vontade de partilhar. Porque, no fundo, o teatro é partilhar, não é?”