Cada folha de caderno é um documento. Ainda mais para Álvaro Siza Vieira, arquiteto que toda a vida se fez acompanhar de papel e caneta, desenhando o mundo que o rodeia. “Trabalhámos com cerca de 250 mil documentos”, estima o também arquiteto, crítico e curador espanhol Carlos Quintáns Eiras, responsável pela exposição dedicada à obra de um dos grandes nomes vivos da arquitetura e urbanismo mundiais, que é inaugurada esta sexta-feira na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. O desafio era de tal ordem que acaba por soltar, a propósito da preparação da mostra: “Fazia-nos falta mais um ano”.
Siza é uma mostra dedicada à obra do primeiro Pritzer português tendo como centro da reflexão o papel do desenho. “Siza desenha enquanto trabalha, quando come, nos momentos em que relaxa ao ouvir música, ao ver um filme ou enquanto conversa; não há momentos em que o desenho deixe de ser uma necessidade”, lê-se no texto de parede, logo à entrada. “Não é fácil encontrar em toda a história uma capacidade de produção similar”, afirma o curador aos jornalistas. Cadernos, folhas soltas, guardanapos, sacos para o enjoo e até maços de tabaco — tudo serve de palco para o traço do arquiteto de Matosinhos, que, aos 90 anos, não deverá marcar presença na inauguração desta grande exposição que lhe é dedicada e que ocupa a Galeria Principal do edifício sede da Fundação e a Galeria de Exposições Temporárias do Museu.
Até 26 de agosto, o público pode descobrir material original, desenhos, plantas de trabalho e plantas finais, fotografias, peças de design, mas também os tais maços de tabaco (uma mesa comprida exibe 39, perfeitamente ordenados como uma “orquestra”, define o curador).
O objetivo daquela que é a primeira exposição, em Lisboa, pensada de raiz sobre o arquiteto nos últimos 30 anos, é mostrar “uma imagem total do Siza”, diz Carlos Quintáns Eiras, o curador da exposição, que foi responsável pelo Pavilhão de Espanha na Bienal de Veneza em 2016, vencedor do Leão de Ouro. “Como fazer algo que não tivesse sido já feito?” impunha-se como a grande questão, assume, ciente de que, em conjunto com a curadora assistente Zaida García-Requejo, consultaram “tudo o que o tempo permitiu” — no caso, passaram precisamente 365 dias desde que começaram a unir os esforços de “todas as instituições que têm arquivo do Siza”, a saber: a Fundação Serralves, no Porto, ao CCA – Canadian Centre for Architecture, em Montreal, bem como o centro britânico Drawing Matter e Fundação Calouste Gulbenkian, além do próprio ateliê do arquiteto e “algumas coleções particulares”.
O que chega agora à Gulbenkian é um “atlas de Siza”, um mapa de conceitos que pretende mostrar uma “obra total” de uma das mais importantes figuras da história da arquitetura em Portugal e do mundo. “Os edifícios de Siza contêm os seus móveis, os seus desenhos ou as suas esculturas”, escreve Carlos Quintáns no jornal que acompanha a exposição, que começa na Galeria Principal, onde os visitantes são confrontados com uma parede repleta de fotografias (captadas por Juan Rodríguez) de alguns dos mais emblemáticos edifícios do arquiteto: como a Casa Alves Costa, 1971, em Moledo do Minho, o Bairro da Bouça, 1973-77, no Porto, ou a Igreja de Santa Maria, 1996, no Marco de Canaveses.
Galgado esse muro fotográfico de uma obra a céu aberto e visível a todos, revela-se o coração de uma exposição, o menos visível: os cadernos de Siza. São 30 cadernos originais, cuidadosamente abertos. “Estes cadernos contêm a energia do Siza. Dizemos que o Siza mostra através dos desenhos uma forma de pensar. Essa forma de pensar está perfeitamente articulada nos cadernos”, explica o curador. Para os que desejem examinar mais minuciosamente os objetos, há 12 exemplares que foram reproduzidos e que podem ser manuseados.
“Tínhamos de explicar o Siza”, diz, por fim, Carlos Quintáns Eiras. “E a única forma de explicar o Siza é explicar o Siza que é global. E para fazer isso temos de analisar o Siza através de cada conceito importante.” Encontraram o caminho recorrendo ao verbo, mais concretamente a 30 verbos que se relacionam com o homem que defendeu a “função social do arquiteto” e do “destino da arquitetura para todos”. Depois, associaram cada verbo a a três obras, perfazendo o número mágico que celebra o aniversário de Álvaro Siza Vieira, 90.
Com uma preocupação expressa por não desvirtuar a arquitetura do espaço expositivo da Fundação Gulbenkian, a Galeria Principal foi mantida praticamente intacta, deixando as enormes janelas revelar a natureza lá fora. A luz natural permite deambular em torno dos 147 metros de mesas em alumínio onde constam as obras (edificadas ou não) de assinatura Siza Vieira. “Queríamos que se analisasse como se analisam nos escritórios dos arquitetos, em mesas”, sorri. Vários verbos populam as mesas por ordem alfabética: “afastar”, “afilar”, “aquecer”, “articular”, “baixar”, “cobrir”…
Na mesa onde em letras garrafais se lê “viver”, mostram-se projetos de habitação, lembrando o compromisso social de Siza com a arquitetura pública que realiza. Por “casualidade do idioma”, voar é o último verbo, nota Quintáns Eiras. “É alfabeticamente uma sorte. O que tem a ver com o mundo da arquitetura “voar”? Imaginamos o presente e o futuro. O desenho para Siza representa conquistar o futuro, imaginar como pode ser”.
Mais adiante, há um espaço para imaginar o que já é. Entre quatro paredes, projetam-se 900 imagens ao longo de 15 minutos. A cada três segundos, obras emblemáticas desfilam perante o olhar, como a Faculdade de Arquitetura do Porto, o Museu de Arte Contemporânea de Serralves, a Igreja do Marco de Canaveses, a Agência do Banco Pinto & Sotto Mayor, em Oliveira de Azeméis, ou a Casa de Chá da Boa Nova, restaurante de onde saíram algumas das peças de mobiliário que também ocupam o espaço expositivo.
Uma gigante fotografia da mão do arquiteto indica-nos o caminho. É tempo de descer ao piso inferior, até à Galeria de Exposições Temporárias do Museu Calouste Gulbenkian, para onde a exposição se estende, convidando a um mergulho no lado mais pessoal de Siza Vieira — há uma divisão assumida de uma primeira parte sobre a “arquitetura”, e a segunda sobre “o arquiteto”, como antecipam os textos de parede.
“Queríamos começar com o maior retrato de todos”, ironiza o curador espanhol sobre um pequeno pedaço de cartão redondo onde uns óculos e um nariz proeminente denunciam o rosto do Pritzer. Mais à frente, eis uma seleção de retratos de amigos e família do arquiteto. “Depois de me exercitar em caixas fechadas e abertas, cavalos de perfil e gatos frontais, sem idade para colo, oritentara a produção ao retrato: família e vizinhos disponíveis”, escreveu o arquiteto em 1980, lê-se na parede.
Ao lado, há ainda obras de artistas que compõem a constelação de referências pessoais, artísticas e profissionais de Siza Veira, como um quadro de Pablo Picasso e três obras de Amadeo de Souza-Cardoso. Destaca-se, porém, a obra de Maria Antónia Siza (1940-1973), mulher do arquiteto, que morreu precocemente, e com quem teve dois filhos. A Fundação Gulbenkian tem 100 peças de Maria Antónia Siza, nota o curador, e a equipa curatorial elegeu nove para a exposição. Álvaro Siza Vieira, com quem os curadores tiveram reuniões regulares ao longo do último ano, escolheu a décima. Trata-se de um óleo sobre aparite que data da década de 1960. Ladeia-o um desenho da filha e da neta de Siza Vieira.
Para os que associam o mais premiado arquiteto português a obras cruciais do espólio imóvel nacional, como o Pavilhão de Portugal para a Expo 98, em Lisboa, ou o projeto de recuperação do Chiado, após o incêndio de 1988, esta é uma hipótese de descobrir uma nova parte do atlas de quem é feito o arquiteto. “Há outro Siza, o Siza familiar. Este é o Siza que ele nos dá a conhecer pelos desenhos. Esta é uma oportunidade de ver esse Siza.”
Fundação Calouste Gulbenkian. Lisboa. 6€ Seg-Dom 10h-18h, Sáb 10h-21h. Encerra à terça.
Notícia atualizada às 10h de 17 de maio de 2024 para esclarecer que a exposição é organizada pela Fundação Calouste Gulbenkian e não pelo Museu Calouste Gulbenkian.