“Vou chegar uns 10 minutos atrasada, tive que ir a uma fábrica. Até já.” Por estes dias, a vida de Susana Bettencourt é assim, repleta de imprevistos e contratemos, mas nada que tire o sorriso e a vontade de conversar à designer de moda. Na sua nova morada criativa em Guimarães, cidade onde vive há três anos, o barulho da máquina de malha confunde-se com o ritmo das suas palavras, tal como aconteceu durante a sua infância vivida na ilha de S. Miguel, nos Açores, onde com apenas cinco anos aprendeu a fazer crochet e tricot.
Cresceu entre tecidos, agulhas e livros da Singer e da Oliva, começou por vestir bonecas, o primeiro conjunto branco foi inspirado na Marilyn Monroe, e era capaz de passar horas a coser, o que chamou a atenção dos pais. Com 18 anos partiu para Londres para estudar moda e foi lá que descobriu o poder da malha, aprendeu a trabalhar além de todas as contrariedades pessoais e vendeu peças da sua autoria para a cantora Lady Gaga. O caminho estava aberto para Susana Bettencourt crescer e foi isso que fez com a sua marca homónima, lançada em 2011.
Regressou a Portugal para trabalhar na indústria, mas rapidamente percebeu que a rotina e a monotonia não combinavam com a sua efervescência, insatisfação e inquietude criativas. Se as referências, a estética e a noção de look chegaram mais tarde, a técnica, os contrates gráficos e a importância da cor sempre ocuparam espaço na bagagem de Susana Bettencourt.
Exigente, metódica e perfecionista, garante ter a missão de perpetuar a malha, o artesanato e a sustentabilidade. Juntando a tradição à tecnologia, torna esta matéria-prima única, acessível e contemporânea, mas lamenta que o país não lhe dê o devido valor. A desunião do setor, a falta de parcerias fortes e o facto de muitos olharem para eventos como Portugal Fashion como “a parte fútil da moda” e apenas “quatro dias de desfiles” é algo que a entristece, mas não a desconcentra da sua missão.
Depois de inaugurar em Guimarães uma loja que é também um estúdio, apresenta esta sexta-feira a sua mais recente coleção no Palácio da Bolsa, no Porto, encerrando um ciclo criativo dedicado à saúde mental e a temas que ganharam importância durante a pandemia. No futuro, Susana Bettencourt quer regressar às origens inspirando-se no legado que aprendeu com alguns familiares, homenageando-os.
Como é que aos cinco anos já sabia fazer tricot e crochet?
Cresci em São Miguel e acho que pelos Açores terem estado afastados durante algum tempo geograficamente do continente existiram profissões que duraram mais tempo. Quando era pequena — sou a filhas mais nova e a mais mimada — passava os três meses de férias grandes com os meus avós maternos e uma outra tia que era cega e tricotava só de memória e com o toque, fazia mantas e enxovais. Todas me ensinaram a fazer crochet e tricot, os meus pais perceberam que eu me divertia a fazer aquilo e decidiram a apostar neste meu potencial. Tinha outra tia artesã profissional que era muito a frente do seu tempo e me marcou muito, ensinou-me técnicas, bordados e dizia: pões um bocadinho de amarelo e todas as cores abrem. As minhas referências vêm daqui.
Começa por vestir bonecas?
Sim, cortava o cabelo das barbies e fazia-lhes a roupa toda. Lembro-me que o primeiro conjunto que fiz era inspirado na Marilyn Monroe, uma saia rodada e um top branco, que depois reproduzi noutras cores, de outras cores. Sou muito apegada aos objetos e à memória que eles acartam e isto é horrivelmente pesado para mim, gostava de ser muito mais desprendida, fico destroçada se perco ou não encontro alguma coisa. As raízes açorianas moldaram o que sou, sou de uma família em que as máquinas domésticas de costuram existiam em casa, acho que se tivesse nascido num outro sítio ou noutra família o meu percurso seria completamente outro.
Em que contexto vai depois para Londres com 18 anos estudar?
Nessa altura não tinha a noção de que a moda poderia ser mesmo a minha profissão, achava que seria artesã como algumas mulheres da minha família, mas era de facto uma vida muito dura e talvez não quisesse aquilo para mim, mas não consegui afastar-me deste trabalho de mãos. Como não tive uma média suficiente para entrei na faculdade que queria em Lisboa, então fui para Londres fazer um curso. Pesquisei escolas com os meus pais, lembro-me de ir com a minha mãe às embaixadas ver os países que tinham faculdades de moda para poder concorrer. Foi nesse intercâmbio que uma professora me disse que tinha nascido para fazer malhas e que elas me nasciam nas mãos.
Que efeito é que essa descoberta teve em si?
Fiquei contente, mas ao mesmo tempo senti um aperto no coração porque percebi que iria mesmo viver longe dos meus pais durante algum tempo. Aquela professora indicou-me um caminho quando me comecei a expressar, não fui para os estampados ou para as pregas, o que me era natural era transformar todas as imagens num ponto de malha. Foi aí que consegui descobrir que tinha mesmo algo de especial, que nem toda a gente fazia de uma forma natural.
Que referências tinha nessa altura?
Acho que nunca fui uma designer de moda de raiz, desde que terminei o curso e iniciei a minha carreira que tento ter essa cultura visual com outras marcas, uma visão mais estratégica de conceitos e cores, mas antes não tinha referências. Ganhar a noção de look e uma estética talvez tenham sido a minha maior dificuldade na moda, não propriamente a técnica e o saber fazer. Ganhei isso com trabalho, não foi uma coisa propriamente natural.
Quando apresenta o seu trabalho em Londres, que feedback recebe?
Na licenciatura tive um feedback negativo devido a uma má gestão emocional da minha parte durante esse ano. O meu pai estava doente e queria estar em Lisboa com ele, por isso fiz a coleção à distância e as pessoas deram-me o desconto, mas quando chegou a altura de me deram uma nota e compararem a minha coleção com outras aquilo o que interessava era o resultado do meu trabalho e não o que tinha passado. Esta foi uma lição muito dura e muito importante para a minha vida, independentemente do que estou a passar pessoalmente ou no backstage, o meu trabalho nunca pode sair afetado por isso. Quando segui para o mestrado já fui com este ensinamento, perdi o meu pai nos primeiros três meses e voltei a ter aquela condescendência querida dos professores, mas aí tive a necessidade de lhes explicar que era aluna de 90% a 95%. Iniciei a minha marca ainda em Londres e no desfile de final de mestrado o Nicola Formichetti, stylist da Lady Gaga, pediu-me algumas peças para ela usar.
Isso surpreendeu-a?
Muito. Lembro-me que era uma coleção inspirada no luto, cheguei a personalizar algumas peças para ela, mas depois não aguentei ficar em Londres porque a produção de malhas era muito cara e por isso decido voltar para Portugal.
Como foi esse regresso?
Foi duro, ninguém em Portugal aceitou fazer as minhas coleções, então fui para Espanha produzir as minhas primeiras três coleções, mas depois o fornecedor não sobreviveu à crise e não conseguimos manter a parceria. Voltei para Portugal à procura de uma solução, consciente que se não a encontrasse a marca terminarei. Trabalhei dois anos na Sala, como designer de malhas, e nessa experiência percebi que trabalhar de segunda a sexta, das 9h às 17h no mesmo sítio, criativamente me fazia muito mal. Gostava daquilo que fazia, desde que existam malhas eu sou uma mulher feliz, e na verdade a Salsa permitiu-me trabalhar na indústria têxtil, o que me abriu imensas portas, conheci pessoas e percebi como todo o processo funciona.
Ao trabalhar sempre com o mesmo material as possibilidades criativas não se esgotam?
O meu problema é ter ideias a mais [risos]. Não entendo como é que em Portugal temos uma história e uma tradição em malha, em que 68% da exportação têxtil são malhas, continuamos sem uma especialização, uma licenciatura ou uma escola focada neste material. Todas as pessoas que trabalham na indústria de malhas vão trabalhar para onde se não investirmos nelas? Quando vejo isto a acontecer, sinto que tenho uma missão gigante, a minha vida não vai ser suficiente para explorar tudo o que a malha nos pode dar. Neste momento usamos muita tecnologia para a massificação da malha e para produção em massa e esse não é o futuro.
Sente que é difícil defender o que é tradicional e mais artesanal?
Tento cada vez mais ter parcerias que nos ajudem a conseguir alterar a forma como o artesanato é visto, rejeitando a ideia de que é uma arte morta. Neste momento temos uma parceria com a Câmara Municipal de Peniche em que trabalhamos com a escola de renda de bilros e o grande objetivo é acrescentar àquelas senhoras que têm a arte de saber fazer nas mãos uma cultura visual e uma atualização dessa técnica em tipologias de produto.
Como é o seu processo criativo?
Já sofri muito nesse processo, confesso, acho que uma mente criativa precisa dos seus momentos de solidão para pensar, porque muitas coisas minha são vistas como loucura aos olhos dos outros. Para conseguir permanecer fiel a essa loucura, pois sinto que ela é necessária, às vezes isolo-me um bocadinho.
De que é feita essa loucura?
É uma loucura que se prende muito com a minha missão. Começo sempre por escolher que técnica vou usar, quantas coleções vou estender essa técnica, como posso não fazê-la tal e qual como ela é conhecida e como posso dar-lhe um novo ar. As minhas coleções começam sempre no material, é ele meu ponto de partida, e depois tenho a preocupação de trazer algo de novo à sustentabilidade. Hoje os materiais mais orgânicos são normalmente trabalhados em tons terra, mais neutras, eu gosto de desconstruir isso. A forma como se tinge o fio e todo o processo de chegar à cor é algo nocivo para o planeta, no entanto, essa cor resulta da sobras de muitas coisas e atualmente já temos formas de tingir a lã e a viscose que já não são tão nocivas. A sustentabilidade é o futuro e, acredito, a única forma de trabalhar.
Como é a sua rotina?
A minha rotina é não ter rotina, isto certamente não faz bem ao corpo, mas faz-me bem à cabeça, então vou equilibrando. Tenho mais ideias à noite, então tenho em casa uma agenda à moda antiga, muitas vezes surgem-me ideias no avião, é um sítio onde sou capaz de idealizar uma coleção. Não sei se é o silêncio, o facto de não haver telemóveis ligados por perto ou por não adormecer, mas é um lugar importante para mim, aliás, as viagens contribuem muito para a minha criatividade, basta ir aos Açores e nessas duas horas já pode surgir alguma coisa.
Que coleção irá apresentar no Portugal Fashion?
É uma fusão entre peças muito manuais e outras que resultam de um processo tecnológico, é uma coleção que fecha um leque de temas que abordei nas três últimas estações, centrados na minha revolta relativamente à aceleração do mundo, a saúde mental e todas estas questões que ganharam importância durante a pandemia. Fala de perceção, desde a parte visceral do olho e de como construímos a cor, presente em muitos dos padrões e grafismos com cor, a uma sátira às visões que temos hoje adulteradas através de uma maquilhagem mais exagerada.
O Portugal Fashion corre ainda o risco de não se realizar no próximo ano por falta de financiamento. Surpreendeu-a esta notícia?
Desde 2011 que participo no Portugal Fashion, faço ações internacionais com eles desde 2014, e isto não foi propriamente novidade para mim. Quem faz parte do evento conhece perfeitamente as dificuldades que temos vindo a passar, nas últimas edições temos tentando arranjar ideias e formas diferentes de poder utilizar os recursos disponíveis para darmos o nosso melhor e passar uma boa mensagem e um bom espetáculo. Infelizmente as pessoas quando pensam no Portugal Fashion pensam em quatro dias de desfiles, no horário, na imagem final, nos vídeos, nas entrevistas, nas influencers e na parte fútil da moda, não entendem que o evento tem a missão de aproximar a indústria.
A solução passa por onde?
Acho que deveríamos trabalhar mais em conjunto, designers, organização e indústria deviam sentar-se à mesa e fazer parcerias fortes, como a que existiu agora entre o Luís Carvalho e a Salsa. Temos de começar a conectar-nos, somos as soluções uns dos outros. Se estes fundos comunitários foram dados à organização é porque efetivamente existe uma estratégia implementada que tem um papel muito importante de mostrar que Portugal não é a fábrica de confeção da Europa, mas um país que oferece design de qualidade, boas técnicas e que pode ser sinónimo de futuro.
Acredita que tudo isso hoje está em causa?
Acredito, infelizmente acredito. O Portugal Fashion é uma plataforma para expor o meu trabalho, mas não criei a minha marca com a intenção de ocupar esta plataforma, é apenas a forma de me expressar e enquanto ela for sustentável financeiramente irei continuar. A minha marca é como um braço ou uma perna do meu corpo, faz parte de mim.
Inaugurou esta loja/estúdio em setembro e escreveu nas redes sociais que é mais uma conquista na sua lista de sonhos. Porquê?
Já tinha um espaço de trabalho em Guimarães, cidade onde vivo há três anos, mas não era uma coisa aberta ao público e não estava situada numa zona tão central e tão visível. Tenho noção que as redes sociais são uma montra importante para o que faço, mas as lojas físicas têm mais a ver comigo. A malha, o artesanato, a tecnologia que uso e o facto de produzir peças num número muito pequeno faz com que esta proximidade com o cliente faça mais sentido. Tenho a sorte de muitos me acompanharem desde o início e Portugal continua a ser o meu maior benfeitor, mas neste momento exporto entre 30% a 40%, Norte da Europa e América do Norte são os meus principais mercados.
Fechando um ciclo nesta coleção, no futuro o seu trabalho passará por onde?
Com as perdas que tenho tido a nível familiar, primeiro o meu pai e mais recentemente uma das minhas tias, a nível de conceito gostava de mergulhar numa coisa mais pessoal. Fui recentemente aos Açores recolher livros antigos de malhas, trouxe a máquina de costura na qual aprendi a bordar e muitas agulhas, a minha inspiração para as próximas coleções será este voltar às origens e à minha raiz.