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Não basta ganhar no domingo. Futuro Presidente do Brasil vai ter de negociar muito para conseguir governar

Hiper-fragmentado, com novas caras e bem mais favorável a Bolsonaro do que a Haddad — é este o novo Congresso brasileiro. Ganhe quem ganhar, o novo Presidente vai ter de ceder muito para governar.

“Quem quiser vai ter que nos apoiar sem ganhar cargos em troca”. A garantia foi deixada por Jair Bolsonaro, em novembro do ano passado. O candidato do Partido Social Liberal (PSL) às presidenciais do Brasil explicava, assim, a promessa que viria a estar inscrita no programa de Governo: “Um governo sem toma lá dá cá, sem acordos espúrios”. Foi essa, aliás, a posição que manteve durante toda a campanha. Bolsonaro diz que não quer governar com um Governo de coligação — ou seja, com o apoio declarado de determinados partidos para além do PSL, cujos membros fariam parte do Executivo.

O problema é que, claro está, nem tudo é assim tão simples — se ganhar, ou Bolsonaro volta atrás nessa promessa de campanha ou forma um Governo minoritário, que faça alianças pontuais. E, nesse caso, terá de transpirar para aprovar reformas mais amplas, como a da Previdência, para alterar o sistema de pensões.

O quadro não será muito diferente caso o vencedor das eleições do próximo domingo seja Fernando Haddad. Ainda que o candidato do Partido dos Trabalhadores (PT) tenha uma tarefa mais difícil que a do adversário. Não só terá de assegurar a vitória (e está muito atrás nas sondagens), como terá também de ultrapassar as dificuldades previsíveis que o PT enfrentará para formar coligações.

Jair Bolsonaro tem defendido que não quer um Governo de coligação, para evitar os acordos de "troca-troca" (FERNANDO SOUZA/AFP/Getty Images)

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A primeira volta das eleições criou um Congresso mais encostado à direita, com mais partidos do que o habitual e, é certo, cheio de rostos novos, muitos eleitos cavalgando a “onda Bolsonaro”. Isso mesmo poderia indicar que o cenário será sempre mais favorável ao candidato da extrema-direita, mas não há qualquer garantia de que, também para ele, as negociações com os deputados sejam sempre fáceis: “Ele não pode obrigar o Congresso a adequar-se à agenda dele. Tem de haver igualdade entre o poder executivo e o legislativo”, alerta ao Observador Thiago Aragão, especialista em análise de risco político e consultor na Arko Advice. “Todos os presidentes iniciam a trajetória no Governo com o apoio do Congresso. Mas esse apoio só se mantém com base numa relação de igualdade e na alternância de medidas populares com medidas necessárias, que muitas vezes não são populares.”

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Ganhe quem ganhar, será possível ao novo Presidente governar o Brasil?

Não é impossível governar com o Parlamento mais fragmentado do mundo

O Congresso que saiu das eleições de 7 de outubro é definitivamente mais conservador, precisamente por causa da eleição de vários deputados e senadores que beneficiaram do chamado “efeito Bolsonaro” — isto é, foram eleitos por defenderem uma agenda próxima da do candidato à presidência. É o caso do próprio Flávio Bolsonaro, filho mais velho de Jair, que foi eleito senador; ou do seu irmão Eduardo Bolsonaro, que bateu o recorde de número de votos num deputado federal.

Não admira, por isso, que o PSL de Bolsonaro tenha sido o partido que mais cresceu na Câmara dos Deputados, conquistando mais 51 deputados do que em 2014. Para um partido que existe há quase 25 anos, uma subida tão acentuada só se explica por uma razão: nesta eleição, quem se associou a Jair Bolsonaro saiu beneficiado. É o que Carlos Pereira, professor de Políticas Públicas e Instituições Políticas e co-autor do livro Making Brazil Work: Checking the President in a Multiparty System (sem edição em português), classifica como “uma espécie de avalanche” política.

Essa eleição em massa traduziu-se numa outra característica da nova composição do Congresso: seja na Câmara dos Deputados, seja no Senado, a maioria está bem mais encostada à direita do que acontecia até então. Com o PT a aguentar-se como maior força da esquerda nas duas câmaras, isso traduziu-se, portanto, num colapso dos partidos centristas. Os números na Câmara dos Deputados não enganam: o Partido Trabalhista Brasileiro passou de 15 para 10 deputados, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) perdeu quase metade dos mandatos que tinha (de 66 para 34) e o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) levou um rombo tal nas urnas que perdeu 25 dos 54 deputados que tinha eleito em 2014.

O PSDB — que teve também um resultado humilhante para a presidência, já que foi a primeira vez, desde 2002, que o seu candidato não foi a uma segunda volta —, tradicionalmente definido como um partido de centro-direita, está agora no lugar mais ao centro do Congresso. “[o PSDB] vai ser o eleitor pivotal do Congresso”, explica Carlos Pereira, que diz que isso pode significar que os seus 29 deputados na Câmara podem vir a ser essenciais para aprovar legislação ou à esquerda, ou à direita, conforme o partido se venha a posicionar. “O comportamento do PSDB vai depender da vitória ou não do partido em São Paulo”, prevê Pereira. “Se o candidato a governador do PSDB, João Dória, for vencedor, talvez ocorra uma inflexão para que o PSDB colabore com Bolsonaro. Se Dória perder, então talvez o PSDB vá para a oposição.”

A vitória ou derrota de João Dória (à esquerda), do PSDB, em São Paulo, pode ter consequências para a posição do partido no Congresso (EVARISTO SA/AFP/Getty Images)

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Essa é uma das incertezas que se coloca num Congresso onde a maioria das forças partidárias já declarou estar disponível para colaborar com Bolsonaro, se este vier a ser eleito. E são muitas as que estão em causa: a Câmara dos Deputados pode passar das 25 forças políticas que tem atualmente para 30, enquanto o Senado pode subir dos 15 para os 20 partidos.  É o Congresso mais fragmentado de sempre — e é, possivelmente, o Parlamento mais dividido do mundo, a fazer fé na análise do cientista político Jairo Nicolau.

Isso torna mais difícil formar um Governo e conseguir aprovar legislação? Sim, mas não torna esses objetivos impossíveis, como explica Carlos Pereira: “A fragmentação partidária é um complicador para a governabilidade, mas não é um impedimento. É mais importante gerir bem a coligação que se forma e, para isso, o Presidente tem de fazer boas escolhas: que partidos integram a coligação, o grau de coincidência ideológica desses parceiros, a partilha de poder e de recursos do Presidente para com esses partidos e se essa coligação representa ou não a média [do pensamento] do Congresso.”

Olhando para os posicionamentos já definidos das forças políticas eleitas, parece claro que Fernando Haddad teria muito mais dificuldade em chegar a acordos no cenário atual, já que o “PT está muito longe do centro deste Congresso” e “os partidos que o apoiariam não chegam para formar uma maioria”, resume Pereira. Para Bolsonaro, haveria maioria suficiente para formar um Governo de coligação com outros partidos para lá do PSL. O problema? “Bolsonaro tem dito que não vai governar em coligação, mesmo tendo as condições ideais para isso. Ele diz que vai ter um Governo de notáveis, de pessoas e não de partidos, e que vai tentar aliciar o Congresso para apoiar a sua legislatura. Só que esta estratégia tem vantagens no curto prazo, mas no longo prazo gera animosidades”, prevê o professor de Instituições Políticas.

O Brasil bem pode definir-se como tendo um sistema presidencialista, mas Bolsonaro ou Haddad rapidamente perceberão que o Congresso tem muito mais poder do que parece à primeira vista. “O sistema aqui funciona quase como um parlamentarismo disfarçado de presidencialismo”, resume Thiago Aragão. “Se o Presidente não tiver uma capacidade alta de negociação ou se não tiver um interlocutor forte com o Congresso, quem vai acabar por ditar a agenda não será o Presidente, mas sim o Congresso. O que não é necessariamente mau — mais indica-nos que o Presidente não tem assim tanto poder.”

Experiência do PT dá-lhe capacidade negocial. Mas Haddad precisa mais dela que Bolsonaro

As dificuldades não estão apenas no facto de o Parlamento estar, agora, fragmentado e mais conservador. Para além disso, os novos rostos, tanto a Câmara dos Deputados como o Senado, são, em muitos casos, de pessoas sem qualquer experiência parlamentar. Na Câmara dos Deputados, 52% dos eleitos são novos no hemiciclo, segundo contas da Agência Brasil, que classifica esta como a maior taxa de mudança no Parlamento dos últimos 20 anos. Essa mudança explica-se, em parte, pela Lava Jato: só 46% dos deputados que estão a ser investigados por corrupção conseguiram reeleger-se para o cargo, ou seja, menos de metade.

Que a renovação é grande, não há dúvida. Mas pode a inexperiência de alguns destes deputados e senadores beneficiar um futuro Presidente nas negociações? Thiago Aragão crê que não, até porque estes novos membros das câmaras continuam a não ser a maioria. E, para além disso, a inexperiência é bem mais prejudicial no Governo do que no Parlamento, afirma: “No legislativo, as convicções demonstram-se apenas pelo voto. É muito mais fácil alguém manter-se fiel às suas convicções. No executivo, não se decide um ‘sim ou não’, é necessário viabilizar ideias. E a inexperiência joga contra a viabilização.”

Se vencer a eleição presidencial, Fernando Haddad terá uma dor de cabeça para formar um Governo de coligação (NELSON ALMEIDA/AFP/Getty Images)

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Assim sendo, o analista sugere que é necessário também avaliar o grau de experiência das equipas governativas — e, nesse campo, considera que Haddad teria a vida facilitada face ao candidato do PSL. “Existem pessoas mais experientes a negociar no grupo do PT do que na equipa de Bolsonaro, isso não há dúvida”, afirma. “E isso é muito importante porque as janelas para aprovar projetos são curtas.”

Em caso de eleição, Fernando Haddad poderia, portanto, gozar dessa maior experiência política e do conhecimento dos corredores do Congresso. Essa capacidade ser-lhe-ia sempre muito útil, já que, ao contrário de Bolsonaro, a composição deste Parlamento lhe é altamente desfavorável. Mesmo com o apoio de outros partidos de esquerda, como o PSOL, o PSB ou o PCdoB, os apoiantes de Haddad não vão além dos 28% na Câmara dos Deputados, segundo contas da Folha de S. Paulo.

Isso implicaria negociar, negociar, negociar. “O PT teria de fazer concessões. Montar uma coligação heterogénea, moderar o discurso e atrair partidos do centro. Sem isso, seria um Governo minoritário, que não teria muito sucesso”, prevê Pereira. As feridas da campanha em nada ajudariam, como resumiu o filósofo Roberto Romano: “Haddad, o PT e os seus dirigentes fizeram o diabo e mais alguma coisa a Ciro Gomes (PDT). Reatar relações profundas em apenas um mês não dá. Vai ser muito complicado.”

Mas mesmo este cenário não parece estar a ser equacionado por muitos: com as sondagens a darem ampla vantagem a Jair Bolsonaro face a Haddad, há quem acredite, como Carlos Pereira, que dentro do partido se contam antes as espingardas para liderar a oposição, em vez de fazer contas para formar um Governo. Mas, caso tal venha a acontecer, prevê-se uma negociação muito difícil com um Congresso mais radicalizado à direita e uma esquerda e centro não totalmente convencidos pelo PT.

Bancadas de “Bíblia, Boi e Bala” apoiam Bolsonaro — mas será suficiente?

A campanha de Bolsonaro tem, pontualmente, levantado essa questão. “Jair Bolsonaro já iniciará o próximo Governo, se Deus quiser, com grande e ampla base”, declarou Flávio Bolsonaro recentemente. “O lado oposto, o lado das trevas, dificilmente terá governabilidade”, sentenciou.

O problema para os apoiantes do candidato da extrema-direita volta a ser a tal promessa que consta do programa do Governo e que a equipa de Bolsonaro parece secundar:“Nós não vamos procurar ninguém. Vamos apenas receber as pessoas, a nossa coligação é com as pessoas”, declarou Ônix Lorenzoni, apontado como provável chefe da Casa Civil num Governo do ex-capitão do exército. Ou seja, nada de coligação governamental.

Ônix Lorenzoni, apontado como possível chefe da Casa Civil de Bolsonaro, tem liderado as negociações para apoios futuros no Congresso (MAURO PIMENTEL/AFP/Getty Images)

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Para Carlos Pereira, o mais certo é este tipo de anúncio não passar de retórica de campanha, extinta logo que chegar ao poder. “Acho que é uma estratégia eleitoral. A campanha de Bolsonaro tem sido muito anti-sistema e anti-presidencialismo de coligação, que ele diz gerar corrupção e o chamado ‘troca-troca’. Como ele encarna uma candidatura anti-sistema, diz que não o fará. Mas será muito difícil se não o fizer, porque o sistema político brasileiro está ancorado neste presidencialismo de coligação.”

Caso Bolsonaro se mantenha fiel à sua promessa de campanha —  e também às promessas de reduzir o número de ministérios e a incluir de militares em cargos ministeriais —, isso significa que terá de negociar caso a caso com cada parlamentar, em vez de negociar com os partidos. “O que ele propõe é que, em vez de negociar com o partido inteiro, negociar com as lideranças locais”, explica Aragão. “Por exemplo: o PP apoiou o PT no nordeste, o Bolsonaro no sul e o vice-presidente de Alckmin. O que mostra isto? Que a unidade partidária está enfraquecida como nunca antes. Isso facilita que Bolsonaro negoceie com alas do PP ou do PSDB ou do MDB. Ele pode ter uma maioria mais fluida, mas também mais instável, que pode variar de acordo com cada votação”, resume. “Isso pode dar certo, mas só se a sua popularidade se mantiver alta. Se os que votaram nele sentirem que ele não está a responder às promessas de campanha, então a lealdade do Congresso vai abanar também.”

A lógica é a de negociar diretamente com as chamadas “bancadas”, um fenómeno existente no Congresso, onde os parlamentares se agregam não por partido, mas por defesa de determinados temas. “Bolsonaro vai governar com as bancadas, que ultrapassam os partidos. Essa é que é a verdade”, avisou Silas Malafaia, um conhecido pastor evangélico no Brasil. A bancada evangélica é uma das que provavelmente mais apoiará Bolsonaro, a par de outras duas que compõem as chamadas bancadas “BBB” — “Bíblia, Boi e Bala”, ou seja, a bancada evangélica, a do agro-pecuário e a da segurança pública (esta última gozou de um enorme crescimento com a eleição de parlamentares do PSL).

Com o apoio garantido das BBB, a que se junta o apoio dos parlamentares do PSL, o mais certo é que sejam facilmente aprovadas medidas que não necessitam de maioria qualificada e que reúnem consenso entre estes grupos. Na prática, com um Governo Bolsonaro é de esperar que sejam facilmente aprovadas medidas como a revogação do Estatuto de Desarmamento, que facilita o porte de arma, o projeto Escola sem Partido (que valoriza valores familiares na educação moral e sexual) e, possivelmente, a redução da maioridade penal dos 18 para os 16 anos. Mais difícil é arranjar consenso para medidas estruturais, menos populares ou que necessitem de maioria de dois terços na Câmara — como, por exemplo, a reforma sobre o sistema de pensões, chamada reforma da previdência.

“A reforma da previdência, por exemplo, tem uma negociação que se inicia muito antes de chegar ao Congresso”, explica o consultor Aragão. As capacidades da equipa governamental são fulcrais, bem como a negociação posterior com os deputados. “Aprovar a reforma da previdência não é apenas uma análise da lealdade para com o Governo ou o mérito da proposta. O cálculo envolve a relação com os eleitores, do ponto de vista do parlamentar. Se um parlamentar é eleito com o voto dos reformados do estado do Pernambuco, pode ser difícil para ele votar a favor da reforma. Mesmo entendendo os méritos da proposta”, ilustra.

E, naquele que para o analista é “um dos problemas mais críticos que o Brasil vive hoje”, não parece que a aliança entre as BBB, o PSL e o Executivo de Bolsonaro seja suficiente para avançar com uma reforma de fôlego. Senão, vejamos as contas: “Neste momento Bolsonaro tem entre 220 a 280 parlamentares. Ele precisa de mais 70 votos, na melhor das hipóteses, e contar com 100% de lealdade de todos os seus aliados. Isto para aprovar uma reforma que, a curto prazo, pode prejudicar a relação dos parlamentares junto dos seus eleitores”, prevê Thiago Aragão.

No Brasil dos congressos multi-partidários, negociação é a palavra-chave — e é pouco provável que Haddad ou Bolsonaro tenham o jogo de cintura necessário para costurar amplos consensos, sobretudo em temas difíceis. Se for o candidato do PT a sair por cima, avizinham-se longas e truculentas negociações; se for o do PSL, podemos ter um período inicial com Governo e Congresso a aprovarem medidas onde concordam, mas a lua-de-mel pode rapidamente chegar ao fim.

“A incerteza depende muito mais do Presidente do que do Congresso”, resume Carlos Pereira, que traz vários anos de experiência a observar as relações entre executivo e legislativo. À medida que o mandato avança, a tendência é que a popularidade do Presidente vá sendo desgastada, tornando cada vez mais difícil a aprovação de medidas. Mesmo com um candidato fora da caixa como Bolsonaro, os alçapões do parlamentarismo podem traí-lo. Convém não ignorar o poder dos deputados, avisa o especialista: “Se Bolsonaro virar as costas ao Congresso, o Congresso pode bem virar-lhe as costas no futuro.” E, sem maioria parlamentar, não há Governo de notáveis que valha a nenhum Presidente. Se souber trabalhar com o Congresso, “Jair Bolsonaro tem a faca e o queijo na mão para governar.”

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