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Aníbal Cavaco Silva foi entrevistado pelo Observador no Convento do Sacramento, em Lisboa, onde tem o seu gabinete

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Aníbal Cavaco Silva foi entrevistado pelo Observador no Convento do Sacramento, em Lisboa, onde tem o seu gabinete

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"Não é normal o primeiro-ministro ficar em silêncio no Conselho de Estado"

Em entrevista, Cavaco Silva revela que enviou a Costa o livro sobre a arte de governar. Alerta ministros e primeiros-ministros que devem ter "cuidado com a mentira". E fala em empobrecimento "penoso".

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Dias depois de lançar o seu 25.º livro, Cavaco Silva recebeu o Observador no Convento do Sacramento, em Lisboa, onde tem o seu gabinete, e começou por revelar que já enviou um exemplar da obra “O Primeiro-Ministro e a Arte de Governar” a António Costa, que agradeceu. Em entrevista no programa Sob Escuta da Rádio Observador sobre o novo livro, o antigo chefe de Estado e de Governo afirmou que em 28 anos de Conselho de Estado não se lembra de um primeiro-ministro ter ficado em silêncio — como fez António Costa na última reunião — e diz mesmo que essa atitude “não é normal“.

Cavaco Silva considera “esquisito” que, após os acontecimentos com o ministro das Infraestruturas João Galamba, tenha “continuado tudo na mesma na segunda-feira” seguinte. Avisa os “ministros e primeiros-ministros” de que “há que ter cuidado com a mentira” porque “a mentira corrói”. Faz, porém, elogios a um ministro de António Costa: José Luís Carneiro, que considera uma “pessoa de bom senso”.

O antigo chefe de Estado avisa ainda que um primeiro-ministro “nunca ganha” em estar em conflito com um Presidente da República. Diz, no entanto, que “nos termos constitucionais”, o Presidente da República tem “pouca margem” para impor a remodelação de um ministro. Critica ainda o facto de o Governo impor o Mais Habitação via Parlamento, após um veto do Presidente da República.

Já mais na pele de economista, Cavaco Silva alerta que, no século XXI, Portugal regista um empobrecimento relativo, em relação aos outros países, que é penoso”. O antigo Presidente afirma também que o “sonho português” de se aproximar dos países mais desenvolvidos está cada vez mais longe.

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Numa breve conversa à margem da entrevista, Cavaco Silva revelou ainda que acabou de ler recentemente o livro Pátrias, de Timothy Garton Ash, e que tem visto alguns filmes franceses na Netflix, embora se vá dispersando por várias plataformas de streaming, como a HBO, a Disney+ ou a Amazon Prime. O que continua a não dispensar é assistir aos documentários de David Attenborough, que não se importa de ver e rever.

[Veja aqui na íntegra os melhores momentos em vídeo da entrevista com Aníbal Cavaco Silva]

“Enviei um exemplar ao senhor primeiro-ministro, que ele me agradeceu”

O Primeiro-Ministro e a Arte de Governar” é o seu 25.º livro. Todos os livros que publica têm um grande impacto. Já está a preparar o próximo?
Preparar um novo livro? Não. A publicação deste livro estava na minha cabeça há muito tempo. Principalmente porque notava que em Portugal se fazia muita análise daquilo que o primeiro-ministro faz no seu dia a dia, mas havia uma falta de análises sobre aquilo que um primeiro-ministro deve fazer. Aquilo a que se chama a análise normativa, em que, como é normal neste tipo de análises, entram os juízos de valor, os juízos éticos. E decidi aventurar-me numa área que não é da minha especialidade. Tive que fazer um esforço de estudo, de consulta e de pesquisa, quer da bibliografia de ciência política no nosso país, quer nos países anglo-saxónicos.

Neste livro, aponta caminhos para o que deve ser a atuação de um primeiro-ministro. Enviou-o ao atual primeiro-ministro?
O primeiro-ministro, neste momento, já conhece o livro. Devo revelar aqui que, logo que o livro esteve disponível, enviei um exemplar ao senhor primeiro-ministro, que ele me agradeceu. Aliás, devo dizer que, contrariamente ao que muitos pensam, tenho uma relação pessoal normal com o senhor primeiro-ministro atual. É sabido — ele sabe, eu sei — que temos divergências políticas profundas. Mas, neste livro, acima de tudo, queria deixar à opinião pública em geral, e principalmente àqueles que têm a missão de escrutinar o exercício das funções do primeiro-ministro, uma reflexão sobre quais são as competências que constitucionalmente estão atribuídas ao primeiro-ministro. São competências muito vastas que eu noto que, com frequência, os cronistas e os analistas esquecem. Nos termos da Constituição, cabe ao primeiro-ministro dirigir o governo, dirigir a política geral do governo, coordenar e orientar todos os ministros, escolher todos os ministros e secretários de Estado para propor ao Presidente da República — e todos os ministros e todos os secretários de Estado respondem perante o primeiro-ministro.

"O primeiro-ministro, neste momento, já conhece o livro. Devo revelar aqui que, logo que o livro esteve disponível, enviei um exemplar ao senhor primeiro-ministro, que ele me agradeceu. Aliás, devo dizer que, contrariamente ao que muitos pensam, tenho uma relação pessoal normal com o senhor primeiro-ministro atual."

Ler o livro pode ser útil para o atual primeiro-ministro?
Espero que existam muitos leitores. Nesta minha intervenção cívica depois de terminar o meu mandato de Presidente da República, penso muito nas gerações mais novas e no seu futuro. Porque, de acordo com as minhas análises, as perspectivas de desenvolvimento económico e social do nosso país, a médio e longo prazo, não são positivas. E serão as gerações mais novas que irão ser prejudicadas — aquelas gerações que têm de aguentar o Estado social e pagar toda a dívida que se acumulou ao longo do tempo. Talvez nesta minha atitude de preocupação com os mais jovens esteja o facto de eu ter cinco netos e acompanhar de perto o seu percurso de estudo e de trabalho.

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Durão Barroso fez a apresentação do livro e há dias, numa entrevista, o senhor disse que ele fez muito bem em aceitar o cargo de presidente da Comissão Europeia, mesmo tendo que deixar o lugar de primeiro-ministro. Caso surgisse hoje uma hipótese de o atual primeiro-ministro ir para um cargo deste género isso seria útil também para o país?
Nesta entrevista, não gostaria de falar sobre a atividade atual do senhor primeiro-ministro, nem tão pouco especular sobre aquilo que pode vir a fazer no futuro. Neste livro, fiz um grande esforço para me colocar na posição do investigador e fazer uma reflexão séria. Introduzindo opiniões subjetivas, como é normal nas análises normativas, mas procurando afastar-me o mais possível do que foi a minha própria atuação como primeiro-ministro durante dez anos. Tenho de confessar que fui influenciado pelo fato de ter sido ministro das Finanças e do Plano de Francisco Sá Carneiro — e aprendi muito com Sá Carneiro. Quando cheguei a ministro, não tinha a mínima experiência política. E também quando cheguei a primeiro-ministro tinha pouca experiência política, por isso tive que aprender muito. E Sá Carneiro ensinou-me muito sobre a forma como me devia comportar no exercício das funções de primeiro-ministro.

O meu ponto era saber se um primeiro-ministro, perante uma possibilidade dessas, deve ponderar se é bom para o país ir para um alto cargo europeu.
Num capítulo do ensaio sobre o primeiro-ministro e a arte de governar, abordo a questão das relações do primeiro-ministro com a União Europeia, como membro do Conselho Europeu e como personalidade que tem uma relação privilegiada com a presidência da Comissão. Eu acho que Portugal deve ser sempre um aliado da Comissão Europeia. E, aí, há duas tarefas fundamentais. Primeiro, como é óbvio, traçar as linhas gerais da defesa dos interesses nacionais — e garantir que essa orientação seja bem absorvida pelos senhores ministros, que são membros do Conselho de Ministros da União Europeia, que tem competência legislativa e orçamental partilhada com o Parlamento Europeu. Em segundo lugar, o primeiro-ministro deve dar aos seus ministros orientações sobre o aprofundamento e a melhoria da construção europeia, dado que é um projeto inacabado, principalmente no que se refere à União Económica e Monetária. Isto apesar de terem sido conseguidos alguns avanços na sequência da crise financeira internacional de 2008 e depois da crise da dívida soberana entre 2011 e 2013. A possibilidade de resgate de países com dificuldade de acesso aos mercados financeiros internacionais ou a criação da União Bancária foram avanços importantes. Mas tenho escrito artigos académicos a defender uma função de estabilização macroeconómica, com a Zona Euro como um todo a assumir a responsabilidade de responder a crises económicas que atinjam todos os membros e também às crises económicas que possam atingir especificamente o país A, B ou C. Portugal sempre defendeu que a União Europeia devia ter uma competência de ajudar a estabilizar aquelas economias de países que são atingidos por choques assimétricos. Por exemplo, Portugal é um país que depende muito do turismo. Uma crise que atinja muito a procura que se dirige para Portugal tem um efeito muito negativo sobre o crescimento económico e o bem-estar dos portugueses. Por isso, digo que o primeiro-ministro tem uma responsabilidade muito grande como membro do Conselho Europeu. E essa presença abre-lhe a porta para intervenções influentes no plano externo que não teria se Portugal não fizesse parte da União Europeia e, em particular, da Zona Euro.

"Não quero pronunciar-me sobre aquilo que foi do conhecimento de todos. Corroboro aqueles que disseram que não é normal. Devo dizer que, nos meus 28 anos de Conselho de Estado, não me recordo de uma situação dessas. Mas o senhor primeiro-ministro tem com certeza as suas razões, que eu respeito."

“Sente-se a falta do líder da oposição no Conselho de Estado”

Escreve no livro o seguinte: “O primeiro-ministro deve marcar presença em todas as reuniões dos órgãos políticos de consulta do Presidente da República, entre eles o Conselho de Estado”. Além de simplesmente estar presente, qual deve ser a atitude do primeiro-ministro nessas reuniões? Deve esclarecer dúvidas e críticas ou pode simplesmente ficar em silêncio?

A função do Conselho de Estado é apoiar o Presidente no exercício das suas funções como órgão de consulta. Já participei em Conselhos de Estado durante 28 anos. Portanto, tenho uma experiência muito longa no Conselho de Estado, num tempo em que esse órgão foi fundamental para a resolução de algumas questões importantes: Macau e Timor, por exemplo, foram muito discutidos no Conselho de Estado. O primeiro-ministro deve, nas suas intervenções, mostrar que está melhor informado que todos os outros membros do Conselho.

E deve ficar em silêncio?
Não quero pronunciar-me sobre aquilo que foi do conhecimento de todos. Corroboro aqueles que disseram que não é normal. Devo dizer que, nos meus 28 anos de Conselho de Estado, não me recordo de uma situação dessas. Mas o senhor primeiro-ministro tem com certeza as suas razões, que eu respeito.

Como primeiro-ministro, nunca ficou calado no Conselho de Estado?
Não, não, não. Eu fazia intervenções bastante longas no Conselho de Estado. Mesmo no meu tempo como Presidente da República, o Conselho de Estado desempenhou um papel muito importante, por exemplo, quando foi a crise da TSU. Em boa parte, foi alinhavada uma solução para a crise da TSU no Conselho de Estado. Mas havia uma diferença importante em relação ao Conselho atual: estava lá o líder da oposição. Isso faz uma grande diferença. Estava lá o Dr. António José Seguro. Lamento muito que não esteja no Conselho de Estado o líder da oposição — sente-se a falta dele. Isso não é uma responsabilidade do Presidente da República.

"À medida que o tempo passa, acho que o bom senso é cada vez mais importante. Se um ministro tiver bom senso, há 50% de probabilidade de ser um ministro razoável. Menciono num desses artigos alguns ministros que revelaram falta de bom senso. Mas não quero dizer que não existam ministros neste governo com bom senso. Por exemplo, acho que o senhor ministro da Administração Interna parece uma pessoa de bom senso."

No livro, fala também sobre a importância de haver um número dois no governo. A dada altura, na fase final dos seus mandatos como primeiro-ministro, tentou mesmo ter a figura do vice-primeiro-ministro — mas o então Presidente da República, Mário Soares, não permitiu.
Sobre o exercício das minhas funções, quer como ministro das Finanças, quer como primeiro-ministro, quer como Presidente da República, eu prestei contas. Deixei tudo escrito em detalhe. E em detalhe porquê? Porque tenho uma qualidade que poucos outros políticos têm: é que aprendi estenografia. Como vim do ensino técnico, a forma de continuar os meus estudos na universidade foi passar do curso geral do comércio, em Faro, para o Instituto Comercial de Lisboa. Tirei o diploma de contabilista antes de entrar na universidade e aí aprendi estenografia. O que significa que, numa reunião, eu era capaz de registar praticamente tudo aquilo que eu dizia e aquilo que o meu interlocutor dizia. E, portanto, há de reparar que os meus livros de memórias — ou de prestação de contas, como gosto de dizer — são muito detalhados. Isso acontece pelo facto de eu tirar todos esses apontamentos. Logo que terminava a reunião, eu fazia uma gravação de tudo isso e uma secretária imediatamente transcrevia. E isso foi fundamental para que eu escrevesse as minhas memórias. E digo aos portugueses que aquilo que está lá escrito foi exatamente aquilo que se passou e que eu registei na hora. Por isso é que não quero entrar neste momento na análise daquilo que fiz ou deixei de fazer. Fui aprendendo ao longo do tempo no cargo — este ensaio é sobre aquilo que “deve ser”. Depois, no livro, além desse ensaio, tenho alguns artigos publicados que são críticos em relação ao atual governo. Falo, por exemplo, das qualidades necessárias para se ser membro do governo. E até sublinho três em particular: competência política, competência técnica e bom senso. À medida que o tempo passa, acho que o bom senso é cada vez mais importante. Se um ministro tiver bom senso, há 50% de probabilidade de ser um ministro razoável. Menciono num desses artigos alguns ministros que revelaram falta de bom senso. Mas não quero dizer que não existam ministros neste governo com bom senso. Por exemplo, acho que o senhor ministro da Administração Interna parece uma pessoa de bom senso. Como dizia, mencionei no livro três casos onde houve uma clara manifestação de falta de bom senso: do ministro das Infraestruturas [Pedro Nuno Santos]; da secretária de Estado [Patrícia Gaspar] que falou sobre o algoritmo dos incêndios na Serra da Estrela; e, o exemplo máximo, a senhora ministra da Agricultura [Maria do Céu Antunes], na resposta que deu à CAP.

"Nunca tentei impor mudanças no elenco governativo a um primeiro-ministro. Mas, antes de tomarem posse, sempre tive a oportunidade de discutir com os primeiros-ministros o elenco que me era proposto, quer nos ministros, quer nos secretários de Estado. Só que tinha a consciência clara de que, depois de dar posse, só perante uma proposta escrita de exoneração de um ministro ou de um secretário de Estado é que eu podia atuar."

Na parte normativa do livro, indica que o primeiro-ministro não deve hesitar em fazer uma remodelação quando entende que há uma falta de bom senso ou outro erro grave da parte dos ministros. Ocupou o cargo de primeiro-ministro e o cargo de Presidente da República, por isso, pergunto-lhe: quando um primeiro-ministro não faz uma remodelação nessas alturas, que margem é que um Presidente tem para o pressionar a agir?
Nos termos constitucionais, tem pouca margem para impor uma mudança no governo. É conhecido que o Presidente Jorge Sampaio terá convencido o então primeiro-ministro António Guterres a fazer uma mudança no governo.

O ministro Armando Vara…
Nunca tentei impor mudanças no elenco governativo a um primeiro-ministro. Mas, antes de tomarem posse, sempre tive a oportunidade de discutir com os primeiros-ministros o elenco que me era proposto, quer nos ministros, quer nos secretários de Estado. Só que tinha a consciência clara de que, depois de dar posse, só perante uma proposta escrita de exoneração de um ministro ou de um secretário de Estado é que eu podia atuar. Um primeiro-ministro deve ter a coragem de agir, pondo de lado todas as amizades pessoais. Em caso de violação de princípios éticos fundamentais, de atitudes mentirosas persistentes, da falta de lealdade, de linguagem grotesca, de não cumprimento do programa do governo, um primeiro-ministro não pode hesitar. Por isso, entendi que, quando o senhor ministro das Infraestruturas autorizou que fosse feito um despacho sobre o aeroporto, o o primeiro-ministro devia demiti-lo na hora. Porque há duas coisas fundamentais para o exercício da função de primeiro-ministro. Uma é a legitimidade — e a legitimidade deriva do ato eleitoral. A outra é a autoridade — e a autoridade cultiva-se todos os dias. E exerce-se, por exemplo, quando se decide ou não demitir um ministro. Porque, acima de tudo, entre eles há uma relação de confiança. E há razões que devem levar um primeiro-ministro a perder a confiança num ministro. Quando isso acontece, é negativo para o país e para o governo manter esse ministro.

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Caso Galamba. “Foi tão esquisito. Ultrapassou tudo o que se podia imaginar. E continuou tudo na mesma na segunda-feira”

Só para esclarecer: quando há pouco falou no ministro das Infraestruturas [que já não devia estar no cargo] referia-se ao anterior ou também ao atual?
A função do primeiro-ministro tem de ter em conta o sentido de Estado e a dignidade do exercício da função. Portanto, é fundamental que ele em permanência demonstre aos portugueses o seu sentido de Estado e a dignidade do exercício do poder. E ele é que tem de fazer o julgamento político sobre se deve demitir este ou aquele ministro. Esse assunto [de João Galamba] foi tão debatido. Foi tão esquisito, ultrapassou tudo o que se podia imaginar. Tendo em conta tudo o que foi descrito na comunicação social, tenho dificuldade em imaginar que tal pudesse acontecer num Governo e que tudo continuasse na mesma na segunda-feira.

"Tendo em conta tudo o que foi descrito na comunicação social [sobre o caso Galamba], tenho dificuldade em imaginar que tal pudesse acontecer num Governo e que tudo continuasse na mesma na segunda-feira."

Ainda sobre este processo de seleção, também escreve no livro que, para reduzir os riscos na escolha do ministro, o primeiro-ministro deve informar-se, até através de contactos informais prévios. Para percebermos melhor os critérios a que se refere: alguém ser arguido é um critério para não integrar o governo?
Compete ao primeiro-ministro fazer o escrutínio político, técnico e pessoal daqueles que convida para o exercício das funções de ministro. Mas não vamos pensar que o primeiro-ministro conhece em detalhe tudo sobre o passado da pessoa que constava da sua lista para convidar para ministro. Portanto, o primeiro-ministro pode enganar-se, mas tem de ter a coragem de, quando concluir que se enganou, propor ao Presidente da República a sua demissão. Portanto, a responsabilidade da escolha dos membros do governo é exclusivamente do primeiro-ministro. Ele não pode fugir a essa responsabilidade, tal como é da sua exclusiva responsabilidade a avaliação do trabalho de cada um dos ministros. O julgamento do primeiro-ministro é fundamental e eu tenho que respeitar, podendo, no entanto, discordar das decisões de um primeiro-ministro. E não estou apenas a pensar no atual, pois [no livro] também procurei acompanhar o comportamento dos seis primeiros-ministros que se seguiram a mim.

"O  primeiro-ministro pode enganar-se na escolha de um ministro, mas tem de ter a coragem de, quando concluir que se enganou, propor ao Presidente da República a sua demissão."

Fala também dos excessos de linguagem.
Uma das coisas que mais me tem perturbado é a linguagem que atualmente se utiliza no combate político, muitas vezes grotesca e, às vezes, caluniosa mesmo. Lidei com nove líderes da oposição enquanto primeiro-ministro e as nossas relações foram sempre de cordialidade. Nunca houve uma manifestação de falta de educação. Houve sempre uma linguagem correta, que pode ser testemunhada por qualquer um desses nove com quem trabalhei. E por isso é que eu digo que o debate político precisa de ser renovado no bom sentido, ganhar substância, transparência e também urbanidade.

Portanto, um primeiro-ministro referir-se a um partido da oposição e descrevê-lo como “queques que guincham”, por exemplo, não é uma forma urbana de debater.
Eu citei esse caso, mas não me peça para repetir agora.

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No livro, fala da importância do recato no uso da palavra pública porque existe sempre o risco de os cidadãos deixarem de prestar atenção à palavra dos agentes políticos. Usar demasiado a palavra publicamente é mais prejudicial, em tese, para um primeiro-ministro ou para um Presidente da República? Quem é que fica mais prejudicado?
Sobre a figura do Presidente da República não escrevi um livro, escrevi sobre a figura do primeiro-ministro. Tomando como ponto de partida “Os poderes do Presidente da República“, um livro que penso que foi encomendado pelo doutor Mário Soares a Gomes Canotilho e Vital Moreira, fiz a minha reflexão sobre qual deve ser o comportamento de um primeiro-ministro nas suas relações com o Presidente da República. O que digo em geral, para ministros e primeiros-ministros, é que o uso excessivo da palavra desgasta. E, portanto, o primeiro-ministro deve ser comedido. Mas no livro deixei totalmente de lado a atuação do primeiro-ministro como líder partidário porque complicava muito a minha reflexão. Portanto, tratei apenas do primeiro-ministro no seu exercício do poder, com as competências que derivam da Constituição. Mas ele [o primeiro-ministro] deve ter muito cuidado com a transparência, com a verdade. A mentira corrói. E, portanto, quer nos ministros, quer nos primeiros-ministros, há que ter cuidado com a mentira. Em Portugal houve uma semana em que a comunicação social só falava da mentira deste e daquele ministro e ficou tudo na mesma. O uso da palavra pública é muito importante em democracia. Desde logo, a palavra no Parlamento, que deve ser o palco fundamental para a prestação de contas ao órgão que tem a responsabilidade para a fiscalização do governo. Mas também na explicação das políticas aos portugueses em geral, o caminho que está a seguir e o caminho que se propõe seguir. Por isso, defendo que um primeiro-ministro não pode ficar fechado no seu gabinete em Lisboa, deve contactar com a população e procurar ouvir. Deve ser uma qualidade fundamental do primeiro-ministro ouvir os agentes locais, mas também especialistas em determinadas áreas que o possam aconselhar sobre o que deve ou não fazer nessas matérias, principalmente com um perfil técnico.

"A mentira corrói. E, portanto, quer nos ministros, quer nos primeiros-ministros, há que ter cuidado com a mentira."

Mas não apenas técnico.
Além de ter também, como eu tinha, um núcleo restrito de aconselhamento com pessoas destacadas do partido e até do governo, que com todo à vontade e transparência, sem estar com a formalidade própria de um Conselho de Ministros, possa dizer cara a cara ao primeiro-ministro: “Isto não está bem, isto também não está bem, deve-se fazer isto ou fazer aquilo”. Depois, a importância das reuniões gerais com todos os membros do governo, que o primeiro-ministro, em minha opinião, deve fazer a cada três, quatro, cinco ou seis meses para reforçar a confiança, para apontar caminhos, para dar ânimo. Porque, às vezes, os ministros podem ir um pouco abaixo com a crítica que vem da oposição ou das plataformas mediáticas, que agora são às vezes muito agressivas, tal como a comunicação social. E tem que se dar a oportunidade aos ministros de falarem livremente com primeiro-ministro nessas reuniões gerais.

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“O primeiro-ministro não ganha no confronto com o Presidente da República”

E quando há um conflito entre um primeiro-ministro e um Presidente da República, como é que um primeiro-ministro o deve gerir?
O primeiro-ministro deve fazer o possível para evitar que o Presidente da República atue de forma a impedir a concretização do programa de Governo. Deve ser muito cuidadoso nas reuniões e no diálogo que mantém com o Presidente da República. Um caso que se põe com muita premência é o da legislação, em que o Presidente da República tem o poder de veto. E aí o primeiro-ministro deve dar instruções ao ministro da Presidência e ao secretário de Estado da Presidência para uma permanente disponibilidade para esclarecer a Presidência da República e, dessa forma, convencer o Presidente da República a promulgar os diplomas. Fiz isso, com muita frequência, com o doutor Mário Soares e muitas vezes o convenci, não só pela documentação que fornecia, mas pelas minhas explicações. Mas podem surgir situações em que se torna inevitável posições divergentes. Como é sabido, o primeiro-ministro tem um instrumento que deve evitar utilizar, que é transformar o diploma em proposta de lei e apresentar à Assembleia da República. E utilizar a sua maioria [para impor a lei], como foi agora o caso do programa Mais Habitação. E, nesse caso, o Presidente da República é obrigado a promulgar. Tive um único caso assim, com o estatuto dos Açores, mas depois as coisas resolveram-se porque o Tribunal Constitucional deu-me razão em tudo aquilo que eu defendia.

Isso aconteceu na altura em que José Sócrates era primeiro-ministro…
O primeiro-ministro deve evitar essas situações de conflito com o Presidente da República.  O primeiro-ministro não ganha no confronto com o Presidente da República.

Não ganha?
Exceto em casos muito extremos. O Presidente da República, em Portugal, embora muitos pensem que tem só uma função de cerimónias protocolares, é eleito por sufrágio universal e, portanto, é normal que tenha as suas opiniões e que as possa expressar em público.  Aliás, a Constituição diz que o Presidente da República deve tomar posição em caso de emergências no país. E com certeza que isso aconteceu quando houve a pandemia de Covid-19. Portanto, o primeiro-ministro tem a obrigação de respeitar a palavra do Presidente e não deve criticá-lo em público. E deve dar instruções também aos seus ministros e aos seus colegas de partido para evitarem escrever artigos ou fazer declarações a criticar posições que o Presidente tenha tomado. Admito que o primeiro-ministro possa discordar do Presidente da República em casos desses, mas deve expressá-lo numa conversa telefónica ou na quinta-feira seguinte, em que o primeiro-ministro diga: ‘Eu discordei e discordo do senhor Presidente e vou dar-lhe as minhas razões.’

"O primeiro-ministro tem a obrigação de respeitar a palavra do primeiro-ministro e não deve criticar o Presidente da República em público."

Defende isso porque, normalmente, em caso de conflito entre o primeiro-ministro e o Presidente da República, quem perde mais é o primeiro-ministro?
Na minha opinião, sim. Contrariamente ao que dizem, tive sempre uma relação bastante cordial e de respeito mútuo com o doutor Mário Soares. Ele tinha algumas posições diferentes das minhas e às vezes tomava posição pública, mas eu evitei sempre, em público, fazer críticas ao doutor Mário Soares. Falava com ele com muita abertura e dizia: ‘Discordei disso, disto e daquilo.’ Mandava-lhe bilhetes. Enviei já os meus arquivos de primeiro-ministro para a Presidência da República, que recolhe os arquivos dos ex-Presidentes, e está lá muita correspondência escrita à mão por mim e por Mário Soares.

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“O que retive das eleições na Madeira foi uma profunda derrota do Partido Socialista”

No livro escreve, a certa altura, sobre governos de coligação e defende que o primeiro-ministro e líder do partido mais votado deve exigir ao partido mais pequeno que vá para o governo.  Nós agora tivemos um caso na Madeira — que não tem as mesmas características do Governo da República — em que o acordo pós-eleitoral foi feito sem entrada no Governo de um dos partidos. É  possível resultar?
O governo nacional é uma coisa, governo de regionais são outra. A única coisa que retive das eleições na Madeira foi uma profunda derrota do Partido Socialista. E até me surpreendeu um pouco que um partido, neste caso uma coligação, com mais de 40 anos de poder, ainda consiga um resultado tão extraordinário.

"Considero-me um político que caiu de surpresa na política."

Numa entrevista que o Observador fez há uma semana a Miguel Albuquerque, ele elogiou o professor Cavaco Silva como um “grande político”, apesar de dizer que não é político. Considera-se um político ou não?
Considero-me um político que caiu de surpresa na política, quando fui eleito presidente do Partido Social Democrata, em maio, no Congresso da Figueira da Foz. E depois procurei atuar de forma a que, tendo Portugal acabado de entrar dentro da União Europeia, conseguisse os melhores resultados para o desenvolvimento económico, social, ambiental e cultural. O Jacques Delors até disse mais do que uma vez que Portugal era o bom aluno porque nós conseguimos rapidamente deixar de ser comparados com a Grécia e conquistámos muito rapidamente credibilidade dentro da União Europeia. A credibilidade é algo fundamental e decisivo dentro da União Europeia e um primeiro-ministro deve cuidar muito da credibilidade. Até cito um livro em que um autor diz que a credibilidade no campo económico é fundamental para vencer dentro da União Europeia. Por causa dos défices excessivos, por todo o debate que pode ocorrer para conseguir apoios especiais, como foi este caso da Next Generation European Union, a bazuca, como se chama em Portugal, dos 750 milhões. E aí a função do primeiro-ministro é decisiva para manter dentro da União Europeia a imagem de um país credível e de um país que não está sempre a pensar — ou a pensar quase exclusivamente — nos seus próprios interesses, mas que pensa no interesse global da União Europeia. Nada de comportamentos egoístas, nada de dizer: “Estou aqui só para conseguir benefícios para mim”. O país tem de pensar na União Europeia como um todo. É na União Europeia e na Zona Euro que Portugal pode realizar melhor as suas ambições, embora eu pense que, neste momento, o sonho português de se aproximar aos níveis de desenvolvimento dos países mais avançados da União Europeia está cada vez mais longe. Custa-me bastante constatar isso mesmo. Em 2002, Portugal ocupava a 15.ª posição entre os 27 Estados-membros em termos de desenvolvimento medido por rendimento per capita. Neste momento está na 22.ª posição. Portugal, ao longo deste século XXI, regista um empobrecimento relativo, em relação aos outros países, que é penoso. E até a comissária atual, Elisa Ferreira, por quem tenho muita consideração, já referiu isso mesmo. Apesar de todos os apoios, dos biliões que tem vindo a receber, muito mais do que aquilo que Portugal recebeu no tempo em que eu era primeiro-ministro, Portugal está a afastar-se mais deste sonho que nós tínhamos de estar próximo dos países mais desenvolvidos. É com tristeza que vejo Portugal na 22.ª posição. Só temos cinco países atrás de nós: a Grécia, que ainda está a pagar o custo do Syriza, um partido da altura parecido com a extrema-esquerda, a Eslováquia, a Letónia, a Croácia e a Bulgária.

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"Portugal, ao longo deste século XXI, regista um empobrecimento relativo, em relação aos outros países, que é penoso."

Estivemos a falar durante toda a entrevista sobre a primeira parte do livro, mas a segunda parte junta vários artigos, incluindo um célebre, que é o da boa moeda e da má moeda,  que disse que mantém a pertinência.  Qual é a má moeda que nos deve preocupar hoje em dia?
Esse artigo, que escrevi, se não me engano, em 2004, foi resultante da constatação de que a qualidade da classe política se vinha a degradar significativamente — e não era apenas eu que fazia essa constatação. Os quadros técnicos qualificados estavam a afastar-se da vida política e da vida partidária, por várias razões: desde logo, o prejuízo financeiro, mas também para livrar-se da exposição mediática da família, até dos amigos. E, portanto, pensavam que estamos na União Europeia, a democracia é uma garantia e podemos estar afastados da vida política e partidária. Pensei que isso era um erro e chamei a atenção. E, agora, o que é que nós constatamos? Se virmos, ouvirmos e lermos, percebemos que continua a degradação da atividade dos agentes políticos. Eu sublinhei a questão da falta de bom senso, mas não sou eu que o digo. Esse artigo da boa e da má moeda destaca que os políticos incompetentes afastam os competentes — porque controlam o aparelho partidário, a vida partidária, em que a concorrência não é leal e cada um tenta conquistar a sua posição.  Às vezes, começam como adjunto de um secretário de Estado, passam a consultor de um ministro e depois já estão a pensar que chegam a secretário de Estado e depois com certeza que pensam que chegarão a ministro. E, por aquilo que vemos, ouvimos e lemos, alguns deles acabam por chegar a ministros. E foi por isso que achei que, por aquilo que se constata e que é referido de forma muito generalizada, vale a pena recordar esse artigo.

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