Nunca foi plano B, é apenas um plano A antecipado. João Pereira é o novo treinador do Sporting, sucedendo a Rúben Amorim e estreando-se no comando técnico de uma equipa principal, e vai concluir aquilo que sempre foi o plano de futuro de Frederico Varandas – desde o momento em que o antigo lateral voltou a Alvalade, em janeiro de 2021.
Aos 40 anos, João Pereira vai sentar-se na antiga cadeira do amigo de infância de Rúben Amorim e pôr em prática a aprendizagem de três anos de Sub-23 e alguns meses de equipa B dos leões. Tal como acontecia com Amorim quando chegou ao Sporting, ainda não concluiu o nível IV do curso de treinador e terá de ser inscrito como adjunto, sendo que deve terminar a certificação ainda durante este ano (o que faz com que Tiago Teixeira assuma essa posição não só no banco mas também na zona de entrevistas rápidas).
Formado no Benfica e campeão nacional pelos encarnados, passou por Sp. Braga, Valencia, Hannover e Trabzonspor e somou três passagens pelo Sporting em três períodos distintos. Na terceira, que durou apenas a segunda metade da temporada 2020/21, foi contratado claramente para integrar a estrutura assim que terminasse a carreira – o primeiro passo de um plano que agora foi colocado em prática.
Ao Observador, Daniel Carriço e Hélder Postiga recordam o antigo companheiro e não conseguem esconder que nunca anteciparam que seria treinador. Lembram a exigência com o próprio rendimento e o do grupo, a boa disposição fora do relvado e a enorme competitividade dentro dele, e sublinham que será “inteligente” ao ponto de dar continuidade ao trabalho que estava a ser feito por Rúben Amorim.
De “mete-nojo” a senhor que se segue: um plano que Varandas sugerira há quatro anos
O vídeo tornou-se viral nas redes sociais nas últimas duas semanas. Em entrevista ao podcast “Maluco Beleza”, de Rui Unas, o Rúben Amorim de 2017 falou sobre o amigo João Pereira. Na altura, Rúben Amorim tinha terminado a carreira no Qatar no ano anterior e estava a começar a tirar o curso de treinador; João Pereira jogava, no Trabzonspor da Turquia, e ainda tinha três temporadas pela frente.
“O João Pereira, fora do campo, é um paz de alma. Dentro do campo é um ‘mete-nojo’! Conheço o João Pereira desde miúdo. Zangava-me com ele no campo. Mas depois ele sai e tem aquela coisa, aquele clique. Acaba o jogo e se for preciso espera por ti no túnel e diz-te: ‘Então, como é que estás?’. Parece que tem dupla personalidade”, dizia o próximo treinador do Manchester United há sete anos, longe de imaginar que estava a falar sobre o próprio sucessor no Sporting.
Rúben Amorim e João Pereira são amigos de infância. Conheceram-se nas camadas jovens do Benfica, em miúdos, e foram depois os maiores dos adversários quando o segundo representou o Sporting e o primeiro vestia a camisola dos encarnados. Em 2020/21, na última temporada da carreira do antigo lateral direito, quis o destino (e a vontade de Amorim) que se reencontrassem em Alvalade: João Pereira voltou ao Sporting depois de quatro anos na Turquia, fez cinco jogos e ainda foi a tempo de se sagrar campeão nacional com o amigo como treinador, naquela que foi também uma “homenagem” ao pai.
Na altura, nem o Sporting se esqueceu da tal entrevista de Rúben Amorim. No vídeo de apresentação de João Pereira nas redes sociais, o lateral aparece sério, a olhar em direção à câmara, antes de abrir um sorriso e soltar um muito intencional “Então, mano, como é que estás?”. Contudo, basta recuar até maio de 2020, pouco depois de Rúben Amorim trocar o Sp. Braga pelo Sporting, para perceber que o nome de João Pereira já faz parte do futuro dos leões há muito tempo.
Em maio de 2020, em entrevista ao Canal 11 e numa pergunta que até tinha Jérémy Mathieu como protagonista, Frederico Varandas lembrou-se de João Pereira – que tinha conhecido durante a segunda passagem do lateral pelo Sporting, quando ainda era apenas o médico dos leões – e garantiu “não ter dúvidas” de que este seria treinador. Questionado pelo jornal A Bola, João Pereira mostrou-se “orgulhoso” do comentário. Apenas quatro anos depois e sem mencionar diretamente o próximo treinador leonino, Frederico Varandas referiu-se ao eleito como “a peça chave para o projeto seguir em frente”.
Depois de acabar a carreira no Sporting como campeão nacional, em 2021, João Pereira integrou desde logo a estrutura leonina. Começou como adjunto de Filipe Pedro nos Sub-23, foi treinador principal do mesmo escalão nas duas temporadas seguintes e esta época tinha assumido a equipa B, que leva atualmente quatro vitórias em dez jornadas na Liga 3. No interior da Academia de Alcochete, sempre existiu uma certeza: João Pereira estava a ser ensinado, criado e moldado para ser o sucessor de Rúben Amorim. O plano, porém, só entrava em ação no próximo verão.
O “chatinho” que não gosta de perder “nem ao par ou ímpar”
Antes de ser treinador, como se sabe, João Pereira foi jogador de futebol. Natural do Casal Ventoso, bairro de Lisboa, deu os primeiros pontapés na bola no Domingos Sávio mas depressa integrou a formação do Benfica. Estreou-se pela equipa principal em 2003, pela mão de José Antonio Camacho e com apenas 19 anos, e deixou 85 jogos feitos pelos encarnados, com sete golos marcados e um Campeonato, uma Supertaça e uma Taça de Portugal no palmarés. Foi emprestado ao Gil Vicente, antes de sair a título definitivo para a equipa de Barcelos para depois rumar ao Sp. Braga, onde esteve dois anos e meio antes da primeira passagem pelo Sporting.
Deixou os leões em 2012 e teve as primeiras experiências internacionais, no Valencia e no Hannover, antes de voltar a Portugal e ao Sporting em 2015. Ganhou uma Supertaça e rumou à Turquia, onde acrescentou uma Taça turca com o Trabzonspor. Em janeiro de 2021, a meses de terminar a carreira, foi reforço de Rúben Amorim numa equipa que iria terminar o jejum de 19 anos sem o título de campeão nacional.
Foi ainda na primeira passagem pelo Sporting, porém, que se cruzou com Daniel Carriço. Ao Observador, o antigo central leonino que depois fez carreira essencialmente no Sevilha lembra João Pereira como um “apaixonado pelo futebol”. “Sempre que estamos juntos, entre amigos… É normal, ao estares tão focado e tão centrado no que é a tua tarefa enquanto treinador acabas por só pensar naquilo e só falar daquilo. É isso que está a acontecer com o João, desde que entrou na Academia, desde que começou este processo e esta evolução como treinador, que está completamente focado e obcecado. Faz parte da profissão. O João é uma pessoa extremamente profissional, muito dedicada. Já era enquanto jogador”, diz Carriço, que garante que não se recorda de falar com o amigo sobre a possibilidade de seguir a carreira de treinador.
“Desde que o conheço que o envolvimento no treino e a paixão pelo jogo estiveram sempre presentes. Mas nessa altura, numa fase ainda tão precoce, nunca falámos sobre isso, sobre a possibilidade de ele ser treinador. Claro que há sempre essa possibilidade, mas só se fala mais nos anos em que estamos prestes a terminar a carreira. Ele acabou por tomar essa decisão e acabou por dedicar-se e muito à profissão de treinador. Nas últimas vezes em que estive com ele percebi que está mesmo uma pessoa muito focada, apaixonado pelo futebol, e está completamente obcecado pela profissão”, acrescenta.
Daniel Carriço, que ganhou a Liga Europa em quatro ocasiões com o Sevilha e terminou a carreira em 2022 no Almería, recorda que João Pereira “liderava através do exemplo” e que a boa disposição que mantinha fora de campo contrastava com a personalidade mais aguerrida dentro das quatro linhas. Ainda assim, não esconde a faceta ultra competitiva do antigo companheiro, uma característica que diz ser “inata”.
“Fora do campo, o João é uma pessoa diferente. É uma pessoa alegre, divertida, que tentava fazer bom balneário. Mas aquele bichinho de competitividade é inato e estava ali sempre presente, é muito chatinho. Era sempre bom tê-lo na própria equipa, não era bom enfrentá-lo, porque ele é esse tipo de pessoa. Ele compete com tudo, não gosta de perder nem ao par ou ímpar. E isso passava cá para fora, essa agressividade que às vezes também extravasava e passava os limites, mas acredito que neste processo e nesta evolução na Academia tenha tentado gerir as coisas de outra forma, porque agora está do outro lado da barricada. É treinador, tem de dar uma imagem diferente e passar uma mensagem diferente aos jogadores”, sublinha o antigo central.
A tal “agressividade que às vezes também extravasava” tem sido uma das principais dúvidas associadas à promoção de João Pereira à equipa principal. O antigo lateral direito viu 12 cartões vermelhos ao longo da carreira, um deles já depois do jogo terminar por palavras, e enquanto treinador dos Sub-23 leoninos voltou a ser expulso noutras duas ocasiões. Para Daniel Carriço, porém, a dúvida é um não assunto.
“Ao longo dos anos vamos evoluindo e vamos aprendendo e acredito que com o passar dos anos o João tenha melhorado essa característica. Muitas pessoas ainda o veem assim, porque é a imagem que têm dele enquanto jogador. Mas como treinador é completamente diferente, está focado noutros detalhes e acredito que consiga passar a mensagem e que tenha essa preocupação de dar o exemplo aos jogadores. É o líder e os jogadores reveem-se muito no líder. Acredito que nestes últimos anos ele tem melhorado essa característica”, indica o antigo internacional português, que tem agora 36 anos.
Carriço acredita que João Pereira terá a “inteligência” de manter as rotinas e as dinâmicas que já existem na equipa que Rúben Amorim deixou, reconhece que o timing da mudança foi “inesperado”, mas tem a certeza de que o agora treinador do Sporting está “preparado”. “Por toda a bagagem que tem enquanto jogador, por estes últimos anos na Academia, que de certeza também foram muito úteis. O processo estava a ser preparado pela estrutura e pela Direção do Sporting”, lembra.
Com formação no Benfica e agora treinador do Sporting, o comparativo com Rúben Amorim devido à mudança de lado da Segunda Circular é fácil de fazer. Mas Daniel Carriço garante que são casos diferentes: João Pereira já é sportinguista há muito tempo. “Para além de ser um profissional e de dar a vida pelo clube que representa, acabou por criar laços e elos muito fortes ao clube. Hoje em dia, se alguém perguntar, o João diz que se sente sportinguista. Gosta mesmo do clube, sente as cores do clube de verdade e acho que hoje nem lhe passa pela cabeça voltar atrás e dizer que é do Benfica. Foram muitos anos de ligação, muitos elos criados ao longo dos anos e o João, neste momento, sente mesmo as cores do clube”, termina.
“Irritantemente competitivo”, mas com personalidades diferentes entre Sporting e Seleção
Se Daniel Carriço só partilhou o balneário com João Pereira em Alvalade, Hélder Postiga acrescenta outras duas paragens: o Valencia, onde coincidiram numa equipa que também tinha Rúben Vezo e Ricardo Costa, e a Seleção Nacional, já que o agora treinador foi internacional em 40 ocasiões e esteve no Euro 2012 e no Mundial 2014. Postiga tenta ser “diplomático” e não dizer diretamente que nunca pensou que João Pereira pudesse ser treinador – mas deixa escapar que acabou por ficar surpreendido com a decisão.
“É difícil projetar, enquanto somos jogadores, em que área é que nos vamos enquadrar. Há jogadores que dá para perceber logo, que perspetivamos que possa vir a ser treinador. Mas é difícil fazer futurologia. O que eu via no João era um jogador super competitivo, irritantemente competitivo, muito compenetrado, muito empenhado, que tinha essas características como as suas maiores capacidades. Projetar que ia ser treinador era difícil. Muitas vezes, vemos um perfil de jogador que depois é completamente diferente como treinador, na forma de estar, de falar”, indica o antigo avançado, que terminou a carreira em 2016 no Atl. Kolkata da Índia.
Hélder Postiga recorda João Pereira como alguém que não era essencialmente um líder, mas que era “exigente, com ele e com o grupo, de forma muito construtiva” – e não se esquece de fazer a destrinça entre o balneário do Sporting e os do Valencia e da Seleção, já que se “percebia que ficava mais confortável nuns contextos do que noutros”. Tal como Daniel Carriço, não vê o antigo lateral como alguém “agressivo”, apenas “irritantemente competitivo”, repetindo a expressão.
“Nas peladinhas gostava de festejar golos, gostava de festejar os cortes, irritava muito quem jogava contra ele. Tinha esse perfil. Mas não o via como alguém agressivo, mesmo dentro do grupo, era super tranquilo. Mas claro que as pessoas ficam com a imagem do jogador que está dentro das quatro linhas. Mas fora das quatro linhas é completamente diferente. Não podemos avaliar um jogador por aquilo que vemos dentro do retângulo de jogo. E seguramente que ele, ao dar este passo para ser treinador, vai ter de ser muito mais pausado, muito mais tranquilo nas suas decisões”, indica Postiga, que foi duas vezes campeão nacional com o FC Porto e também passou por Tottenham, Panathinaikos, Lazio e Deportivo.
O antigo internacional português também acha que João Pereira será “inteligente ao ponto de dar continuidade” ao que já está feito no Sporting, mas lembra que a sucessão foi pensada e planeada pelos leões e que o novo treinador é uma ferramenta de um projeto global. “O João está dentro do Sporting. E acredito que na estrutura do Sporting, Sub-23, equipa B, a própria formação e a equipa principal, existe um fio condutor daquilo que é a identidade do Sporting. Acho que o João já bebeu muita informação daquilo que foi feito nos últimos anos. Acredito piamente que são pessoas diferentes, formas de estar diferentes, mas o projeto está montado. Naturalmente, vai deixar a sua marca porque são pessoas distintas, pessoas diferentes, e isso é inevitável. Vai querer deixar a sua marca, criar uma marca de água daquilo que o João é como treinador”, termina.