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Não perguntem a Mayra Andrade sobre o futuro: perguntem-lhe o que ela quer cantar hoje

Viveu em Cabo Verde, Senegal, Angola, Alemanha e França. Em 2015 trocou Paris por Lisboa. Tem um novo disco e diz em entrevista: "Em Cabo Verde todos temos uma parte da família que não está".

Há um dia de que Mayra Andrade — cantora cabo-verdiana que coleciona moradas e carimbos no passaporte e que revela na próxima sexta-feira, 8 de fevereiro, o seu quinto álbum de estúdio, Manga — dificilmente se irá esquecer. Tinha 14 anos e estava vestida de branco, em casa, na cidade da Praia, Cabo Verde. Nesse dia, saiu da habitação com gotas a cair do cabelo, “naquela altura era super in usar o cabelo ainda molhado, com gotas a caírem”. Foi a correr para o Palácio da Cultura Ildo Lobo, na Avenida Amílcar Cabral, no centro histórico da capital de Cabo Verde. O entusiasmo foi o gasóleo da corrida: nesse dia, Mayra cantaria pela primeira vez em público, acompanhada por músicos. Estava vestida de branco porque “não sei porquê tinha essa panca, nos primeiros tempos vestia-me sempre de branco para os concertos”.

A marcação do concerto foi peculiar. Mayra Andrade já tinha cantado em contexto escolar. Aos 12 anos, aliás, apresentou-se a Cesária Évora, figura maior da música cabo-verdiana, dizendo-lhe que (já) era cantora. Dois anos volvidos, a oportunidade pareceu-lhe propícia. Tinha acabado de chegar a Cabo Verde vinda da Alemanha e “não conhecia ninguém”, mas uma das suas irmãs preparava-se para viajar para Lisboa e queria ouvi-la cantar. Foi o suficiente para voltar a ir buscar o atrevimento que tivera dois anos antes, na conversa com Cesária.

Mayra Andrade sabia que o Centro Cultural Francês (hoje, Instituto Francês) estava a organizar um concerto com artistas que tinham participado na gravação de um disco solidário. Com 14 anos e sem qualquer aparição pública como cantora fora da escola, Mayra não tinha obviamente participado no disco. Mas queria cantar.

A solução lógica foi pedir uma audiência ao diretor do Centro Cultural Francês. Perguntaram-lhe “então mas você quem é?”, “que idade tem?”, outras questões afins. Ela respondeu que era a Mayra Andrade, tinha 14 anos e queria cantar. Porquê? Porque cantava bem, porque a irmã estava na cidade da Praia, porque a irmã nunca a tinha ouvido cantar e queria vê-la atuar antes de partir em viagem.

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Mayra Andrade tem 33 anos e prepara-se para lançar o seu quinto álbum, 'Manga'. @ OJOZ

O “sim” foi inesperado. Disseram-lhe que não ia aparecer “nos cartazes” mas podia cantar, o que era o bastante. Se esteve para não o fazer foi porque aos 14 anos a lata convivia com uma rebeldia de adolescente: deu uma resposta típica “daquela fase” a uma pessoa que “trabalhava com a família”, que a recetora achou “insolent”, como hoje recorda utilizando a expressão francesa. Quando ficou a par da resposta torta, a mãe de Mayra Andrade disse-lhe: “Se não fosse pelo respeito que tenho pelo Centro Cultural Francês, não atuavas nem cantavas em lado nenhum, ficavas de castigo”.

Não ficou. Pouco antes do concerto, chegou a sua casa um primo que “adora conversar”. A adolescente tinha mais em que pensar: desde logo não ter músicos para a acompanharem nesse concerto coletivo que assinalaria a sua estreia em palco. Quis ir para o quarto, a mãe recusou: “Vais-te sentar e fazer sala ao teu primo”. Quando ali chegou, o tal primo percebeu de imediato que Mayra Andrade estava “triste”. Ela contou-lhe porquê: queria cantar mas não tinha músicos. De repente, surge uma solução: “Já falaste com o Angelo? Vou ligar já para o Angelo”.

Naquele dia, com 14 anos, Mayra Andrade cantou "Último Desejo", tema de Noel Rosa que ouviu num disco de Maria Bethânia, e "Les Portes de Paris", tema do musical Notre Dame de Paris. O público terá ficado surpreendido, ela estava confiante porque já se sentia cantora. Praticamente 20 anos depois, remata a memória com uma frase em suspenso: “A partir daí…”

Foi assim que Mayra conheceu o primeiro músico que a acompanhou em Cabo Verde, Angelo Andrade: através do primo. Juntos, com a companhia adicional de um flautista escocês que ali morava chamado Robert Pemberton, Mayra e Angelo ensaiaram duas ou três canções. As pessoas sabiam quem ela era: o meio que frequentava na Cidade da Praia era (ainda é) “pequenino”, quase toda a gente sabia quem era o seu pai e a sua mãe. Só não lhe conheciam o talento para o canto. Naquele dia, com 14 anos, Mayra Andrade cantou “Último Desejo”, tema de Noel Rosa que ouviu num disco de Maria Bethânia, e “Les Portes de Paris”, tema do musical Notre Dame de Paris. O público terá ficado surpreendido, ela estava confiante porque já se sentia cantora. Praticamente 20 anos depois, recorda essa primeira atuação em conversa com o Observador, no bairro do Intendente, em Lisboa, a sua nova morada desde 2015. Remata a memória com uma frase em suspenso: “A partir daí…”

“Em Cabo Verde, todos temos uma parte da família que não está”

“Se ca bado / ca ta birado”. A expressão, que o poeta cabo-verdiano Eugénio Tavares (1867-1930) cunhou e que se tornou quase um guia da vida de várias gerações de cabo-verdianos, diz muito a Mayra Andrade. É a própria que a cita, quase como súmula de um percurso feito “na itinerância”, que já a levou a viver em Cabo Verde (onde só não nasceu por mero acaso), Senegal, Angola, Alemanha, França e — desde 2015 — Portugal. “Significa: se não formos embora, não podemos voltar”, explica a cantora de 33 anos.

A permanente mudança de morada tem contornos mais culturais  do que apenas familiares, informa Mayra Andrade, nascida em Cuba, filha de um antigo combatente pela independência de Cabo Verde (muito jovem, alistado por convicção e não por obrigação) e de uma mãe que achou mais seguro fazer o parto noutro país, do qual Mayra regressou logo após o nascimento: “Quem vive em Cabo Verde está sempre muito sensibilizado com a questão da emigração, porque temos todos uma parte da nossa família que não está. As pessoas criam e alimentam os laços pelo convívio do dia-a-dia, mas também muito pela distância, pelas cartas, pelas encomendas, por quem chega de férias”.

"Com 17 anos não queria ir para Portugal por nada deste mundo. Era muito 'casa', ia ter a minha avó e as minhas tias a ligar... Era a opção mais fácil. Nunca quis as coisas mais fáceis."
Mayra Andrade

Paris, cidade que recentemente trocou por Lisboa, foi o local onde viveu mais tempo nos seus 33 anos de vida: Mayra Andrade mudou-se para lá no remoto ano de 2002, para estudar canto e porque ali via uma possibilidade de carreira internacional na música. Ficou até 2015. “Em Cabo Verde quem tinha possibilidade de fazer um curso universitário tinha de sair porque não existiam universidades. Agora já existem, há cada vez mais jovens que conseguem estudar em Cabo Verde, mas até há uns dez anos ou um bocadinho mais quem pudesse mandar os filhos tirar um curso superior tinha de os mandar para outro lado”, explica.

Os pais de Mayra Andrade, como os pais de outros cabo-verdianos nascidos até meados dos anos 1990 (ela nasceu em 1985) que tinham posses económicas para enviar os filhos para o estrangeiro, prepararam-se durante anos para a mudança de morada. A única dúvida à época era o destino: Mayra Andrade tinha família em Portugal, mas França pareceu-lhe a melhor opção, pessoal e profissional. “Estava fascinada com a ideia de viver sozinha e num sítio que não conhecia bem com 17 anos. Não queria ir para Portugal por nada deste mundo. Era muito ‘casa’, ia ter a minha avó e as minhas tias a ligar… Era a opção mais fácil. Nunca quis as coisas mais fáceis.”

[“Afeto” é um dos singles já revelados do novo álbum de Mayra Andrade:]

Se França foi decisiva no seu percurso artístico — foi aí que se tornou uma das grandes embaixadoras da música cabo-verdiana e da música africana, que editou álbuns como Navega (2006), Stória, Stória (2009), Studio 105 (2010) e Lovely Difficult (2013) –, mudar da capital francesa para a capital portuguesa em 2015 foi uma decisão “totalmente pessoal”, que teve pouco a ver com razões profissionais. “Era mesmo uma vontade de me sentir bem no sítio onde vivo, de estar feliz, de ter sol e proximidade com as pessoas.”

Mayra Andrade diz que sente que foi para Lisboa “no momento certo”, num “momento fantástico”. Dizem-lhe que na Baixa “há uns anos não se via uma alma viva”, a ela custa-lhe “acreditar”. O bairro do Intendente pareceu-lhe o mais apelativo: “Visitei casas em Lisboa toda e era o bairro onde me sentia mais feliz, sentia-me mais em casa”. É um dos bairros mais multiculturais da cidade, uma zona onde convive gente das mais diferentes nacionalidades, onde Mayra Andrade sente a proximidade com vizinhos e amigos que lhe faltava em Paris.

"Não gosto da palavra definitiva, dá-me logo vontade de ir para outro sítio. Formei-me na itinerância. Nunca imaginei que ficaria 14 anos em Paris, também não tenho ideia de quantos anos vou ficar cá [em Lisboa]."
Mayra Andrade

Atualmente, a cantora tem dificuldades em pensar “num sítio europeu onde me sinta melhor para viver” do que Portugal. Porém, tem também dificuldades em ver Lisboa como casa definitiva: “Ai, ai, ai… não gosto da palavra definitiva, dá-me logo vontade de ir para outro sítio. Formei-me na itinerância. Nunca imaginei que ficaria 14 anos em Paris, também não tenho ideia de quantos anos vou ficar cá. Ao mesmo tempo que tento ter alguma rotina na minha vida, porque ela não é nada rotineira, custa-me imaginar que se calhar daqui a um ano mudo-me para outro sítio. Mentalmente cansa-me. Gosto da liberdade, de não me fechar, estar aberta a experiências novas e ver até onde a vida me leva“.

Sentir-se-á Mayra Andrade parte da “Nova Lisboa” de Branko e Dino D’Santiago, já que é residente em Portugal e faz parte da comunidade de músicos em Lisboa que afirma cada vez mais as sonoridades de inspiração africana? “Esse conceito resulta de um percurso muito grande, do qual os Buraka Som Sistema foram atores muito fortes. Para mim está relacionado com a popularização das músicas do ‘ghetto’, das músicas dos bairros de Lisboa que têm essa inspiração, de gente que pegou nas suas raízes e com um som eletrónico criou uma nova música”, refere. “A música africana está em Portugal há décadas. Acho que Nova Lisboa refere-se a um movimento musical que não começou hoje mas se calhar chegou agora a um nível de aperfeiçoamento e maturidade. Há pessoas que porventura não ouvem kuduro puro mas conseguem ouvir o Dino D’Santiago, ouvir-me a mim, ao Branko, à Sara Tavares. Se a ideia é liberdade, então sim, faço parte da cena musical da Nova Lisboa”.

[“Nova Lisboa”, de Dino D’Santiago:]

“O meu avô tinha um barco que ajudou muita gente a emigrar”

É curioso — e sintomático do efeito que as constantes mudanças de morada tiveram em Mayra Andrade — que o novo álbum da cantora cabo-verdiana, Manga, editado ao fim de pouco mais de três anos em Portugal, tenha uma canção escrita pela cantora no início do seu período de vida em Paris. “Vapor Di Imigration” foi escrita “em 2002 ou 2003”, portanto três a quatro anos antes de Mayra Andrade editar o seu primeiro álbum. “Foi quando me mudei para França e sentia-me extremamente sozinha”, conta, logo acrescentando: “Falo ali da emigração da perspetiva do emigrante, de quem manda uma mensagem para a terra, dizendo que um dia as nossas mães não terão mais de chorar pelas nossas partidas e que essas lágrimas todas nunca regaram o nosso chão, porque a história da emigração em Cabo Verde está muito ligada à seca, à luta que é procurar uma vida melhor. Vivi dentro e fora de Cabo Verde mas sempre com a minha família. Nesta altura estava sozinha a viver em Paris…”

O tema “Vapor Di Imigrason” é uma das 13 canções do novo disco de Mayra Andrade e até foi pensado inicialmente como tendo um título mais longo: “Vapor Di Imigrason (Maria Sony)”. A cantora e compositora explica porquê: “Escrevi essa música a pensar no meu avô, o pai do meu pai, que era um homem muito querido em São Vicente e ajudou muita gente numa fase difícil. Tinha um barco que ajudou muita gente a emigrar. Decidi encurtar o nome para não confundir toda a gente nesta era do digital, mas dedico a canção ao meu avô, ao seu barco e aos emigrantes que andam pelo mundo”.

[“Vapor Di Imigrason”:]

Manga é também o álbum em que Mayra Andrade assume mais do que nunca a composição dos temas, além da interpretação das canções. A cantora escreveu oito temas, cantando ainda composições de Luísa Sobral (a interessante “Terra da Saudade”, inspirada num romance de Mia Couto e cuja letra aponta para outras paragens que não Cabo Verde, para uma terra distinta onde “ninguém dança”), Princezito, Ben-Hur Fidalgo, Tibau Tavares, Luís Gomes e Sara Tavares. O tema escrito pela cantora de “Coisas Bunitas”, que representou Portugal no Festival Eurovisão da Canção em 1994 com “Chamar a Música” e que tem ascendência cabo-verdiana, merece especial destaque: chama-se “Guardar Mais” e é de uma delicadeza e intimidade tocantes, com acordes de guitarra e piano lindíssimos e versos como:

“Não há crise que resista para sempre
quero ar
para dançar mais
se doer sopra calor
não há dor
que resista ao baloiço da vovó
Eugénia”

O mais curioso é que Sara Tavares “tinha esta canção na gaveta há não sei quantos anos, não sei porque não a gravou”, aponta Mayra, corroborando os elogios ao tema.

A descrição oficial do disco resume-o como “mistura de afrobeat, música urbana e ritmos tradicionais de Cabo Verde”. É “apropriada na medida do possível”, já que “as descrições são sempre aproximativas, principalmente quando se faz uma música tão híbrida”, refere Mayra Andrade. Confirma-se: Manga encanta tanto pelas batidas eletrónicas como pela delicadeza acústica, pelos cavaquinhos e ferrinhos mas também pelos sintetizadores, baixos, pianos e percussões, pelas canções em língua portuguesa e em crioulo cabo-verdiano, pelos ritmos mais dançantes e pelos momentos de maior acalmia e sussurros. Temas como o que dá título ao disco, o eletrónico “Pull Up”, o levemente melancólico (e especialmente belo por isso) “Kodé”, o encantador “Plena” (“Preencho o vazio / com mais vazio / encaro a espera / com impaciência”) ou o mais tribal e ritmado “Tan Kalakatan” estão aqui presentes e merecem todos os elogios.

A capa do quinto álbum de Mayra Andrade, com edição prevista para sexta-feira, 8 de fevereiro

O novo álbum começou a ser pensado depois de um “ano sabático”, revela Mayra Andrade: “Comecei a compor para o disco em finais de 2016, ao fim de um ano em que acumulei experiências. Não tinha a menor ideia do que ia fazer para o disco. Não tinha ideia nem queria ter, estava a deixar-me ir sempre com a confiança de que a vida me mostraria num determinado caminho”. Curiosamente, “a vida” mostrou-lhe não um, mas “dois rumos” — e eram opostos. “Durante um tempo quis fazer um disco assim e outro disco assado, não tinham nada a ver um com o outro. Com o tempo fui fazendo pesquisas, pesquisava a ouvia, procurava referências, projetava-me aqui e ali. Até que percebi que não era aqui mas também não era ali — isto não é um meio termo dos dois [discos projetados], é um outro caminho”, aponta.

As expetativas do público sobre músicos africanos: “Bora lá animar o povo”

A carreira de Mayra Andrade vai de vento em popa. O reconhecimento internacional não é novidade, mas é notório até pelas datas de concertos anunciadas para os primeiros meses de 2019. Só entre fevereiro e março, a cantora tem concertos marcados em França (oito, um dos quais na prestigiada sala parisiense La Cigale), Suíça (um, dia 21 de fevereiro, em Zurique), Portugal (1 de março no Cineteatro Capitólio, em Lisboa) e Angola (duas atuações previstas, a 16 e 17 de março, em Luanda). Em abril terá novos concertos em França (três), um concerto em Cabo Verde (a 13 de abril, no Kriol Jazz Festival, que decorre na sua cidade da Praia) e outro em Gdánsk, na Polónia. Daí para diante, não é previsível que o ritmo de atuações diminua muito.

[“Manga”, a canção single que dá título ao disco:]

A imposição de Mayra Andrade como figura central da música cabo-verdiana atual — que tem ainda outros embaixadores com ligação a Portugal como Dino D’Santiago, a já mencionada Sara Tavares e o emergente Cachupa Psicadélica — é antiga, mas não foi conseguida sem dificuldades. “Desde o início a minha proposta musical foi sempre muito diferente, no sentido em que era considerada uma artista tradicional mas estive sempre muito à margem da tradição, fui sempre atrevida nesse sentido”, recorda.

Há alguns anos, um músico cabo-verdiano disse-lhe para “não inventar”. O “protecionismo” relativamente à música tradicional existia mesmo, refere Mayra Andrade: “Notei que sim, por parte de alguns músicos mais velhos. Mas haverá sempre quem faça música tradicional. Tudo isso estimulou-me para fazer exatamente o contrário do que me estavam a sugerir”.

"Percebi que para mim e para muitos artistas que estavam na categoria world music havia pressão. Vi muitos que subtraíam parte da sonoridade deles para servir aquele propósito, aquele personagem, porque era 'aquilo que eles querem', que o público ocidental da world music esperava."
Mayra Andrade

Há sete anos, em entrevista à revista britânica The Economist, a cantora disse o seguinte: “Para os músicos africanos há sempre uma pressão para serem músicos tradicionais. O público tem certas expectativas sobre ti por seres africano/a — querem algo exótico. Mas conformar-se às expectativas de outros pode tornar isto insignificante com o tempo”. Hoje, diz: “Com jeito ou à força, se quisermos mesmo [singrar sendo diferentes] conseguimos, criando precedentes, colaborações e direcionando as coisas à nossa maneira. Falava aí do que senti. Percebi que para mim e para muitos artistas que estavam dentro da categoria world music havia pressão. Vi muitos que subtraíam parte da sonoridade deles para servir aquele propósito, aquele personagem, porque era ‘aquilo que eles querem’, que o público ocidental da world music esperava, então ‘bora lá animar o povo com aquilo’. Acho que temos de ser mais corajosos e afirmativos daquilo que somos. Devemos educar o público, que também precisa de ser educado”.

O espírito de resistência também ajudou Mayra Andrade a acreditar que poderia e deveria seguir um caminho próprio. A vivência na Alemanha, por exemplo, onde esteve entre os 11 e os 14 anos a estudar num colégio interno, foi uma espécie de preparação para o que se seguiu: “Foi difícil, ia para casa só aos fins de semana. É um país muito frio, mesmo em termos de clima. Geralmente os jovens e adolescentes também são um bocado cruéis uns com os outros e ali estava um bocado ‘sozinha na selva’. Mas preparou-me imenso, encontro sempre uma razão para as coisas e acho que foi uma preparação para a vida que comecei a ter a partir dos meus 17 anos. Aquilo forjou a minha independência a um nível máximo”, refere.

Mayra Andrade pela lente de OJOZ

A relação com Aznavour e “Cize” e um problema: “A sociedade gosta que uma mulher seja bonita”

Durante alguns anos, Mayra Andrade viu as comparações com Cesária Évora como uma espécie de elogio deselegante: “Era cansativo ter de estar sempre a explicar às pessoas que não era a sucessora, até porque a Cesária ainda estava pelo mundo a fazer concertos. Achava que era um bocado deselegante. Sempre vi isso como um elogio, porque no fundo estavam a ver em mim um potencial de carreira grande e considero a Cesária uma das maiores intérpretes. Achava era que [tentar ser igual] era um atalho um bocadinho fácil”.

"Lembro-me que a Cesária um dia mandou abrir uma sala em casa dela onde tinha todos os prémios que recebeu. Deixaram-me sozinha naquele sítio com uma canção dela a tocar. Eu chorava, chorava... estava super comovida como cabo-verdiana por ver o que aquela mulher tão humilde e tão próxima das pessoas tinha concretizado. Mostrava-me aquilo como uma criança que diz: vem ver o meu comboio elétrico".
Mayra Andrade

No início da carreira de Mayra Andrade, “alguns jornalistas franceses perguntaram à Cesária quem é que ela via como futuro da música cabo-verdiana — e citou-me”, refere. A relação entre as duas começou a estreitar-se quando Mayra venceu aos 16 anos uma medalha de ouro nos Jogos da Francofonia no Canadá e decidiu ir mostrá-la a Cesária como homenagem: “Fui lá prestar o meu tributo, foi aí que nos tornámos amigas. Ela chamava amigas dela de outros tempos para me contar histórias de mulheres e de coisas incríveis. Lembro-me que um dia mandou abrir uma sala em casa dela onde tinha todos os prémios que recebeu. Deixaram-me sozinha naquele sítio com uma canção dela a tocar. Eu chorava, chorava… estava super comovida como cabo-verdiana por ver o que aquela mulher tão humilde e tão próxima das pessoas tinha concretizado. Mostrava-me aquilo como uma criança que diz: vem ver o meu comboio elétrico”.

Depois, Mayra Andrade foi mantendo o contacto com Cesária. “Ao longo dos anos ela vinha para Paris, ligava-me, ia passar o dia com ela. Lembro-me de lhe dizer: Cize [diminutivo de Cesária], tu és a única pessoa a quem tolero estar fechada num apartamento a levar com fumo de cigarro o dia todo”, conta. Em 2010, viveu até um episódio com Cesária relacionado com o seu hábito tabágico, no aeroporto de Paris: “Íamos para a China e ela estava em pânico por passar tantas horas sem fumar. Decidiu que ia acender um cigarro dentro do aeroporto, à frente de um sinal que dizia que era proibido fumar. Depois de uns 30 segundos chega um segurança e ela finge-se aquela velhinha que não percebe nada do que se está a passar. Olhou para mim como quem diz: o que é que ele está a dizer? E eu lá lhe disse: é o cigarro, não pode. Ela a fazer-se muito surpreendida… era muito brincalhona, talvez das pessoas mais genuínas que podemos conhecer em Cabo Verde, não tinha filtros”.

Cesária Évora fotografada por Omar Camilo (Agência Lusa)

LUSA

Outra personalidade musical com quem Mayra Andrade teve um convívio marcante, em início de carreira, foi o cantor francês Charles Aznavour, que morreu há perto de quatro meses, com 94 anos. Em 2005, antes mesmo de lançar o primeiro álbum, Mayra recebeu uma chamada de Katia Aznavour, filha do cantor, que lhe pediu para ir a Lisboa “gravar uma coisa”. Pensou que seria uma simples maquete e disse que ia, que “não havia problema”. Desligou a chamada mas passado cinco minutos o telefone voltou a tocar: “Ela voltou a ligar-me a dizer: acho que não percebeste, o meu pai queria que gravasses um dueto com ele. E eu: um dueto com ele?! Como?!”, recorda.

Uma das reações instintivas de Mayra Andrade, depois daquele telefonema, foi ligar à mãe, para lhe contar que recebera o convite. Aznavour sugeriu-lhe uma canção e estiveram juntos na cabine do estúdio “frente a frente, a gravar as vozes”. Hoje, recorda “um senhor de uma elegância muito grande, de uma grande generosidade. Era um senhor de 80 e tal anos que me tratou a mim, uma miúda de 18, como uma artista. Mais tarde, foi ao concerto de lançamento do meu primeiro disco. Foi uma coisa super carinhosa”, recorda.

Aquilo de que Mayra Andrade já dificilmente se recordava era de ter sido questionada por um jornal diário português sobre se ter um “palmo de cara” — isto é, ser bonita — a tinha ajudado na carreira. Na altura, há oito anos, respondeu que “espera-se muitas vezes de uma cantora que ela tenha um ‘coeficiente-beleza’ suficientemente elevado. Isto é real e incomoda-me bastante”. Hoje, diz: “Estamos numa era do consumo do visual e do corpo, se calhar mais do que nunca. É muito fácil as pessoas exporem-se e darem ‘likes’ a coisas que são totalmente inventadas. Existe o consumo de um ideal de beleza que é brutal. Ao mesmo tempo, talvez em resposta a isso, começou a haver há uns anos um movimento de afirmação maior do corpo como ele é. Começou a aparecer uma ideia: sou bonita como sou, sou gorda e sou maravilhosa, sou negra e sou maravilhosa, o meu cabelo é crespo e é fantástico, não entro nos padrões de beleza e gosto disso”.

O entrave que não ser bonita ainda pode ser a uma afirmação profissional ou social não ocorre apenas no mundo da música, refere: “A sociedade gosta que uma mulher seja bonita e isso é um problema, porque bonito não quer dizer nada. Aos homens é perdoado serem mal-cheirosos e barrigudos e tornarem-se feios depois de casados. As atrizes e modelos também sofrem muito com isso, são obrigadas a tentar esticar ao máximo a juventude para poderem ter trabalhos e papéis interessantes. Isso é de um machismo enorme e é uma coisa horrorosa. Resumindo: esse problema continua a existir, mas há também um movimento em contraponto a isso que é de resposta. E é interessante”.

Só não peçam a Mayra Andrade para traçar aquilo que vai ser daqui a uma série de anos: “O meu som hoje não será necessariamente o meu som de amanhã. E no entanto vou ser eu hoje e vou ser eu amanhã. Às vezes perdemo-nos no caminho de querer encontrar um rumo novo. Mas é um risco, é a única forma que tenho de fazer música: sentir que estou sempre a dar um passo para a frente“.

[ao vivo no programa de Jools Holland, na BBC:]

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