Cinco anos após Manga, Mayra Andrade prepara-se para apresentar um novo disco. É um projeto paralelo aos seus trabalhos de originais, um registo ao vivo que assinala a tour especial que tem estado a fazer ao longo dos últimos dois anos. reEncanto chega a 11 de outubro e é um disco gravado em dois concertos na Union Chapel, em Londres, no Reino Unido.
Esta digressão foi feita apenas com a voz de Mayra Andrade e a guitarra de Djodje Almeida, músico que nos habituámos a ver a acompanhar Dino D’Santiago ou Slow J. Para o alinhamento, Mayra Andrade abdicou de alguns dos seus êxitos e escolheu apenas canções da sua autoria, dos vários discos que compõem a sua discografia, para as apresentar de forma nua e crua, despidas da instrumentação original e das muitas camadas sonoras.
O resultado, como descreve a cantora cabo-verdiana de 39 anos em conversa com o Observador, é um “disco para ficar”. “Está fora da minha cronologia discográfica, está fora do tempo, é para deixar um registo para a posteridade.” Ao mesmo tempo, serve para afirmar a sua maturidade artística, para a posicionar definitivamente como uma autora dos novos cânones e standards da música tradicional cabo-verdiana — com um pé nas sonoridades urbanas e pop da música global contemporânea.
Uma gravidez que serviu como epifania
reEncanto é um projeto que, acima de tudo, nasce com a gravidez de Mayra Andrade. “No momento em que estava a gerar uma vida dentro de mim, senti uma necessidade de estar neste aconchego, nesta intimidade com o público, e de me despir desses arranjos todos e de apresentar canções que haviam já nascido de mim ou, nalguns casos, em colaboração com outros. E quis apresentá-las de forma despida, nesta coisa muito íntima e pura que tem outra força e poder.”
Mayra Andrade descreve o momento em que se apercebeu de que queria apresentar as suas canções desta forma como uma “epifania”. Embora tivesse este registo de voz e violão no início da sua carreira, quando era muito nova, nos anos 2000, nunca se tinha apresentado perante o grande público neste formato.
[o minidocumentário sobre o álbum “reEncanto”:]
reEncanto começou por ser uma série de quatro concertos em Portugal. “Não queria chatices, não queria apanhar aviões, queria estar sentada, queria estar descalça porque me doíam os pés. O reEncanto nasceu para suprir o desejo de uma grávida, que também é compositora e artista, tem uma sensibilidade e achou que ela precisava de um palco para se expressar e para ser partilhada.”
Depois, à medida que ia fazendo os espetáculos, sentiu a vontade de partilhar esta performance com outros públicos, noutros dos países onde tem atuado com regularidade ao longo dos anos. Foram marcados perto de 15 concertos e, eventualmente, a cantora cabo-verdiana decidiu gravar um disco ao vivo nas duas atuações na Union Chapel. Não é um best-of da tour, mas antes “o registo de um momento”. E só faria sentido assim, tendo em conta o quão distintos foram todos os concertos.
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“Cada concerto foi uma experiência e uma viagem só. Pode ter uma cor laranja, lilás, vermelha… Foi diferente a cada um, por causa da minha energia naquele dia e da energia do lugar. Então, por uma questão de coesão, nunca pensei em gravar vários concertos. E apostámos naqueles porque a Union Chapel é conhecida por ter uma acústica incrível. E ser recebida numa igreja para este momento de partilha com o público… Logo no soundcheck percebemos que aquilo iria ser especial, já havia uma magia. Depois, estava enquadrado no festival de jazz de Londres, que fez o anúncio e esgotou logo, com muitos meses de antecedência. Anunciaram uma segunda data e também esgotou logo. Portanto, aquilo dá-te uma perceção de que as pessoas estão muito à tua espera, muito ansiosas pelo teu concerto.”
A sensibilidade e a emoção que marca uma fase da vida
Mayra Andrade tem hoje uma filha com um ano e meio, mas já era mãe durante o período da gravidez. Nessa fase, sentiu-se mais sensível do que nunca, e essas dimensões emocionais que até então lhe eram desconhecidas foram transportadas diretamente para o palco durante esta tour.
“Sinto que a minha filha participou ativamente na minha música, porque a sensibilidade de uma mulher grávida é algo que está completamente inacessível aos outros. É uma super-mulher em termos de energia, de conexão. Tudo aquilo que era preciso para este projeto. E não tenho dúvidas de que a minha própria voz ganhou algumas camadas, porque ela está diretamente ligada às minhas emoções. Durante a gravidez, mas também depois de parir. Considero-me uma cantora que sempre cantou com a sua emoção, com a sua verdade, mas tenho de agradecer à minha filha porque fez-me chegar mesmo a outro nível. Tenho a grande sorte de ter tido a minha filha no momento da minha carreira em que me posso permitir a viajar com ela. Ela fez a tournée toda de 2023, com seis meses já estava na estrada comigo.”
Por outro lado, a gravidez condicionou a respiração de Mayra Andrade, que perdeu fôlego e conforto durante os espetáculos. “Nesse sentido, talvez tenha sido um erro de casting. É um concerto em que estou completamente exposta, não há um instrumental a ajudar, não há solos de teclados e guitarra… É uma guitarra e eu a suster aquilo durante o tempo todo. Mas claro que não me arrependo.”
Mayra Andrade já tinha gravado um disco ao vivo, Studio 105 (2010), na Maison de la Radio, em Paris, a capital francesa, onde viveu durante vários anos. A cantora sempre gostou deste formato porque se sente, acima de tudo, uma “artista de palco”. “Tenho de fazer discos porque… enfim. Estou ainda a aprender a gravar discos. Ainda não aprendi a ser livre e espontânea em estúdio como sou em palco. Portanto, no fundo, este acaba por ser o primeiro disco em que sou completamente um ser livre.”
Numa fase de “nascimentos e renascimentos, de inícios e finais de ciclo”, fez mesmo questão de deixar um registo para memória futura. “Se terminasse a tour agora, como irá acontecer em breve, e nunca mais se ouvisse o reEncanto, iria ficar triste que a minha filha não pudesse ouvir algo da qual fez parte. As pessoas que me querem conhecer como artista, como cantora, como alma cantante, é no reEncanto.”
Embora considere todas as músicas que tenha cantado e gravado como suas, os temas que realmente foram escritos e compostos por si têm uma ligação umbilical mais profunda à sua génese artística. “Muitas pessoas referem-se a algumas músicas como minhas, mas eu digo sempre que não fui eu que as escrevi, que esta é deste ou daquele compositor. Mas o contrário também acontece, de as pessoas acharem que foi sempre alguém que escreveu para a cantora e de dizerem: ‘não sabia que esta música era tua, pensei que fosse uma música tradicional de Cabo Verde’.”
[a nova versão de “Navega”:]
Isso acontece muito, por exemplo, com Vapor di Imigrason, que tem uma “aura de hino e foi muito inspirada na tradição, nessas músicas que falam da imigração e da partida”, que herda esse legado do cancioneiro popular de Cabo Verde. Embora muitos dos temas gravados nos discos originais tivessem outro tipo de arranjo e personalidade, todos foram compostos com uma base de voz e violão — daí ser tão natural para Mayra Andrade apresentá-las desta forma. “Para mim, uma canção tem de se sustentar com voz e violão, ou voz e piano… Eu venho dessa escola. Ela tem de funcionar de forma despida, a essência da música tem que ter pernas para andar sozinha.”
Este processo todo fê-la olhar para as suas próprias canções de uma forma diferente. Houve mesmo um reEncanto com esses temas que têm marcado o seu percurso. “Há várias músicas que ganharam em dimensão. Com menos instrumentos, tornaram-se muito poderosas. Em termos de sentimento, no poder que têm nas pessoas… Também há músicas que cantei em palco quando tinha 20 e tal anos e hoje canto-as de forma diferente, o público é outro mas sobretudo eu sou outra. O que consigo transmitir hoje numa música é diferente de quando tinha 20 anos. Quando oiço gravações do meu primeiro disco é algo naif, puro, que deu lugar a outra coisa. Viver e depois dizer aquelas palavras que escrevi há 20 anos é completamente diferente. O significado não mudou, mas ganhou consistência e conteúdo. A interface estava lá, mas o banco de dados ainda não estava muito preenchido.”
[a nova versão de “Afeto”:]
O formato de voz e violão também permitiu que existisse uma espontaneidade diferente em palco. Em Konsiénsia, uma música que fala sobre não ficar inerte perante as injustiças, de não se deixar cair na indiferença, conta que hoje a canta com muito mais intensidade e que isso gerou momentos emotivos ao vivo. “Infelizmente, hoje vivemos momentos trágicos e muitas vezes sou tomada por emoções em palco quando a canto. Começo a cantar e depois fico a chorar. Ou começo a improvisar com uma revolta muito grande… E é real. Posso, a meio de uma música, parar de cantar e pôr-me a fazer um discurso às pessoas sobre o que acho que não pode e que não está bem. O reEncanto dá-me essa possibilidade. Por isso é que cada concerto é diferente. Às vezes sou açambarcada por uma emoção e não estava previsto pôr-me a chorar. Várias pessoas começaram também a chorar no festival Koala, por exemplo. Sinto uma emoção que é partilhada por todos, é algo que eu verbalizo, mas que muita gente sente.”
A cumplicidade com Djodje Almeida também foi fulcral para reEncanto. Tinham-se conhecido de forma breve em Cabo Verde, mas foi na peça Pantera — da Companhia Clara Andermatt, que juntava teatro, música e dança em homenagem ao artista cabo-verdiano com o mesmo nome — que os dois construíram uma relação próxima de trabalho.
“Na peça tínhamos um momento de voz e violão, que era muito desconstruído, e percebemos que havia terreno. Estávamos muito afastados um do outro, tivemos de desenvolver uma espécie de conexão wireless para estarmos sempre a desconstruir em conjunto. Tinha de haver uma química de palco. Acabámos por ter um treino tão forte que achámos que conseguíamos sentar-nos em duas cadeiras a tocar. E temos mesmo essa comunicação não verbal, às vezes vamos para sítios que ficamos a olhar um para o outro: isto aconteceu mesmo?”
Os casamentos entre tradição local e modernidade global (e uma canção com Idris Elba)
Numa dimensão paralela aos seus álbuns de originais, Mayra Andrade deixa claro que poderá sempre voltar a fazer um reEncanto, seja no palco ou em disco, com outras canções que entretanto se juntem ao seu repertório. “Vou ter sempre um momento de me reencantar com estas canções que componho. Portanto, se calhar daqui a 10 anos vou lançar outro reEncanto, quem sabe! Mas são dimensões paralelas que se alimentam mutuamente. Depois disto, certamente voltarei com um disco de inéditos que não tem nada a ver.”
Com uma carreira inicialmente construída no circuito das “músicas do mundo”, Mayra Andrade também beneficiou nos últimos anos dos fenómenos que a globalização potenciou. Várias músicas tradicionais, fora do dominante eixo anglo-saxónico, começaram a cruzar-se cada vez mais com sons pop, urbanos e eletrónicos, o que resultou na explosão planetária do afrobeat ou da música latina, desde o reggaeton ao flamenco moderno de Rosalía.
“Antes tínhamos todos que passar por um funil que eram os grandes grupos de media. Agora está tudo mais acessível e acho que as pessoas só não consomem aquilo a que não têm acesso. Todos os tipos de música, se tiverem palco, encontram o seu público. E a minha música, que tem um certo cariz tradicional, também tem chegado a outras pessoas graças aos remixes eletrónicos que fazem das minhas canções.”
Nesta sequência, acaba de assinar uma colaboração com um produtor britânico notável, na verdade mais conhecido enquanto ator de renome. Lançado há poucos dias, Sima Agua é um tema que junta Mayra Andrade ao DJ e compositor Idris Elba.
“A mulher do Idris mostrou-lhe a minha música há uns anos. Conhecemo-nos em Londres e eles convidaram-me para jantar em casa deles. Ele tem um home studio e estivemos numa jam: estive a cuspir ideias por cima de beats que ele tinha. Um tempo depois ele disse-me: ‘vou estar em Ibiza numa temporada como DJ, não queres vir e vamos para o estúdio tentar compor uma música?’ Foi o que fiz, fui para Ibiza, criámos essa música, ele já fez não sei quantas versões que ia tocando no seu DJ set e foi aperfeiçoando-a. Ele gosta muito de música, tem um profundo respeito e admiração pelas músicas de raiz. A junção da alma da tradição com aquela coisa catchy e eficaz da música digital casam muito bem.”
Para encerrar este ciclo, Mayra Andrade regressa a Portugal, o país onde tudo começou, para se apresentar no Teatro Tivoli BBVA, em Lisboa, a 9 de dezembro. Os bilhetes estão à venda, entre os 22€ e os 39€.