Pronto, agora que captei a atenção do leitor, passo a explicar: não estarei presente em nenhuma das quatro sessões que o comediante americano fará no Maxime Comedy Club, no fim deste mês. Não é que não queira, é só porque não posso. Estarei desafortunadamente a trabalhar, tanto na sexta como no sábado, e ainda por cima ciente de que nunca escreverei nada tão engraçado quanto C.K. À partida também não farei nada tão repugnante, portanto ficamos ela por ela.
Claro que podia ter aproveitado este azar de agenda para fingir uma certa superioridade moral e alegar que não vou ver um dos melhores comediantes da atualidade porque não compactuo com abusadores sexuais. Podia, de facto. Mas não ia aguentar esta mentira muito tempo e seria apanhada na curva rapidamente, a (re)ver um qualquer filme do Woody Allen. Outro homem que teve comportamentos absolutamente condenáveis mas que, por acaso, é autor de grandes filmes. Também fez belas porcarias como o Vicky Cristina Barcelona, mas isso não vem agora ao caso…
Woody, tal como Louis, é aparentemente capaz do melhor e do pior. Mas enquanto o melhor for a trabalho que tem para apresentar e o pior for o que faz no resto da sua vida, sinto-me livre de apreciar a sua obra e criticar os seus comportamentos. E reparem que escolhi o verbo criticar e não julgar. Para isso já inventaram os tribunais, e conto com eles quando o assunto é do foro criminal. Com eles e com o Hernâni Carvalho, claro.
Louis C.K. com quatro espetáculos em Lisboa neste mês de maio
Nesta discussão, que agora surge dia sim dia não, os defensores da separação entre homem (ou mulher) e a sua obra, nos quais me incluo, dão por si a puxar inevitavelmente de um Caravaggio, que matou um homem, de um Picasso, que era misógino, ou de Flaubert, que abusava de crianças. Seria condenável se os admirássemos por essas “atividades paralelas” (e criminosas), mas não me parece que aconteça. Nunca ouvi um diálogo deste género:
— Então, qual é a tua obra de Flaubert preferida? (de facto nunca ouvi esta pergunta, sequer, porque me dou com gente de gostos prosaicos)
— É a “Madame Bovary”, já o li três vezes. E a tua?
— Ah, eu cá gostei muito quando ele abusou de um rapazinho de 12 anos…
Também não me parece que as pessoas tenham esgotado os espectáculos de Louis C.K. em cinco minutos por admirarem muito aquilo que fez com as calças para baixo. Todos preferimos vê-lo o mais vestido possível, e todos adoraríamos que as histórias que vieram a público fossem mentira. Infelizmente, não são.
Para muitos, Louis C.K. caiu com estrondo de um pedestal altíssimo. Como nunca consegui ter ídolos, e tenho pena, já que parece ter os mesmos efeitos da droga, de forma menos dispendiosa (leva as pessoas a ter comportamentos ridículos, a saltarem, a chorarem, a rirem e até, em casos mais extremos, a dormirem ao relento), não fiquei muito desiludida com as revelações. Não esperava nada de Louis C.K., a não ser que fizesse boas piadas. Para lá disso, não tinha qualquer expectativa porque não o conheço. Assim, era tão provável que fosse ele a ter um comportamento hediondo como o meu vizinho do 5º C. Ainda assim ficaria mais chocada com o vizinho, porque é sempre muito simpático no elevador, e com o Louis nunca troquei impressões.
Ainda hoje, aquilo que quero deste comediante, como de todos os outros, é que me faça rir. Nada mais. No fundo, quero aproveitar-me dele (de forma muito mais decente do que ele fez com as mulheres que o acusaram). Só quero usá-lo para me divertir, não quero que ele seja canonizado nem vou sugeri-lo a Marcelo Rebelo de Sousa como merecedor de uma condecoração.
Aproveito para deixar claro que não faço parte daquele grupo de gente que diz que se as mulheres subiram ao quarto com Louis C.K. “estavam a pedi-las”. Não acho isso delas nem de ninguém. Seja a rapariga que apareceu seminua e alcoolizada na Queima das Fitas ou a Kathryn Mayorga. Nunca nenhuma mulher (ou homem) estava mesmo a pedi-las. Até porque fomos dotados da capacidade de falar, por isso quando quisermos pedir alguma coisa, pedimos, não precisamos que interpretem o comprimento das nossas saias ou o facto de termos aceitado entrar num quarto de hotel onde está um artista ou um jogador de futebol.
Estranhamente não se vê muita gente a querer boicotar a presença de Ronaldo na frente da ataque da Juventus ou da seleção. E bem, a meu ver. Se aquilo que o Der Spiegel trouxe a público é verdadeiro, como parece, Cristiano Ronaldo deve ser julgado e cumprir a sua pena. Aí, provavelmente, terá que se afastar dos relvados e jogar num campo pelado, na cadeia… Mas a decisão cabe aos tribunais. Enquanto jogar, um grande golo será sempre apenas e só isso, e ao mesmo tempo tudo isso: um grande golo. O Licá, do Belenenses, se calhar é muito mais boa pessoa… mas ninguém vai ao estádio para ver quem fica à frente na tabela de carácter e valores, e ele nunca fez um pontapé de bicicleta como CR7… Ou seja, não faço parte da claque que grita “não podem prender Ronaldo porque ele marca soberbos golos!”, mas também não pertenço ao grupo que reclama “os golos não são soberbos porque ele é um violador”.
Como dizia o filósofo, “uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”. Não sei ao certo que filósofo foi… mas o mais certo era ser pederasta, como muitos colegas de profissão na Grécia Antiga. A verdade é que até a sabedoria popular nos ajuda a distinguir uma coisa da outra…
Com o movimento #MeToo tivemos a tendência de pôr tudo no mesmo saco. O saco do assédio sexual tornou-se um recipiente sem fundo, onde tudo cabia. Desde o mais sinistro violador até ao mais desajeitado amante. Que o diga Aziz Ansari, que foi acusado por uma mulher com quem teve um encontro, aparentemente por não ter entendido os “sinais não verbais” que ela lhe fez… MeToo, mais do que um movimento, é uma hashtag, e como se sabe, tudo cabe numa hashtag, já que qualquer um pode contribuir para a alimentar, tipo Wikipedia. Por isso temos acusações muito graves misturadas com boatos infundados, e parecemos avaliar tudo pela mesma bitola…
Claro que, para as vítimas, o pior caso é sempre o seu, mas parece-me desajustado pôr Louis C.K. lado a lado, por exemplo, com Bill Cosby. Provavelmente não iria a um espectáculo de Bill Cosby, sobretudo porque nunca fui fã do Cosby Show, e como tal não tenho nenhuma boa memória relacionada com ele. Assim, associo o nome dele mais ao homem condenado do que ao comediante. Da mesma forma que, não percebendo patavina de golfe, e nunca tendo visto mais que trinta segundos, Tiger Woods me soa sempre mais ao tipo que enganou a mulher do que ao magnífico golfista. Mas sei que a segunda não deve ser posta em causa pela primeira (refiro-me às afirmações, não às mulheres).
Louis C.K. confirma que se masturbava à frente das colegas. Mas está arrependido e pede desculpa
Não me passaria pela cabeça estar à porta de uma sala de espectáculos a apontar o dedo a quem lá fosse ver Bill Cosby, mesmo que saiba que fez coisas horríveis. Esse julgamento sobre o julgamento moral dos outros a propósito de quem foi julgado, assusta-me sempre. Parece haver uma vontade cada vez maior de reescrever a História. Seja a História da Humanidade ou as pequenas histórias de cada um. Queremos que as nações peçam desculpa por atrocidades que os seus egrégios avós cometeram, queremos demolir estátuas, queimar livros, e impedir que as pessoas que fizeram coisas erradas no passado possam agora fazer coisas certas.
Muitas das pessoas que consideram um insulto que Louis C.K. pise solo português com outro motivo que não seja ser preso em Custóias, defendem que os reclusos de Custóias têm direito a ser reinseridos na sociedade quando acabam de cumprir as suas penas. Eu concordo. E acho que Louis C.K. também tem direito a retomar a sua atividade profissional. Até porque seria difícil de repente abraçar uma nova carreira, de contabilista ou engenheiro.
Claro que também eu tenho uma opinião sobre aquilo que Louis C.K. admitiu (pelos vistos, a custo) ter feito. Acho repulsivo, nojento, deprimente. E acho que seria facilmente alvo de gozo de humoristas como ele. Porque masturbar-se em frente a amigas, colegas, desconhecidas, fazer disso um hábito, como quem toma um galão no fim das gravações, é decadente, e expõe-no ao ridículo, logo ele, que tem como profissão apontar o ridículo nos outros. Transformou-se na piada. De humor negro, ainda por cima. Não imagino pior castigo. Quer dizer, até imagino: ter de ver Louis C.K. todo nu a praticar auto-gratificação é certamente pior.
Acho que muitos dos que compraram bilhete para os espectáculos em Lisboa têm também curiosidade (mórbida, talvez) de ver como dará a volta à situação. E acho que é também por isso que é mais difícil lidar com um comediante “criminoso” do que com um músico pecador. Quando Caetano começa a cantar o “Leãozinho” a maioria das pessoas não recordará que em tempos manteve relações sexuais com uma adolescente. Mas quando Louis C.K. pisa um palco, contando histórias da sua vida e partilhando opiniões, sem que saibamos ao certo que percentagem é real ou ficcionada, é natural, por um lado, que sintamos uma proximidade maior com ele e, por outro, que haja um arrepio na espinha se ele resolver apresentar material sobre apresentação de material a mulheres que não o solicitaram.
Conseguirá fazer-nos rir dessa história triste? Veremos. Quem conseguiu bilhete, claro. Os outros ficarão à espera para saber. Até os que agora odeiam tudo o que ele diz, mesmo que tenha muita graça.
Joana Marques é humorista, faz rádio muito cedo e deita-se demasiado tarde.