Como qualquer político de um tempo em que a sociedade espectáculo deixou de ser um conceito teórico de Guy Debord, Nigel Farage gosta que falem dele. Seja de que maneira for. De forma positiva ou negativa. O que interessa é que falem dele. Por isso mesmo, dá entrevistas com regularidade em pubs. Seja à hora de almoço, seja ao final da tarde, Farage sabe que invariavelmente será retratado como alguém que bebe a desafiar os limites.
Nigel não se importa que o repórter do institucional Financial Times o retrate como alguém que é capaz de beber seis pints (aproximadamente três litros de cerveja) uma garrafa de vinho e dois copos de Vinho do Porto à hora de almoço — e logo na célebre rúbrica “lunch with…” do FT. Ou que o conservador Sunday Telegraph comece o artigo com uma das suas palavras-chave, ao mesmo tempo que bate com um copo de cerveja no balcão do pub: “Reload” — como quem diz “encha novamente o copo”.
O que interessa é que falem dele. Mesmo que seja mal, será retratado como um político com quem o cidadão comum gostava de beber uma cerveja no pub do seu bairro, mas que a comunicação social do establishment odeia. Esse é o ponto: ser odiado pelo sistema. Para ganhar notoriedade e visibilidade junto das franjas do mesmo sistema. Para que as pessoas ouçam a sua mensagem de rutura e de promessa fácil. Utilizando um tipo de raciocínio que Nigel Farage certamente apreciaria, se Hitler começou a ser conhecido nos anos 1920 pelos discursos nas cervejarias da Baviera, Farage não lhe fica atrás na capacidade verbal alimentada a pints de cerveja morna num qualquer pub de Londres ou do Yorkshire.
Eis um exemplo: “A União Europeia é como um violador em série. Não percebe o que significa a palavra ‘não’ nem aceita a rejeição da sua sedução”, afirmou em 2011. Ofensa? “Nem podemos dizer uma piada”, contestou recentemente ao Financial Times o homem que tenta lutar contra o cinzentismo na política inglesa, como Alberto João Jardim fazia em Portugal.
O abandono do Partido Conservador
Decorria o início da década de 2000. Nigel Farage já tinha alguma notoriedade na Grã-Bretanha. Juntamente com outros tories, abandonou o Partido Conservador em 1992 depois de John Major, então primeiro-ministro e sucessor de Margareth Tatcher como líder do partido, assinar o Tratado de Masstricht que instituiu a União Económica e Monetária e abriu as portas para a criação do euro. Os britânicos não aderiram à moeda única mas aceitaram o tratado — uma espécie de livro de Lucífer para a ala direita dos Conservadores. Os dissidentes acabaram por fundar o seu próprio partido: o United Kingdom Independence Party (UKIP).
Nasceu, assim, um partido anti-federalista que fez uma declaração de guerra desde a primeira hora à União Europeia. E que tem um discurso nacionalista e conservador, com muitas posições xenófobas e homofóbicas à mistura, a sua principal característica.
Era ouro sobre azul para Nigel Farage — o nacionalista que confessou publicamente que votou n’ Os Verdes em 1989 por causa das suas posições eurocépticas. Um ato extraordinário para um homem que recusa discutir a temática do aquecimento global. Como já vai ver.
Nigel Farage, que não era propriamente um destacado membro do Partido Conservador, começa a evidenciar-se no Parlamento Europeu, ainda em Estrasburgo, quando é eleito pela primeira vez nas eleições de 1999. Ironia das ironias, é a Europa que vai dar-lhe notoriedade. Com um discurso sempre inflamado, recheado de frases curtas e de soundbytes constantemente provocadores para todos os líderes europeus que passam pelo órgão legislativo, Farage já era conhecido na imprensa de Londres. Em Bruxelas, tornou-se uma estrela ocasional para os principais meios de comunicação social europeus. Para os tablóides ingleses, era o homem que defendia a Old Albion em Bruxelas. Para a imprensa séria do Continente, era o inglês que chateava tudo e todos.
Foi assim que Nigel Farage começou a ficar conhecido no Reino Unido. O que levou a BBC a querer acompanhá-lo durante as eleições de 1999 para emitir um documentário a seguir ao escrutínio. Por diversas razões, a estação pública tomou a decisão editorial de não o fazer. O que não impediu Nigel Farrage de pedir uma cópia do produto final, de emitir milhares de exemplares em formato de DVD e de comercializá-los a cinco libras cada, com o objetivo de financiar o UKIP. A produtora do programa, uma empresa privada, não gostou, processou-o e acabou por ganhar a ação — com Farage a admitir que tinha procedido mal.
Segunda ironia para um nacionalista inglês: foi também em 1999 que se casou em segundas núpcias com a alemã Kirsten Mehr. Que certamente não se importa de ouvir Nigel a atacar constantemente Angela Merkel e a Alemanha de quererem dominar economicamente a Europa.
Entrada na City
Na verdade, Nigel sempre foi assim. De verbo fácil, sempre foi bom a “vender coisas”, diz o próprio. Apesar dos seus fatos de riscas com gravatas de cores berrantes que lhe dão um ar de financeiro respeitável, que nunca foi, Nigel Farage não passa de um comerciante. Não interessa a qualidade do produto. O que interessa é vender. Essa é a sua ideia desde o tempo da escola primária no condado de Kent, no sul de Inglaterra, onde nasceu em 1964. A mãe, Bárbara, diz que ele não gostava de brinquedos. Preferia passar o tempo com os amigos e destacava-se pela personalidade extrovertida e provocadora.
O pai, Guy Farage, era um corretor de bolsa que trabalhava na “City” de Londres. Tinha problemas com o álcool e abandonou a família quando Nigel tinha 5 anos.
Nigel estudou numa escola pública e não quis entrar para a universidade. Seguindo as pisadas do pai, entrou para a “City” mas especializou-se no mercado de commodities na London Metal Exchange. Nunca deixou de ser um vendedor que gostava mais de confraternizar e sair com os colegas, jovens yuppies como ele nos anos dourados da década de 1980, com Margaret Thatcher e Ronald Reagan a darem cartas na governação do mundo, do que a crescer profissionalmente.
Pelo caminho, ganhou o principal hobby: fazer turismo militar pelos antigos campos de batalha da I Guerra Mundial com um conjunto fixo de amigos. Essas viagens têm uma particularidade: cada dia terminava com uma monumental bebedeira.
Diversos jornalistas, alguns dos quais experimentaram passar uma noite em Bruxelas com Farage, mas que não resistiram a misturas letais de gin and tonic (como os ingleses dizem), vinho e cognac, questionam regularmente o líder do UKIP sobre estas acusações de alcoolismo. Eis a resposta:
“Olhe, eu costumo começar a trabalhar cedo. Não almoço e, quando chegam as seis ou sete da tarde, é altura de tomar uma bebida”. Tem um problema com o alcoól? “Não me parece. É tudo uma questão de equilíbrio. Direi o seguinte: quando fui ao hospital, o meu médico disse-me que os meus níveis de pressão arterial estavam ótimos e que eu tinha níveis de colesterol de um atleta olímpico. Não me pergunte porquê”, afirmou.
As guerras com Durão Barroso
Foi em Estrasburgo e em Bruxelas que encontrou o seu destino: defender o Reino Unido da União Europeia. E como a melhor defesa é o ataque, Nigel Farage exerceu, sempre que pôde, os seus poderes de escrutinador da Comissão Europeia.
Durão Barroso sofreu bem na pele os ataques de Farage. Além de recordar, por tudo e por nada, o passado de “estudante comunista” admirador do “camarada Mao”, o mínimo que lhe chamou foi “idiota completo”.
Outro exemplo foi quando, em pleno debate sobre a política ambiental da União Europeia, negou o problema do aquecimento global, chamou “fanático” a Durão Barroso e acusou a Comissão Europeia de beneficiar grupos económicos ligados à chamada economia verde.
Pior. Farage foi o líder de uma moção de censura apresentada em 2005 contra o presidente da Comissão Europeia devido a alegados favorecimentos que Durão Barroso e a sua equipa de comissários teriam dado a determinados grupos privados a troco de viagens e presentes. O chamado “caso das viagens”, que se resumia, no caso de Barroso, a uma viagem num iate de um milionário avaliada em cerca de 20 mil euros, foi dado como infundado e a moção de censura foi clamorosamente derrotada. Mas o dano político na Comissão Europeia de Durão Barroso já tinha sido concretizado, além da subida de mais uns pontos na popularidade junto dos tabloides ingleses.
Barroso não foi o único alvo de Nigel Farage, claro. O francês Jacques Barrot, indicado pelo seu país para comissário europeu, foi acusado pelo então eurodeputado do UKIP de alegadamente ter desviado cerca de 1,5 milhões de euros de fundos públicos para o seu partido e de ter sido amnistiado pelo então Presidente, Jacques Chirac. A pena suspensa de oito meses de prisão foi confirmada, assim como a amnistia de Chirac, tendo Barrot sido pressionado para se demitir.
Mais tarde, chamou a Herman Von Rompuy, presidente do Conselho Europeu, um “pano húmido” e de parecer um “funcionário de uma agência bancária”. Tudo isto fez com que fosse inevitável que Farage chegasse a líder do UKIP em 2006 e a elevar o partido para uma dimensão nacional.
Dois anos depois, nova polémica. Sempre em território europeu e, desta vez, com o príncipe Carlos. O então sucessor da rainha Isabel II, logo futuro soberano de Nigel Farage, deslocou-se ao Parlamento Europeu em fevereiro de 2008 para discursar sobre as alterações climáticas — algo que o líder do UKIP aparentemente nega. Farage não só não se levantou quando o príncipe Carlos acabou de discursar, como o acusou, junto dos seus assessores, de ser “naive e tonto”. E afirmou que Carlos desejava mais poderes para a família real em vez de pressionar o governo trabalhista liderado por Gordon Brown a fazer um referendo sobre o Tratado de Lisboa, como a Irlanda acabou por fazer.
Os 4,3 milhões de votos
A partir daqui, Nigel Farage tornou-se uma figura política nacional. Não tinha assento na Câmara dos Comuns, como hoje ainda não tem, depois de tentativas falhadas para ser eleito, mas elevou o UKIP a um partido nacional.
O expoente máximo desse crescimento do UKIP, com uma agenda anti-establishment e anti-imigração, acabou por ser o ato eleitoral de 2014 para o Parlamento Europeu. Para surpresa geral, Farage conseguiu 4,3 milhões de votos, ultrapassou os Conservadores e os Trabalhistas e transformou o UKIP no primeiro partido em 100 anos a ganhar umas eleições nacionais aos dois partidos charneira do sistema parlamentar britânico.
No ano seguinte, voltou a falhar nova tentativa de ser eleito para a Câmara dos Comuns, demitiu-se, mas o partido não o deixou sair. Hoje, é um dos grandes vencedores do Brexit, juntamente com Boris Johnson. E a sua ambição não vai deixá-lo certamente por aqui.