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Pouco passava das 13 horas quando a viatura 80 chegou à estação Sete Rios, em Lisboa. O destino era a Zambujeira do Mar, mas a grande fila que lá aguardava tinha paragem obrigatória noutro lugar: Sines. Assinalava-se o último dia do Festival Músicas do Mundo (FMM), mas eram várias as malas que arrancavam pela primeira vez rumo ao Castelo, o grande palco. Já com duas mãos cheias de atraso, a viatura começou caminho.
“É este que vai para Sines, não é?”, ouve-se de uma voz vinda do banco de trás em que o sotaque não deixava grandes dúvidas de que uma origem francesa por ali rondava. Chama-se Stephan Rodrez, um jovem de 23 anos que conhecia a cidade desde os nove, mas que vinha pela primeira vez sozinho. O FMM era o propósito para a sua viagem. “Este é daqueles festivais a que sempre vim com os meus pais”, diz. É uma data que comemoram em conjunto ao longo dos últimos 13 anos, mas desta vez, foi impossível: a mãe acusou positivo à covid horas antes de se dirigirem ao aeroporto, no dia anterior.
Quanto ao pai, “ficou com ela”. “É até caricato perceber que na primeira edição que acontece depois de dois anos impossibilitados de vir, a minha mãe testa positivo ao motivo que nos impediu de estar no festival até então”, completa com um ar tão desapontado quanto surpreso.
O autocarro pára. Abre portas. Perde-se conta às dezenas de pessoas que saem e se dirigem ao porão. São malas, tendas, sacos-cama, colchões insufláveis e, em certa medida, arcas frigoríficas. As pessoas começam a distribuir-se pela cidade. Umas vão em direção ao acampamento ocasional, ou por outras palavras, um campismo improvisado que se situava no Parque Desportivo João Martins. Outras diretas para o Pátio das Artes. É lá que decorre a primeira atividade paralela do dia, o lançamento do livro Funaná, Raça e Masculinidade: uma Trajetória Colonial e Pós-colonial, da autoria de Rui Cidra.
O antropólogo tinha preparado várias coisas para dizer, mas optou “por não se focar muito nelas”. O que não significa que escrever não seja algo positivo. Confessa que “ajuda a que não se perca no tempo”. Enquanto amante de música, esta não é a primeira vez que Rui Cidra (re)visita o Festival Músicas do Mundo. Já lá passou enquanto público. Mas, desta vez, foi sobre uma grande pesquisa etnográfica que se fez ouvir. É nesta viagem que partimos agora.
“Havia uma história de 100 anos por contar”
A década de 1990 mostrava-se decisiva em diversas frentes. Vivia-se numa era decisiva politicamente e assinalavam-se acontecimentos históricos na música, como foi o caso da revolução brasileira nordestina que nos chegava pela Nação Zumbi e Mundo Livre, alguns homónimos de estreia que a eletrónica não deixava passar despercebidos e o rock que vivia um misto de sensações com a morte de Kurt Cobain e o culminar do punk rock.
Foi também nesta década que Cesária Évora se tornara uma estrela global, levando a música de Cabo Verde, em particular a morna aos diferentes cantos do mundo. Tudo começou em Paris. É nesta passagem que (re)nasce uma questão impulsionadora no trabalho de Rui Cidra: “Porque é que um projeto que envolvia músicos que viviam em Portugal não se divulgou a partir de Portugal?”.
É então que o antropólogo parte para Cabo Verde, em 2003, em busca dos músicos e da música que colocou o país no mapa musical mundial. Chegou e encontros decisivos aconteceram. Um deles, foi com Dju di Mana, líder dos Rabenta, tocador de gaita, que propôs levá-lo ao interior da Ilha de Santiago e dar-lhe a conhecer a expressão musical que nasceu no seio das comunidades criadas por escravos fugidos do trabalho colonial.
De um projeto que na sua fase inicial estaria ligado às mobilidades dos músicos de Cabo Verde — nomeadamente à indústria da música internacional e aos processos de migração das comunidades — o rumo da sua investigação muda depois de chegar a Praia, capital de Cabo Verde. “O Dju levou-me a repensar o meu objeto”. E porquê? “Porque partilhou comigo um conjunto de dados sobre os instrumentos que queria estudar, do Funaná em particular, que eu nunca tinha encontrado na minha pesquisa preliminar”, explica Rui Cidra.
Continua, destacando uma “clara ausência” nas fontes escritas e de dados relativos a estes instrumentos e ao Funaná. Dados esses que estavam relacionados com uma história de marginalização social, de proscrição e proibição destas práticas durante o período colonial.
O antropólogo entende que esta proibição foi perpetuada não só por autoridades civis, como também por párocos que tinham uma influência substancial em Santiago, naquela altura. O que também era evidente “no que tocava ao desprezo dos grupos sociais da terra”, diz-nos.
Esta história interessou a Rui Cidra, porque havia algo que se tornava evidente: “Havia uma história de 100 anos para contar que nunca tinha sido contada”. Uma história de exaltação cultural e de resistência, apesar de ao longo do seu livro não recorrer à palavra resistência “o que não deixa de estar implícito”, reitera na apresentação.
Funaná, Raça e Masculinidade: uma Trajetória Colonial e Pós-colonial é a história de uma expressão musical que planifica aquele que foi um percurso que avança do colonialismo à independência de Cabo Verde, do interior de Santiago à diáspora nos bairros da Área Metropolitana de Lisboa.
Depois da apresentação seguiu-se um pequeno concerto. Dju di Mana, Florzinho e alguns convidados subiram ao palco. Das pessoas que estavam sentavas no tapete relvado que preenchia o espaço, poucas foram as que não se levantaram e os acompanharam. Estávamos numa encruzilhada onde a História e a Etnografia preenchiam o espaço e o som que se fazia ouvir. “Um, dois, três, solta a batida.” Soltavam-se movimentos. Quem não o fazia “lá esboçava sorrisos motivacionais”, dizia um grupo de amigos que tentava convencer um deles a dançar.
No Castelo
Batidas as 18 horas era Pedro Mafama quem subia ao grande palco. No recinto eram poucos os espaços vazios. Nas bancadas o cenário é igual. Transformando diferentes estilos e “revolucionando” em palco as representações que considera essenciais da cultura portuguesa, é num espetáculo caracteristicamente performático que Mafama conquista quem por ali passa.
Do “auto-tune” que parece “contraproducente” a espectadores como Francisco Mourato e César Bastos, que rondavam a casa dos vinte anos, assumem o primeiro contacto com Pedro Mafama em palco como algo que “há muito precisava de espaço na música portuguesa”. Acreditando que as “sonoridades que sente” falam sobre si e sobre o mundo, parte da sua performance transparece crença e um calvário de dores que são o combustível do seu trabalho. Algo para a dor ou Mar morto foram das músicas que mais ouvidas das bocas do público.
Aberto o palco principal, a noite cai e quem saúda o “matriarcado” é Ava Rocha. A cantora, compositora e cineasta provoca reflexões sobre a relação com a liberdade, o feminismo e a natureza. Mas isto é algo que não só faz nos seus filmes (como é o caso do filme “Mãe”), como também o fez em palco. Assinalando-se o segundo concerto pós-pandémico que faz desde que retornou aos palcos, conduz ritmos que rapidamente ultrapassam um público que, há primeira vista, estaria acanhado.
Com um chapéu característico e roupas que pintavam as cores de Verão, Ava Rocha passou pela clássica “Mar fundo”, onde retirou uma máscara feita com facas de cozinha que ia movendo consoante as músicas que ia cantando. A sua performance que parte de um conceito do seu disco Ava Patrya Yndia Yracema, lançado em 2015, vai dando forma às palavras que se ouvem em palco, passando por três fases — começando por esconder a cara, depois a cintura no lado esquerdo e, de seguida, no lado direito.
Joana Dark e Lilith foram algumas das músicas que evidenciaram um público desconcertante e, por sua vez, evidenciaram a performance da cantora. Num diálogo que remonta a memórias, elementos de ritualidade e vivências familiares maternas, há uma estrutura jazzística peculiar que não passa despercebida no palco do FMM.
“A diva de todos os cubanos”
Encaminhada a noite, segue-se a tão esperada Omara Portuondo. A cantora cubana que marcou a história de alguns casais que partiram rumo ao FMM, não desaparece da memória de todos aqueles que viram a sua participação no filme-disco “Buena Vista Social Club”. Este foi o primeiro passo que, posteriormente, deu impulso a uma vasta carreira que a intitularia como “a lenda da nueva trova, do son e do bolero”, sonoridades essenciais que remarcam a identidade cubana e, por sua vez, reinvindicam a cultura.
Aos 91 anos, Omara Portuondo atuou pela primeira vez no festival. A primeira da última, assinalando a despedida dos palcos. Com uma voz que inundou o recinto – completamente preenchido – e que amparou quem por lá passou, sentada, mas não menos entusiasta, de corpo frágil, mas não menos crescente, uma voz que nunca falha à escuta.
“Veinte años”, “Dos gardénias” e “Besame mucho” foram algumas das músicas que transformaram o concerto num momento belo e comovente. Com uma beleza na voz que não escapara, fazia das notas o que pretendia. Procura-as, trazia-as até si. “A diva de todos os cubanos”, depois de “Quizas, Quizas, Quizas” agradecia. Não de muitas palavras, agradecia. E isso foi o bastante para que aquele momento se tornasse um dos mais memoráveis. Foi assim que saiu do palco, depois de a embaixadora de Cuba em Portugal Yusmari Diaz Pérez e o presidente da Câmara de Sines Pedro Mascarenha lhe oferecerem flores que pintavam a cor da bandeira cubana. Agradecendo e sorrindo.
A última noite do festival enchia Sines de cores, línguas e energia. Depois de Portugal, Brasil e Cuba, seguia-se França e Arménia. Ladaniva batia à porta e tornou o palco num lugar cheio de energia. Ainda que o público tivesse alguma dificuldade em acompanhar as letras francesas, na sua maioria, os sons que bebiam de referências Balcãs não deixavam de contagiar quem ali estava.
As harmonias que pedia ao público eram repostadas da melhor forma. Embebidas em movimentos que acompanham os artistas, os solos que cada um dos artistas em palco fazia eram recebidos e partilhados da melhor forma. Entre o jazz e as referências indiana, arménia e até da Ilha Reunião, Ladaniva transformou em algo único um trabalho tão diverso e completo.
Foi então que o amor bateu novamente à porta. “O amor revoluciona tudo”, foram as grandes palavras de Seun Kuti. Depois de ter passado pelo FMM em 2006, Kuti volta e desta vez traz consigo Egypt 80 para fechar o programa do Castelo. Presenteando o público com um momento de fogo de artifício, Kuti deu voz àquilo que tão bem sabe fazer: partir da sua música de intervenção para tornar-nos “na nossa melhor versão”. “Duas pessoas decidem estar juntas e tornaram-se na melhor versão delas mesmas. Esta música não fala sobre romance, mas sim que juntos conseguimos ser melhores. Amor é a revolução”, afirmou. Foi então que se ouviram as primeiras notas de Love & Revolution”.
Num palco que tanto se cantou também se dançou muito. Sherafum Ayomide acompanhou o artista com danças que se alimentavam de uma forte e diversificada componente instrumental, também conseguida pela presença de grandes artistas como Debosaxxy Adewunmi (saxofone barítono), Dime Dime Abayomi e Aknote Adio nas (guitarras), Bature Niran (bateria), Alhaji no (shekere, instrumento de percussão típico africano), Campari (baixo) e Inspiration Adedoyin (trompete).
Fechadas as portas do Castelo, as últimas horas do FMM seguia-se no palco junto à praia, na Avenida Vasco da Gama. Re:imaginar Monte Cara composto por portugueses e cabo-verdianos foi o primeiro a subir ao placo. O trio Guiss Guiss Bou Bess, diretamente do Senegal e de França passou pelos ritmos tradicionais dos países. Já o DJ set de Batida e o DJ Dolores finalizaram a noite sem que ninguém se esquecesse: o FMM voltou para ficar.