Este artigo foi originalmente publicada no 4.º número da revista DDD – Dê de Delta
António Cachola, 67 anos, é o homem que dá nome e forma à coleção do Museu de Arte Contemporânea de Elvas (MACE). Foi, também, o grande impulsionador deste projeto museológico, inaugurado em 2007 num edifício emblemático da sua cidade natal: o antigo Hospital da Misericórdia.
Recebe-nos de sorriso aberto no Dia Internacional dos Museus, 18 de maio, à entrada do edifício reconvertido para estas funções.
Limbo. 2004
“ O museu tem uma extensão que é o Paiol de Nossa Senhora da Conceição. E é lá que vamos apresentar uma obra para assinalar o Dia Internacional dos Museus. “Limbo” é o titulo da obra e escolhemo-la não por acaso, tendo em conta o contexto pandémico que vivemos. Trata-se da projeção de um vídeo feito a partir de fotografias de corpos nus. Este artista é médico, especialista em Medicina Interna. Achamos que nesta altura de pandemia, devemos também fazer uma homenagem aos profissionais de saúde. Mas, claro, não é só por ser médico que foi escolhido, mas acima de tudo porque ele é um excelente artista e integra a coleção desde 1999.”
Um projeto de arquitetura que teve por objetivo retirar as camadas acrescentadas ao longo de séculos pelas diferentes instituições que albergara.
O gosto de António Cachola pela arte contemporânea surge ainda nos anos 80. Curiosamente, deve-se, ainda que indiretamente, ao seu percurso na Delta, onde foi diretor financeiro e onde ainda hoje, já reformado, desempenha um precioso e indispensável papel de administrador não executivo.
Janela grande virada a norte. Fragmento. (1990-2018)
“O artista começa em 1990 a pensar na forma como vai organizar uma nova peça que quer criar e só em 2018 considera que a mesma está terminada. E é aí que a traz à luz do dia. Isto, no contexto da coleção, é muito interessante: estamos a falar de 1990 a 2018, quase 30 anos. Porque é que eu achei que esta peça era interessantíssima para a coleção? Porque ela é, do ponto de vista plástico e do ponto de vista visual, uma peça com muita qualidade para a arte contemporânea, mas acima de tudo por causa da forma como está datada. Ou seja, quando vi esta escultura fiz imediatamente um paralelismo entre os anos que o artista levou a trazer a peça à luz do dia e os anos que eu enquanto colecionador levei a fazer a coleção. A coleção começou a ser feita praticamente há 30 anos; portanto, há aqui um paralelismo muito interessante entre a “vida” da coleção e o tempo de criação que o artista dedicou a este trabalho.”
Uma ligação inquebrável, que o pin com o logótipo da empresa, na lapela, torna evidente. Afinal, foi em Campo Maior que teve o primeiro contacto com uma série de artistas portugueses.
António Cachola começa a sua coleção na sequência desses contactos. E baliza-a, desde cedo, por barreiras cronológicas: artistas portugueses que começam a expor pública e regularmente de 1980 em diante.
Sem Título. Série Ferrari. 1999
“Para mim é mesmo muito difícil fazer destaque de obras, normalmente as obras que nós colecionadores mais gostamos são aquelas que ainda não temos, mas devo dizer que o artista que é responsável por estas fotografias, Augusto Alves da Silva, é um extraordinário artista fotografo, muito importante e reconhecido a nível nacional e internacional. Nesta obra estamos a falar de um stand da Ferrari e de um sem-abrigo. É uma fotografia icónica, tirada no Porto. No piso superior, temos a possibilidade de ver um conjunto de fotografias que integram uma serie completa deste mesmo artista, cujo titulo é ‘As Paisagens Inúteis”. É um dos artistas mais representados na coleção.”
Uma escolha muito paradigmática no que à arte contemporânea diz respeito, porque foi precisamente nesses anos que, depois de uma efetiva desertificação de espaços expositivos no país, começam a surgir vários projetos museológicos em Portugal.
A proximidade com Badajoz, onde em 1995 abre o Museu Estremenho Ibero-Americano de Arte Contemporânea (MEIAC), contribuiu para estimular ainda mais o seu gosto pela arte e reforçar-lhe a convicção de que Elvas era o sítio certo para expor as obras que ia colecionando.
Enquanto visitamos as diversas salas do museu, António Cachola fala apaixonadamente sobre as peças expostas, os autores, o que pesa na aquisição, sobre como se relacionam as diferentes obras entre si e com o espaço que as acolhe.
Período Azul. 2018
“A imagem do vídeo que aqui vemos é de uma excelente artista feminista, a Mané Pacheco. O titulo está relacionado com a obra de Pablo Picasso. O vídeo é projetado num ecrã em areia que está no chão. Na imagem projetada estão a ser feitos objetos com formas que nos recordam a obra de Jeff Koons. Na parte restante do vídeo a artista percorre e apresenta um pouco da arte contemporânea feita por vários artistas.”
Se o economista, ex-diretor financeiro da Delta, é um homem que domina os números e a vertente racional do negócio, o colecionador de arte é um homem que olha para as obras como se fossem pessoas, que repara nos seus pequenos traços e que se relaciona com elas de uma forma emocional. Mas as duas facetas, curiosamente, não se anulam. Completam-se.
E que obras são essas? Para começar, são muitas: o acervo da coleção António Cachola soma cerca de 850 peças, de todos os nomes relevantes da arte contemporânea portuguesa. É, aliás, uma coleção singular nesse sentido: todos os artistas são portugueses, independentemente de residirem ou não no país.
Ordem de Assalto. 2012-2020
“Aqui temos uma instalação fantástica. É uma peça que se chama Ordem de Assalto e que tem todos estes bens alimentares. É da Carla Filipe, uma artista que reside no Porto e que já representou Portugal na Bienal de Istambul. A qualidade do seu trabalho tem-lhe conferido uma excelente presença internacional. Podemos e devemos circular no meio dos vários elementos que compõem esta peça. São alimentos reais, tendo este trabalho, em concreto, a ver com situações de grande pobreza, de grandes dificuldades para muitas famílias, no início do século passado. Havia, na altura, uma possibilidade de, em determinados momentos, as pessoas poderem ir a certos sítios recolher, com autorização, alimentos. Então, a Carla Filipe teve essa ideia baseada nessa situação real e fez esta obra, que é datada do tempo do governo de Passos Coelho, quando houve grandes dificuldades no país; logo, há aqui um cariz político muito forte, como aliás a artista deixa quase sempre transparecer no seu trabalho.”
A singularidade da coleção faz com que muitas das suas peças sejam constantemente requisitadas para ser expostas noutros museus, um pouco por todo o mundo. E a sua riqueza torna importantíssimo o trabalho de curadoria, para construir exposições coerentes. Pedimos, nesse sentido, a António Cachola que falasse sobre algumas das obras expostas.
A Noiva. 2002-2005
“Esta é uma das obras mais reconhecidas da coleção. Adquiri-a em 2002, sendo que a primeira peça que comprei à Joana Vasconcelos foi em 1998, a ‘Cama Valium’, uma escultura feita de comprimidos Valium. Esta peça, que é de 2002, foi preparada para ser apresentada na Bienal de Veneza em 2005, daí a datação dela ser 2002-2005. Também é interessante podermos circular à sua volta. Quando está no museu está sempre nesta sala. É a peça mais pedida da coleção, circula pelo mundo inteiro, por todos os sítios possíveis e imaginários e está muito tempo fora. Em breve vai para a Fundação Calouste Gulbenkian, integrará uma exposição com artistas mulheres e vai lá estar [até 23 de agosto]. É uma das peças icónicas da arte contemporânea em Portugal: quando esteve na Bienal de Veneza, em 2005, foi capa do New York Times.”