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Terminou mais uma edição do Portugal Fashion e, desta vez, não nos ficámos pelo brilho dos desfiles. Durante quatro dias, mais de 200 pessoas trabalharam para que quase 40 designers e marcas pudessem apresentar as suas coleções para o próximo verão. Muitas nunca chegamos a ver, a maioria nem sequer sabemos quem é. Falámos com quem monta e desmonta, com quem escolhe, com quem idealiza, com quem senta, com quem penteia, com quem organiza a planeia. E ainda tivemos duas objetivas infiltradas onde tudo acontece. Os bastidores não são só o que está por detrás da passerelle, são tudo o que não vemos.
Vera Deus. Alguém tem de sentá-los
Vera lembra-se bem do primeiro desfile que viu na vida. Na altura, estudava para ser arquiteta e foi levada por uma amiga a ver a apresentação de uma coleção de José António Tenente. Foi o primeiro contacto com o mundo da moda (curiosamente de pé) um mundo que não lhe despertava qualquer encantamento. O mesmo não se pode dizer dos bookers da Central Models quando lhe puseram a vista em cima. Alta, esguia e com o cabelo muito curto — resumindo, pouco tempo depois já estava agenciada.
Hoje, no trabalho que desempenha no Portugal Fashion, reúne o melhor de duas experiências: a dos tempos em que desfilava nesta mesma passerelle e ade quando começou a trabalhar com a Eusébio Rodrigues, a produtora do evento. Quando em 2004 assumiu o cargo de gestora de protocolo e convidados, já sabia muito bem como é que a máquina funcionava.
Mas afinal, o que é que Vera faz? Vemo-la a cirandar pela sala de desfiles, sobretudo antes destes começarem, e quase sempre de telemóvel no ouvido. Os verbos são conduzir, sentar, levantar e apertar. Conta com uma equipa de 24 pessoas para a ajudar nesta missão de sentar toda a gente, desfile a pós desfile. Só na Sala do Arquivo, na Alfândega do Porto, são mais de 1000 de cada vez. Além de garantir que todos os convidados assistem à apresentação da melhor forma possível, um bom sitting é meio caminho andado para que fotógrafos e operadores de câmara consigam trabalhar na perfeição. A tarefa até parece fácil, não fosse uma coisa chamada primeira fila.
Isto sem contar com quem se senta onde não deve. Dizem as regras de protocolo que os lugares da primeira fila fiquem reservados à imprensa, a elementos da organização e patrocinadores e a convidados de cada designer. “Há pessoas a tirarem os nomes que estão a marcar os lugares e a sentarem-se. Depois, eu peço para saírem e ainda desatinam comigo. Já fui muito insultada. Uma vez, tive de chamar um segurança para retirar um senhor que fez uma cena. Era convidado de um designer, mas isso não dá direito a faltas de respeito”, conta. É preciso pulso firme, está-se mesmo a ver. Mas com 13 anos disto, Vera já é conhecida por impor respeito. Além disso, é como a própria descreve: “posso ser um bocadinho tirana, mas sou uma rapariga simpática”.
E o dia em que foi convidada por Júlio Torcato para desfilar? Num minuto estava a sentar jornalista, no seguinte estava a ser maquilhada. A experiência foi caótica. Antes do desfile começar, a sintonia tem de ser total. Uma sala demora entre 15 e 20 minutos a sentar, nos casos mais complicados, chega a meia hora. É preciso estar em cima do que acontece nos bastidores. Se os modelos já estão maquilhados, penteados e vestidos e quando é suposto abrir a porta. No final, é tudo mais fácil, ou pelo menos era. “Temos um fenómeno extraordinário. Antigamente, era fácil esvaziar a sala, o problema é que agora as pessoas querem tirar selfies com os cenários, então não saem. Eu sou tipo o emplastro atrás delas”, conta.
Mais de 20 edições do Portugal Fashion depois, há uma pergunta que se impõe: afinal, qual é o melhor lugar para ver um desfile? Vera não hesita na resposta: “Eu vejo sempre de pé, é de onde eu acho que se vê melhor”.
Luís Pereira. Uma modelo de cada vez
A fila está formada e tem uma altura acima da média. Cada modelo respondeu à chamada e alinhou-se segundo a ordem com que vai pisar a passerelle. Cabeleireiros e maquilhadores dão os últimos retoques, por vezes uma segunda equipa ainda compõe detalhes do styling. É a reta final de quatro horas de trabalho, só para aquele único desfile. Se for para fazer contas, é multiplicar isto por dez, 20 ou 29, o número de desfiles que a 41ª edição do Portugal Fashion organiza na cidade do Porto. A voz de Luís Pereira é a última que os manequins ouvem antes da longa caminhada. De auricular e microfone, coordena-se com a régie para que o desfile não se desvie do compasso.
“Se não entra nenhum modelo quando o outro já vai a meio, as pessoas reparam logo. Quando há alguma falha, tem que se pensar rápido. É por isso que ninguém quer dar as entradas, não é fácil”, afirma. Luís dá as entradas e não é de hoje. Começou na terceira edição do Portugal Fashion, em 1996, a mesma que ficou marcada pelo incêndio no Coliseu do Porto. O evento ficou, na altura suspenso, e foi retomado um mês depois. No recomeço ele estava lá, com a experiência de assistente de coreógrafos (sim, há 30 anos todos os desfiles eram coreografados) adquirida nas edições anteriores e na ModaLisboa, mas também a saber o que era estar em fila, à espera daquele toque no ombro para avançar. Terminada a carreira de modelo, Luís nunca mais saiu da boca da passerelle.
“Sem controlar o resto, não consigo ter as manequins no sítio”, disse na altura. “Na estação seguinte, comecei a coordenar e a ter mais assistentes. Os desfiles demoravam horas, havia ensaios de dias e dias. E nos bastidores, era tudo muito confuso”, recorda. De rapaz do intercomunicador, passou a chefe de bastidores, uma tarefa complexa que começa um mês antes, pelo menos. Apesar da exigência no terreno, o trabalho de casa é o mais importante. Tabelas e mais tabelas. Luís recebe o casting de modelos e os desfiles que cada um vai fazer e esse é o ponto de partida para coordenar aderecistas, cabelos e maquilhagem. É preciso pensar em turnos porque um dia de Portugal Fashion exige 18 horas de trabalho e sem abrandamentos pelo meio. Voltando a fazer contas, com os manequins, são mais de 150 pessoas a trabalhar. Luís não se assusta com a quantidade de gente. Até gosta.
Quatro horas é a antecedência com que um desfile começa a ser preparado lá atrás. Mesmo assim, há imprevistos, sobretudo com um certo par de acessórios. “Há sempre histórias com sapatos”, conta. As encomendas às fábricas são feitas antes de chegarem os tamanhos reais dos modelos, logo nem sempre é possível garantir que todos desfilam a calçar o seu número. Em 1996, Luís lembra-se de ver a modelo internacional Eva Herzigova desfilar descalça, depois de ninguém lhe ter conseguido arranjar uns sapatos 41 e meio.
Nos desfiles de grandes marcas internacionais, um modelo desfila quase sempre com um único coordenado. Por cá, as coisas não são bem assim, trabalho dobrado na hora de programar o desfile. Idealmente, um manequim tem outros 15 à frente antes de voltar à passerelle. Na prática, raramente passam dos dez. É preciso ter tudo a postos para uma mudança rápida, sem prejudicar o styling e ainda com tempo para garantir que cabelos e maquilhagem estão no sítio. “É muito importante haver espaço e eu estou sempre a falar nisso. É por isso que dizem que mando vir com tudo, mas é preciso”, refere.
Cansado? Nem por isso. Com vontade de passar a pasta? Parece que não é lá muito fácil encontrar quem trabalhe em tantas frentes ao mesmo tempo. Ai fim de 21 anos, Luís está para continuar, de intercomunicador posto na cabeça e essa sempre a mil.
Nem tudo o que acontece nos bastidores fica nos bastidores
Durante três dias de Portugal Fashion, os fotógrafos Ricardo Castelo e Lara Jacinto infiltraram-se nos bastidores dos desfiles. Entre o Museu do Carro Elétrico e a Alfândega do Porto, captaram os momentos de tensão e nervosismo, mas também os de espera e tédio.
Nuno Eusébio. Ele vem, ele monta, ele vai
Como Nuno costuma dizer, cabe-lhe montar o hardware do Portugal Fashion. Já o faz há mais de 20 anos, à frente da Eusébio Rodrigues, empresa de família que se especializou na produção de eventos de moda. Ele e uma equipa de cerca de 90 pessoas, especialistas em montar e desmontar em tempo recorde e eu afinar todos os detalhes de uma passerelle ao milímetro. De todas as figuras indispensáveis à realização de um desfile, esta é a que permanece mais invisível. “Quando tudo corre bem, andamos um dia à frente e andamos um dia atrás. Andamos à frente a preparar as coisas e andamos atrás a desmontar”, afirma. Moral da história: nunca ninguém os vê.
O trabalho começa muitas semanas antes. Visitam-se os espaços, avalia-se se é possível realizar ali um desfile ou não e discutem-se novas ideias para tornar o espetáculo da moda ligeiramente diferente do que foi na edição anterior. A proximidade com os designers é essencial, tal como o trabalho em conjunto com Isabel Branco, a coordenadora de moda do Portugal Fashion. Mas Nuno não se limita a executar as ideias dos outros, ele próprio sabe muito bem como é que um desfile de moda se pode reinventar estação após estação. “Não gosto muito de fazer nos mesmos sítios porque é um bocado comodista e nós temos tendência para fazer igual. Tentamos evitar isso e a Isabel, na maioria das vezes, também traz ideias novas. A própria moda também está um bocadinho mais contida. Há uns anos atrás usavam cenários muito grandes, mas neste momento queremos que seja uma estrutura prática, com novidades mas sem nada de exagerado. Não sei, se calhar para o ano estamos a fazer outra coisa”, partilha.
Mas nem tudo é cenário. De olho no que anda a ser feito pelas equipas das grandes casas, Nuno valoriza sobretudo o lado técnico, o que mais ninguém vê. Como as dezenas de holofotes posicionados ao milímetro para que as fotografias e vídeos dos desfiles fiquem perfeitas. “Eu gosto de ver os desfiles na televisão, gosto de ver tecnicamente, e estou muito mais preocupado com aquilo que sai do que propriamente com o que está a acontecer na sala”, completa.
Desmontar é ainda mais rápido. Nuno garante que ir ao mesmo sítio no dia seguinte é encontrar zero vestígios de que uma semana de moda passou por ali. Durante quatro dias, um deles em Lisboa, este bando invisível montou e desmontou três passerelles em seis locais diferentes. Não está nada mal.
Isabel Branco. Olho de lince
“Esta sala e eu já somos velhas amigas. Gosto desta sala como ela é, com este chão de madeira, com este branco. É uma sala com uma grandiosidade fantástica, onde qualquer coleção ou é muito boa, ou é muito má.” Se enquanto coordenadora de moda do Portugal Fashion, Isabel também tivesse direito a um desfile comemorativo na grade Sala do Arquivo da Alfândega do Porto, seria no próximo ano. Começou em 1998, convidada por Manuel Serrão. O teste inicial não podia ter sido mais exigente. São Paulo Fashion Week, 17 marcas e designers portugueses a atravessarem o Atlântico e uma cidade com um conhecimento na organização de desfiles uns furos acima do nosso. “Depois daquilo, era capaz de fazer qualquer coisa”, completa.
O papel que tem no Portugal Fashion é tão complexo como essencial e começa com mais de um mês de antecedência. Em conversa com os designers, mede o pulso às coleções e à forma como eles as querem mostrar. “Tudo tem de ser em função do que eles querem fazer”, esclarece. Alinhavado o calendário de desfiles, passa à escolha das modelos. Os castings são feito a nível nacional e internacional. Ter olho é essencial, mas também é algo que exige um radar sempre ligado. Tal como na roupa, as tendências mudam depressa e basta desviar a atenção de Paris durante uma estação para perder o fio à meada. “Paris é onde tudo acontece e a tendência deste ano não é a de há dois ou três anos. Já passámos a mulher de leste, loira e fantástica, e o casting com todas iguais. Agora, são altos, baixos, magros, feios, marrecos, uns a andarem pior, outros a andarem melhor”, conta.
Na hora de escolher quem vai dar corpo às criações dos designers, a responsabilidade é grande. Todos eles confiam em Isabel e, ao fim de 20 anos, ela conhece-os como ninguém. “Sei do que o Luís Buchinho gosta, sei do que os Manéis gostam. Depois de escolher o casting geral, ainda andamos para aí uma semana e meia em trocas”. Por dia, passam pelos bastidores do Portugal Fashion à volta de 80 manequins. A gestão é difícil, sobretudo porque nenhum modelo pode fazer dois desfiles seguidos. Mas os anos em que trabalhou em produção de cinema são uma bela ajuda. Antes disso, também já tinha sido modelo. Segundo o currículo, Isabel não podia estar em nenhum outro sítio, senão na coordenação do maior evento de moda do país.
O trabalho não acaba aí. Passerelle, coreografia, jogos de luzes — é Isabel quem desenha tudo ao centímetro, do simples corredor que os manequins têm de percorrer em dois sentidos aos esquemas mais complexos que os fazem serpentear por entre a audiência.
Seja no Porto, em Lisboa ou em qualquer capital da moda onde o Portugal Fashion assente arraiais. Sempre que os designers nacionais chegam a Nova Iorque, Londres, Milão e Paris, Isabel está lá a preparar tudo em avanço. É mais trabalhoso, mas também é feito com mais atenção aos detalhes. Cada modelo é escolhido quase em função de um determinado coordenado. Além disso, ver uma coleção em primeiríssima mão tem sempre aquele gostinho especial. O mesmo se pode dizer dos desfiles que acontecem fora dos palcos principais. Nesta edição, Luís Buchinho quis improvisar a passerelle no Cais Novo, enquanto Katty Xiomara ocupou o ex Matadouro Municipal do Porto. “Há designers que querem fazer coisas diferentes e que se mexem para isso. Eu própria fomento muito isso. Acho que, no final, ter uma fashion week com imagens diferentes dos vários desfiles é ótimo. É como se estivéssemos em Paris, não é formatado”, afirma.
“Acho que este trabalho tem de ser feito por uma cabeça nova, que pense diferente, que não tenha medo de arriscar e eu ainda tenho isso, faz parte do meu ADN”, confessa. Deixar os bastidores da moda não faz parte dos planos. Isabel vai continuar atenta às grandes passerelles internacionais e a dar uso ao seu olho de lince para reconhecer os melhores castings à distância. Afinal, a relação de Isabel Branco com a moda portuguesa não é só carreira, é história.
Vasco Freitas. Um hairstylist do mundo
“Deixa as coisas acontecerem, isto não é matemático.” No dia em que Vasco penteou um dos seus ídolos de passerelle, a modelo italiana Mariacarla Boscono, ela deixou-lhe um conselho para a vida, o de pôr de lado a técnica e olhar realmente para as pessoas. Apesar do stress que se vive nos bastidores, a última palavra tem sempre de ser a da criatividade. Há dez anos no comando da equipa de hairstyling do Portugal Fashion, Vasco começou a dar nas vistas na altura em que não passava de um mero assistente. Se na altura, trabalhar de perto com nomes como Luís Buchinho, Katty Xiomara e Nuno Baltazar foi a concretização de um sonho, hoje as relações que estabelece com a maioria dos designers é de amizade. “Aquele trabalho que fiz como assistente não foi invisível, mesmo não sendo pago, nem sendo a estrela principal. Foi essa a lição que eu tirei: por mais pequenas que as coisas pareçam, devemos sempre dar o nosso melhor”, afirma.
Lembra-se do primeiro desfile como diretor criativo como se fosse hoje. Diogo Miranda também tinha acabado de chegar e o trabalho conjunto entre criador e hairstylist arrancou do público as melhores reações. As manequins pareciam saídas do anúncio daquele champô, com ondas glamorosas e atitude confiante. Em Portugal, o lugar ao sol estava conquistado, mas Vasco nunca quis ficar por ali.
Baixar os braços? Nem por isso. Perdeu a cabeça, criou um site, uma espécie de portefólio online, e voltou a bombardear agências internacionais, só que desta vez as graúdas. Pouco tempo depois, estava a ser chamado para um desfile da Dolce & Gabbana em Milão, faz agora seis anos. “Senti-me uma casca de laranja no chão há uma semana”, conta. E começou tudo outra vez do início, tal como tinha acontecido em Portugal. O trabalho do português saltou à vista de Luigi Murenu nos bastidores de um desfile de Viktor & Rolf, em Paris. A partir daí, o português juntou-se à trupe. “A seguir, Givenchy em Nova Iorque foi muito marcante. Penteei a Katy England e a Carine Roitfeld. Hoje, chego a qualquer backstage do mundo e conheço 70% das pessoas. O Ricardo Tisci vem ao Porto e liga-me. É bom, sinto-me um cidadão do mundo”, explica.
Hoje, Vasco Freitas é o único hairstylist português a fazer o circuito completo das principais semanas da moda mundiais. De soldado raso, como costuma dizer, passou a elemento fixo de uma das equipas do momento, num universo dominado por cinco grandes nomes. São três meses de trabalho sem uma única folga, 22 voos por estação e outras duas temporadas pelo meio, a de homem e a de alta-costura, para não falar no próprio salão que abriu no Porto. Topo da carreira? Nada disso. Vasco diz que precisa de mais cinco anos. “No início, ser português foi uma desvantagem. O meu portefólio não contava, não tinha visibilidade internacional. Hoje, sinto que é cá que continuo a ter de provar o que valho”, revela.
No Portugal Fashion, o trabalho é de imersão total, até porque há uma equipa de 50 pessoas para dirigir e cada desfile do calendário é um briefing. Para Vasco, a melhor parte é mesmo aquela em que entra dentro da cabeça dos designers e ajuda a transportar os conceitos e inspirações das coleções para os cabelos. “A mim, dói-me sempre a barriga, mas é normal. Quero ver a coisa à acontecer, ter a certeza de que não há percalços”, afirma. Anseia pelo dia em que vai desempenhar este papel no desfile de uma grande casa. O limite é o céu, mas o céu de Vasco chama-se Dior.