Nélson Veríssimo saiu do Benfica esta temporada, mas não pode apagar os dez anos ligado ao clube da Luz onde contabilizou duas passagens pelo comando técnico da equipa principal. Na época passada, obteve um terceiro lugar no Campeonato e atingiu os quartos de final da Liga dos Campeões na liderança dos encarnados, caindo frente ao Liverpool. Esta temporada, deixou o Benfica para rumar ao Estoril e atribuiu “mérito completo” ao título de campeão a Roger Schmidt, o treinador que o substituiu, lembrando que, no ano passado, “o contexto foi diferente”. Lançou Gonçalo Ramos na equipa principal e acolheu João Neves e António Silva na equipa B, permanecendo um profundo conhecedor da estrutura de formação do Seixal.
Ao todo, o Benfica tornou-se campeão nacional com dez jogadores da formação. Como conhecedor da estrutura de formação do Benfica, os jovens foram um impulso necessário para a conquista do título?
Não quero estar a diferenciar os jovens. O grupo todo acabou por dar uma resposta muito positiva às exigências do Campeonato. Sendo jovens ou mais experientes, ao fim e ao cabo, o que acaba por contar é a qualidade, intensidade, interpretação dos diferentes momentos do jogo. Face àquilo que é a história do Benfica em relação à projeção de jovens jogadores, há sempre uma visão mais orientada para a formação. É evidente que, olhando para aquilo que foram os jogadores com minutos no plantel este ano, que até acabou por culminar com a entrada do Samuel Soares, vimos que há um lote alargado de jogadores que fizeram parte da formação do Benfica que integram esta equipa campeã nacional. No meio disto tudo, há grande mérito do treinador [Roger Schmidt], porque acabou por conseguir conjugar aquilo que é a qualidade dos mais jovens com os mais experientes.
Lançou vários jogadores made in Seixal na equipa principal do Benfica. No que toca à segunda passagem, falamos de nomes como Paulo Bernardo, Tomás Araújo, Henrique Araújo, Tiago Gouveia e Sandro Cruz e manteve a aposta noutros, como o caso do Gonçalo Ramos. Na relação custo/benefício, o que pesa mais no lançar de jogadores menos maduros?
É sempre o mesmo desafio. Ao fim e ao cabo, o treinador não tem em conta a idade, mas sim a qualidade. É entender o momento do jogador no sentido de perceber se ele está pronto ou não a dar uma resposta positiva no contexto da equipa A, porque a exigência é grande. No caso do Benfica, há grandes diferenças nas questões da qualidade e intensidade entre aquilo que é o contexto competitivo da equipa B e o contexto da equipa A. Cabe ao treinador em causa perceber se o jogador está apto a dar uma resposta positiva ou não. É engraçado verificar que, olhando para aquilo que foi o lançar de jogadores, o António Silva acaba por não ter um volume muito elevado em termos de utilização na equipa B [quatro jogos] e o próprio João Neves não tem muitos jogos na equipa B [11]. Isto contraria a ideia, que existia no passado, de que um jogador, para estar preparado para dar uma resposta positiva ao nível do contexto de equipa A, tinha que ter um determinado número de jogos na equipa B.
Porquê?
Só prova que há jogadores que acabam por estar mais preparados do que outros para terem uma resposta positiva na equipa A. O treinador da equipa A acaba por ter uma visão mais objetiva e pormenorizada relativamente aos jogadores e entende que, naquele momento, face às necessidades, aquele jogador está apto, pelo menos, para ter uma oportunidade. Tem que haver um trabalho conjunto, ao nível da formação, para proporcionar um lote de jogadores que, a qualquer momento, possa estar disponível no imediato para que o treinador da equipa principal os possa ir buscar.
Quando um jogador jovem chega à equipa principal, há um cuidado especial, uma certa tolerância ao erro em treino, para que o jogador se ambiente a um contexto completamente diferente dos Sub-19, Sub-23 e equipa B?
Mais do que tolerância, é perceber que os jogadores vêm de uma realidade diferente. Quando chegam à equipa A, onde a exigência é maior e a equipa tem sempre que ganhar, é natural que possa haver ali alguma tolerância face ao erro. Da mesma forma que, com um jogador que venha de fora, mesmo que não seja tão novo, mas venha de um contexto competitivo diferente, também tem que haver essa tolerância. Ao fim e ao cabo, o jogador tem que se adaptar rapidamente. O Benfica tem que ganhar sempre, porque o objetivo da equipa A é ser campeã nacional.
Tem algum caso de jogadores que tenha chamado à equipa A e que não tenha correspondido devido a essas dificuldades?
Cada jogador tem o seu tempo. Naquilo que é a visão que temos sobre os jogadores da formação, facilmente um treinador consegue identificar talento. Agora, cada jogador tem o seu momento. Para mim, o António Silva e o João Neves são dois casos que acabam por contrariar a lógica face ao que disse sobre a utilização que eles não tiveram no patamar imediatamente abaixo na equipa B. Isto não é uma crítica. Aqui a questão é simples: o treinador da equipa A olhou para os jogadores que estavam mais em baixo e entendeu que lhes devia dar oportunidades. Responderam de forma fantástica.
Esses casos surgem devido à lógica de estrutura, ou seja, o contacto direto entre os treinadores das várias equipas?
Completamente. Em termos de projeção de talento, certamente o António Silva e o João Neves estariam no grupo de jogadores que toda a gente da estrutura acreditava que podiam chegar à equipa A e podiam dar uma resposta positiva. Agora, ninguém tinha a certeza de que podia acontecer tão cedo. Há jogadores que, se calhar, naquele momento, face àquilo que é o contexto e as condições da equipa, acabam por não dar uma resposta tão favorável e há outros que não se está à espera que deem uma resposta tão positiva e acabam por dar. O mister Roger Schmidt falou dos casos do Tomás Araújo e do Tiago Gouveia que são jogadores que foram emprestados e, provavelmente, na próxima época, vão ter oportunidade de integrar a fase inicial do estágio.
Muitos dos jogadores que se sagraram campeões nacionais pelo Benfica estavam no plantel nos cinco meses em que esteve na equipa principal na época passada. Ainda há algum dedo seu nesta equipa ou a transformação foi total?
O mérito completo é do treinador [Roger Schmidt] que montou a equipa muito bem. Soube reforçar a equipa em função da ideia de jogo dele para fazer face às ambições no campeonato. O ano passado já lá vai. O contexto foi diferente. Em relação a esta época, mérito total do treinador e do presidente que conseguiram montar uma equipa forte e que deu as alegrias à estrutura, aos sócios e aos simpatizantes.
Não deixa de ser curioso que o Gonçalo Ramos tenha sido o segundo melhor marcador do Campeonato (o melhor do Benfica) e tenha sido uma grande aposta de Schmidt.
Acabei por ser o treinador que lançou o Gonçalo Ramos há quatro anos. Isso aconteceu porque o Gonçalo tem qualidade. Às vezes, as coisas são tão evidentes que o treinador só não aposta por uma questão de timing. Acabei por ser eu que lancei o Gonçalo Ramos. É verdade que, na época passada, o Gonçalo foi uma aposta mais evidente a partir de janeiro. O mister Jesus também já o tinha usado bastantes vezes. Nestas questões, o mérito tem que ser sempre atribuído ao jogador. O treinador, às vezes, acaba por fazer aquilo que é o mais evidente. Estávamos a falar dos exemplos do António Silva e do João Neves. O talento estava lá, o treinador viu o talento e, no momento em que achava que tinha que apostar nesse talento, apostou. Depois, foi o que todos nós vimos.
No Estoril, fez dois jogos contra o Benfica com três dias de diferença. Foram encontros difíceis de preparar?
O Benfica acabou por começar o Campeonato muito bem. O treinador teve uma influência muito grande na construção da equipa, da ideia de jogo e da dinâmica ofensiva que implementou. Com o decorrer do campeonato, o Benfica acabou por ser uma equipa dificílima de controlar. No Estoril, defrontámos o Benfica para a Liga e para Taça num curto espaço de tempo. No primeiro jogo, tivemos muitas dificuldades [derrota por 5-1] e isso traduziu-se no resultado desnivelado. O Benfica, pela dinâmica que tinha na altura, percebia-se qual era o objetivo, qual era a ideia. Depois, o problema é contrariar essa ideia ofensiva. Acabámos por fazer um jogo bastante melhor para a Taça de Portugal [derrota por 1-0]. Houve um crescimento da nossa equipa, mas o Benfica acabou por fazer dois bons jogos.
No jogo do Campeonato, o António Silva estreou-se a marcar pelo Benfica na competição. Foi aí que a surpresa passou a ser uma confirmação?
O António Silva estava no grupo de jogadores que se acreditava que podiam chegar ao alto nível e o alto nível é chegar à equipa A. A resposta consistente que deu já esta época é que pouca gente esperaria, pelo menos, eu não esperava. A verdade é que o António fez uma época muito regular. Acabou por fazer dois golos nesse jogo contra o Estoril. Isso só confirmou a consistência dos passos que ele vinha a dar. Claro que a equipa em si também contribuiu para essa consistência no crescimento das suas exibições ao longo do campeonato. É importante que a equipa em si tenha estabilidade suficiente para garantir algum suporte no momento em que estes jovens são lançados e o Benfica, este ano, conseguiu.
Também o João Neves estava nesse grupo restrito de jogadores que a estrutura acreditava que podiam dar o salto?
No tempo em que estive no Benfica, o João Neves estava nos Sub-19 e Sub-23. Treinou algumas vezes com a equipa B, mas não foram muitas. Estamos a falar do António e do João Neves, mas há outros jogadores que se acredita que possam chegar a esse patamar. O João Neves era já um desses jogadores que, em termos de projeção, estava nesse lote dos que podiam atingir um nível alto.
Se considerou o António Silva uma surpresa, acredito que o João Neves tenha sido uma surpresa ainda maior.
O João Neves tem uma mentalidade competitiva muito forte. Há jogadores dos Sub-19 e dos Sub-23, que quando vão à equipa B pela primeira vez, deixam uma marca diferenciadora e não têm vergonha no sentido que não têm receio de chegarem e imporem o seu jogo na forma como dividem as bolas, na forma como partem para situações de um contra um. Há jogadores que deixam essa marca. O João Neves foi um desses jogadores. Quando treinou pela primeira vez, acabou por deixar essa marca. Não é fácil um miúdo que vem dos Sub-19/Sub-23 entrar no contexto de equipa B e atirar-se ao treino e aos exercícios sem vergonha nenhuma. Atacar, defender, dividir a bola no ar… Esses jogadores deixam uma marca diferenciadora. Aconteceu com o João Neves, como aconteceu com o João Carvalho, como aconteceu com o Rúben Dias.
Associou características ao João Neves que não condizem com as características físicas dele. É diferenciado nesse aspeto?
O João Neves, num dos primeiros treinos que fez com a equipa B, numa situação de canto, fez um golo de cabeça. Pensámos: “O que é que se passa aqui?”. Claro que já tínhamos essa informação em função das reuniões com os treinadores dos Sub-19 e Sub-23. Aconteceu uma vez e, noutras bolas paradas, viu-se que era um jogador que se posicionava bem dentro da área, que tinha um bom tempo de salto. Apesar da estatura, era um jogador que conseguia abordar bem estas situações. Isto no contexto de equipa B, ou seja, deixou de fazer isto com colegas da mesma idade para o fazer com colegas mais velhos. A partir daí, nota-se logo que está ali um jogador diferenciado. A questão é a regularidade. O João Neves, apesar da estatura que tem, muito à semelhança do João Vieira Pinto, também tem bastante sucesso em situações de bola parada.
Qual é a diferença entre ser treinador da equipa B ou da equipa principal?
O treinador da equipa B tem que se posicionar num contexto em que percebe que está a receber jogadores dos Sub-19 e dos Sub-23 que vêm da formação e, ao mesmo tempo, está a orientar uma equipa que está a preparar os jogadores para passarem para o contexto profissional. Vejo a equipa B como a transição. Não nos podemos esquecer que a equipa B compete numa liga profissional. Diria que é um treinador que tem que estar muito focado naquilo que é o desenvolvimento individual e coletivo. A questão do desenvolvimento individual é importante, porque estamos a chegar ao mais alto nível e a preparar os jovens jogadores para darem uma resposta positiva quando o treinador da equipa principal pretender contar com eles.
E se esse não for o caminho?
Se esse não for o caminho, estamos a preparar os jogadores para abraçarem uma carreira fora de portas. Aliado a isso, há que ter em conta a classificação na Segunda Liga. O treinador da equipa principal vai ter sempre que ganhar. O Benfica, face à história do clube, tem que lutar por todos os títulos. Obviamente que também tem que ter uma grande preocupação em relação ao que é o desenvolvimento individual e da equipa, porque vitória fica mais próxima se os jogadores e a equipa forem mais fortes. Equipa A: ganhar, ganhar, ganhar. Na equipa B, essa também é uma preocupação, mas, nos pratos da balança, está ao mesmo nível o ganhar e a preparação e desenvolvimento individual dos jogadores.
Acredito que tenha desenvolvido um olhar especial para detetar talentos mais escondidos. Este ano, no Estoril, acaba por lançar o Tiago Santos que foi uma das grandes revelações do campeonato e que está a ser associado a grandes clubes [Benfica e Sporting]. Em termos de características futebolísticas, o que é que ele tem que melhorar para chegar às equipas do topo e o que é que ele já tem para se enquadrar nas exigências desses clubes?
O Tiago, mais conhecido por Derlei, é um jogador muito competitivo. Não o conhecia em termos de dia a dia. Foi uma das surpresas esta época no Estoril. Percebemos que havia ali um jogador com muito potencial e que podia ser diferenciado. Foi crescendo ao longo da época. É um jogador robusto fisicamente, tem uma chegada ao último terço muito dinâmica, com muita consistência e muita regularidade. Em função daquilo que é a idade dele, há coisas que tem que melhorar. É um jovem jogador que é uma esponja e vai beber tudo aquilo que lhe dão. Vai ter que evoluir muito, mas isso faz parte. Se mantiver a mentalidade competitiva e a sede de crescimento, pode chegar a patamares diferenciadores no alto rendimento. Tem que fazer esse crescimento de forma sustentada e com os pés bem assentes na terra. O problema destes casos é quando os nomes começam a ser associados aos altos voos. Depois eles acabam por não saber lidar. O Tiago, fruto do conhecimento que temos dele, é um jogador muito consciente daquilo que é a realidade.