Discurso de Catarina Martins
A preparação da convenção foi um processo de debate e construção de ideias que se estendeu por 4 meses, com reuniões e debates em todo o país e mobilizou muitas e muitos ativistas.
Neste discurso dedicado sobretudo a um extenso balanço do seu consulado, acompanhado por algumas notas para o futuro, Catarina Martins dá pouca atenção às divisões do Bloco de Esquerda, que motivaram a apresentação de uma candidatura alternativa à de Mariana Mortágua. Este é um dos poucos momentos em que tenta arrumar um dos principais ataques que os críticos lhe fazem: a convenção foi antecedida por um processo de longo debate interno, assegura, contrariando quem dentro do partido aponta a falta de discussão e até um défice de democracia interna como marcas da sua direção. E também da provável direção futura: a moção A, de Mariana Mortágua, só aceitou fazer um debate público e rejeitou as propostas de órgãos de comunicação social para organizar novos encontros.
Não preciso de vos dizer da inteligência, combatividade e entrega do Francisco Louçã. Mas deixem-me que vos fale também da sua enorme generosidade. Soube estar presente sempre que precisei, mas também dar-me todo o espaço do mundo para que a coordenação do Bloco não fosse uma substituição impossível, mas uma nova construção coletiva. E foi assim o Francisco, como o Luís Fazenda e o Fernando Rosas. De formas diversas, reinventaram a sua intervenção no Bloco e ensinaram-nos que as gerações não se atropelam nem se substituem, acrescentam-se.
Catarina Martins tinha uma missão espinhosa quando assumiu a liderança do Bloco: recebeu-a das mãos de Francisco Louçã — que, à saída, deixou a solução da liderança bicéfala, composta por Catarina Martins e João Semedo, em cima da mesa — e, num tempo em que o Bloco de Esquerda vinha de uma pesada derrota eleitoral e tentava curar divisões internas, a nova líder precisou de se impor. Não era fácil suceder à figura de peso de Louçã, mas é por isso mesmo que frisa que teve do antigo líder — que é muito próximo da provável nova líder, Mariana Mortágua — “todo o espaço do mundo” para ganhar o seu lugar e não tentar fazer uma “substituição impossível”. Por entre vários agradecimentos, Catarina Martins nomeia todos os fundadores do Bloco — fala depois em Miguel Portas — para deixar um recado: a renovação é positiva e também tem a ver com as mulheres do Bloco, que “não aturam o paternalismo” de outras épocas. O Bloco será o primeiro partido a eleger duas mulheres como coordenadoras seguidas. A seguir, será o tempo de a própria Catarina Martins gerir a sua intervenção dentro do partido, pós-liderança.
Na sua fundação, o Bloco começou por enfrentar grandes desafios e não era só mudar o mapa político. Era apoiar a luta pela independência de Timor e enfrentar várias guerras: aquela com que a Nato destruiu a Jugoslávia e as invasões do Afeganistão e do Iraque. Na nossa fundação está a luta pela autodeterminação dos povos. Quero lembrar por isso as vozes de quem fundou o Bloco por nunca terem hesitado nesse princípio de combate a todos os imperialismos em nome dos povos.
Aqui está outro recado para os críticos: apesar de estar a criticar a NATO, Catarina Martins frisa que entre os princípios da fundação do Bloco está “a luta pela autodeterminação dos povos” e, mais importante do que isso, um combate a todos os imperialismos. Ora este é um dos pontos que distinguem as duas moções: os críticos têm uma posição mais dura em relação ao papel dos Estados Unidos e dizem mesmo que não se pode falar em imperialismo russo, porque o poderio das duas potências não é comparável. Direção e críticos acabam, no fundo, a trocar a mesma acusação: ambos acusam o outro lado de estar a trair o historial de posições geopolíticas e até os princípios do Bloco.
E quero deixar também um agradecimento ao líder parlamentar do Bloco, Pedro Filipe Soares, pela sua capacidade de diálogo, pelo rigor na luta pelas questões fundamentais que definem o nosso programa, pela forma como organiza a nossa voz no parlamento e pela solidariedade nos dias de trabalho tão longos e duros que partilhamos.
O agradecimento a Pedro Filipe Soares pareceria um cenário quase impossível há nove anos, quando os dois se enfrentaram numa convenção que partiu o Bloco ao meio e que deu em empate. Mas é uma nota importante: no partido a convicção é que Catarina Martins e Pedro Filipe tiveram um papel fundamental em gerir com prudência o embate e, sobretudo, o pós-embate, conseguindo acalmar as respetivas fileiras e evitar uma guerra fratricida a tempo.
Ao fazer agora esta última intervenção como coordenadora do Bloco de Esquerda, não ouçam uma despedida. Termino um mandato, continuo a caminhar aqui. Como sempre. E se olho este percurso, muito mais do que balanço do passado, quero tomar balanço para o futuro.
Se há uma garantia que se ouve nos corredores do Bloco, é que Catarina Martins está muito longe da reforma política. Aliás, se Mariana Mortágua for eleita, a ex-líder continuará na direção do partido. Por agora diz querer “descansar”, mas boa parte do Bloco partilha o desejo de que venha a apresentar-se em novas eleições pelo partido, sejam europeias ou presidenciais, por exemplo, assim como a convicção de que a década à frente dos comandos do Bloco fez de Catarina Martins um ativo político muito forte — mesmo com os desaires eleitorais dos últimos anos.
Falo-vos, por isso, do que não desistimos nunca de conquistar e do que conseguimos com a força do Bloco de Esquerda nestes anos. Conseguimos a vinculação de dezenas de milhares de pessoas que trabalhavam para o Estado e que não tinham um dia de férias pago por serem precárias. (…) Foi em nome dessa coerência que promovemos e assinámos os acordos da geringonça, que ajudámos a salvar o país da direita, e não nos submetemos nunca à ideia peregrina de que bastaria um “acordo de cavalheiros” para um compromisso de medidas.
A estes exemplos seguem-se muitos mais: Catarina Martins dedica boa parte do longo discurso ao balanço das conquistas das suas direções, colocando ao peito do Bloco a medalha de ser tratado como “inimigo” por pessoas como Ricardo Salgado. Depois, explica que foi em nome da “coerência” de querer fazer mudanças reais no país que o Bloco avançou para a geringonça, com uma farpa ao PCP, que sempre disse que só assinou acordos formais por imposição do então Presidente da República, Cavaco Silva: para o Bloco, seria uma ideia “peregrina” confiar apenas num acordo de cavalheiros. E o partido continua a querer “toda a força da esquerda junta”, sem sectarismos, garante Catarina Martins: o momento é de oposição ao PS, mas no partido não se exclui a hipótese de voltar aos tempos de diálogo mais para a frente.
Vivemos tempos difíceis. E não estou a falar do Bloco. É certo que a derrota eleitoral do ano passado deixou feridas. Mas volto a dizer o que já me ouviram: não nos arrependemos da coerência.
É o argumento a que o Bloco recorre para justificar a decisão de chumbar os Orçamentos do PS, acabando por levar à queda do Executivo: não só o fez por coerência — os dirigentes estavam convencidos de que a negociação já não estava a levar a lado nenhum e que o Governo cedia em medidas menores, ou não as cumpria de todo — como estava consciente de que iria ser castigado nas urnas. Catarina Martins diz que o Bloco voltaria a tomar a mesma opção e que “respeita” quem tenha votado no PS há um ano, mas também acrescenta que já sente a recuperação do Bloco na rua e que “até as sondagens” já reconhecem. Aos poucos, mas o Bloco acredita que, com tempo e com os erros cometidos pelo PS, lá chegará.
António Costa recusou qualquer acordo à esquerda em 2019 para dois anos depois provocar uma crise política e ter maioria absoluta. Foi uma artimanha de que saiu vencedor. E agora não sabe o que fazer com a sua vitória e é consumido pela pior de todas as situações: o governo pouco faz e não tem desculpa nenhuma, pediu todo o poder de uma maioria absoluta e num ano e meio desbaratou a confiança de boa parte dos seus eleitores.”
Aqui começa a secção do discurso dedicada ao ataque ao PS e a António Costa: desbaratou a confiança dos eleitores, não sabe o que fazer à maioria absoluta, está paralisado, vitimiza-se, tornou-se “padrasto” do populismo e não responde aos problemas de fundo, além de ter ficado convencido de que com a maioria chegara o seu “momento cavaquista”. Para o Bloco, ouro sobre azul: o partido quer afirmar-se no confronto e na oposição à maioria absoluta e assiste com satisfação aos erros que estão a ser cometidos pelo PS, na esperança de que os arrependidos da maioria absoluta voltem aos seus braços.
O maior perigo talvez esteja mesmo neste jogo de espelhos em que os avanços são sempre simbólicos e a vida concreta é sempre um recuo. (…) Divide o povo e alimenta o ódio quem quer convencer o pobre que a culpa da sua situação é do mais miserável, ou do imigrante, ou da mulher. Mas também divide o povo, porque alimenta as ervas daninhas do ressentimento, quem proclama vitórias enquanto o povo sente a vida a andar para trás.
É um dos argumentos que o Bloco mais tem atirado contra o PS: o partido do Governo, acusa, está a alimentar propositadamente o Chega para se mostrar como alternativa a uma possível aliança de direita — e com isso tenta esmagar a esquerda, concentrando em si o voto útil. E esse será um dos maiores desafios que o Bloco terá em mãos para o futuro. Depois, Catarina Martins aponta o caminho que o partido deve seguir: juntar-se às “mobilizações” na rua para dar gás à contestação social ao Governo, até porque vê um país “farto” das chantagens do PS. Seja pela Habitação, em manifestações feministas ou antirracistas e por aí fora, o Bloco quer agarrar essas bandeiras.