A última vez que Pione Sisto tinha sido notícia em Portugal remonta a agosto de 2022, quando o Benfica defrontou o Midtjylland na terceira pré-eliminatória de acesso à Liga dos Campeões e o avançado dinamarquês até marcou um golo na Luz. Quase um ano depois, Pione Sisto voltou às páginas dos jornais portugueses — e o motivo não poderia ter sido mais inusitado.
Morte de bebé de um ano em seita espiritual de Coimbra investigada pelo Ministério Público
Numa história inicialmente adiantada pela revista Visão, Sisto foi revelado como o dono do terreno onde está instalado o auto-denominado Reino do Pineal, uma seita espiritual com sede em Seixo da Beira, Oliveira do Hospital. A comunidade conta com dezenas de pessoas, entre homens, mulheres e crianças, procura desconectar-se do mundo exterior sob as orientações de um líder e filósofo de origem britânica e exige a Portugal que reconheça a autonomia do território.
Nos últimos dias, a história saltou ainda mais para a atualidade quando o jornal Expresso revelou que o Ministério Público está a investigar Água Akbal Pinheiro, o tal líder e filósofo de origem britânica, pela morte do próprio filho de pouco mais de um ano, em abril do ano passado. A relação entre Pione Sisto e o Reino do Pineal, para além da óbvia ligação imobiliária, era desconhecida até esta quinta-feira — dia em que o jogador decidiu clarificar que tem conhecimento do que se passa em Seixo da Beira. Este, contudo, é apenas mais um capítulo na vida atribulada de um avançado dinamarquês que chegou a ser dos nomes mais promissores do futebol europeu.
Do campo de refugiados no Uganda à seleção da Dinamarca
Um dia, mais cedo do que tarde, a história de Pione Sisto vai dar um filme. E esse destino, a ideia de que nunca nada seria linear e previsível na vida de Pione Sisto, estava traçado deste o início. Pione Sisto Ifolo Emirmija nasceu em fevereiro de 1995, há 28 anos, num campo de refugiados em Kampala, a capital do Uganda. Os pais, porém, eram naturais do Sudão do Sul — tinham fugido, assim como milhares de outros sul-sudaneses, da guerra civil que assolava o país.
Dois meses depois de Pione nascer, a família recebeu a tão esperada autorização para viver na Dinamarca. E seria bem longe, no país escandinavo, que Sisto acabaria por descobrir uma paixão pelo futebol que o levou a ser jogador profissional. Sempre muito virado para o ataque, para os golos e para a criação das oportunidades que provocam os golos, começou a dar nas vistas aos sete anos, no modesto Tjørring IF. As boas exibições na formação levaram-no a assinar pelo Midtjylland em 2010, já com 15 anos, integrando as camadas jovens de um dos principais clubes da Dinamarca.
Estreou-se na liga dinamarquesa com apenas 17 anos, marcando o primeiro golo na equipa principal nessa mesma temporada, e em 2014 foi desde logo eleito o Jogador do Ano. Em 2014/15, depois de superar uma lesão que o afastou dos relvados durante algum tempo, foi crucial para a conquista do primeiro Campeonato da história do Midtjylland. Sisto era uma das próximas next big things do futebol europeu — e a imprensa dinamarquesa da altura indicava que Barcelona, AC Milan, Juventus e Arsenal estavam a seguir o avançado, com o Ajax a fazer mesmo uma proposta de sete milhões de euros que acabou recusada.
A ascensão meteórica de Pione Sisto começou a abrir questões naturais na Federação Dinamarquesa de Futebol, onde a naturalização do jogador se tornou um dos dossiês mais prementes — até por ser um pedido expresso de Morten Olsen, o então selecionador dinamarquês. Tornou-se cidadão da Dinamarca em dezembro de 2014 e foi desde logo convocado para os Sub-21, assinando um hat-trick na estreia internacional e representando o país no Campeonato da Europa do escalão.
A convocatória para a Seleção A era uma questão de tempo e chegou em setembro de 2015, com o avançado a estrear-se num jogo de qualificação para o Euro 2016 contra a Albânia. Daí para a frente, tornou-se uma figura habitual e recorrente nas chamadas da Dinamarca: algo que também fez dele uma cara que personalizava a luta dos movimentos dinamarqueses que defendiam o acolhimento de migrantes em plena crise dos refugiados.
Em junho de 2015, ainda antes de ser convocado para a Seleção A e quando marcou um golo decisivo que valeu uma vitória da Dinamarca contra a República Checa no Europeu Sub-21, Sisto foi lançado como protagonista pelo jornal Ekstra Bladet, que aproveitou a boa exibição do avançado para desenhar a manchete “Hoje dá vitórias à Dinamarca, mas já foi refugiado”. A história do jogador foi acompanhada pela hashtag #EngangVarJegFlygtning, “já fui refugiado” em dinamarquês, e tornou-se viral num ano em que o país passava por importantes eleições legislativas.
“Não é um statement político. São dois factos. O facto de ter dado uma vitória à Dinamarca e de ter um passado enquanto refugiado, em conjunto com a família. Se algumas pessoas o interpretam como político, bem, que o façam. O desporto e a política são e sempre serão inseparáveis. É muito ingénuo pensar de forma diferente”, disse, na altura, o editor de Desporto do jornal dinamarquês.
As boas prestações com o Midtjylland e com a seleção da Dinamarca motivaram uma expectável transferência para Espanha em 2016, com Pione Sisto a assinar com o Celta Vigo por cinco temporadas a troco de cinco milhões de euros. Marcou 12 golos nas duas primeiras épocas, entre mais de 30 jogos por ano, e teve até a oportunidade de disputar as meias-finais da Liga Europa. De forma natural, foi convocado para o Mundial da Rússia. E não voltaria a ser o mesmo.
O ponto de viragem no Mundial da Rússia
Na Rússia e ainda na fase de grupos, a Dinamarca venceu o Peru na jornada inaugural mas somou dois empates dos outros dois jogos, contra Austrália e França. Os dinamarqueses até garantiram o apuramento para os oitavos de final, sendo aí eliminados pela Croácia, mas as exibições não convenceram. E a prestação de Sisto, de forma algo particular, foi muito criticada.
Ainda durante o Campeonato do Mundo, o avançado recorreu às redes sociais para desabafar. “Pione Sisto. A pessoa mais odiada na Dinamarca durante o Mundial. Não ignorem os haters. Confiem em mim. Eles são os vossos melhores amigos”, escreveu o jogador, numa publicação que chocou a opinião pública dinamarquesa e que teve uma espécie de esclarecimento, novamente no Instagram, quando a seleção foi eliminada e regressou a casa.
“Continuam à procura de haters. Não existem. Peço desculpa. Só existem vocês. Vocês são os vossos piores haters e inimigos. Só vocês é que estão a travar-vos. Já percebi isso. Percebi isso muito bem! Foi a minha maior lição depois do Mundial. Tive de mudar a forma como olhava para mim próprio para não me destruir mentalmente, fisicamente e emocionalmente. Tive de me aceitar. Tive de confiar em mim. Tive de me amar incondicionalmente. É essa a razão pela qual estou tão agradecido. O ódio a nós próprios é o nosso principal inimigo”, partilhou Sisto. A destruição mental, física e emocional, porém, só tinha começado.
O rendimento do avançado caiu a pique na época seguinte, tendo marcado apenas dois golos em todas as competições, e o mês de maio de 2019 trouxe um novo sinal de alerta. Novamente nas redes sociais, Sisto anunciou que tinha passado os 21 dias anteriores a realizar uma dieta em que só comia fruta, reconhecendo que tinha “perdido o controlo” e que tinha “o subconsciente perdido no escuro”.
“Tenho de ser honesto comigo e com vocês. Este regime era muito intenso e há dois dias que o deixei. Perdi o controlo dos pensamentos e das emoções e, honestamente, fiquei um pouco louco”, indicou o jogador. A pandemia de Covid-19 e o consequente confinamento decretado em Espanha pioraram um estado de vórtice negativo que já era notório e Pione Sisto, em maio de 2020, pegou no próprio Mercedes branco e conduziu de Vigo até à Dinamarca. A viagem não autorizada, acompanhada pela violação das regras de distanciamento e deslocação vigentes no Celta — em Espanha e entre muitos países europeus — valeu-lhe uma multa de 60 mil euros. Em setembro, foi anunciado que os espanhóis tinham decidido vender o jogador de volta ao Midtjylland.
O regresso a casa e o primeiro grande desabafo
O regresso ao clube foi envolto em alguma polémica, já que Pione Sisto também negociou com o Copenhaga, rival do Midtjylland, acabando por decidir voltar onde já tinha sido feliz. “Foi o meu coração. O meu coração escolheu o Midtjylland. Descobri que sempre foi o meu desejo, mas às vezes somos testados. Há sempre mais pressão quanto és o Pione”, explicou, referindo-se a si mesmo na terceira pessoa.
No es la primera vez que sucede. Hace 6 años, los padres de Pione Sisto interrumpieron la conferencia de prensa en la que se anunciaba su convocatoria a la selección Sub-21 de Dinamarca. Este tipo de danza de celebración es tradicional en Sudán. https://t.co/PN2gYXALYN
— David Mosquera (@renaldinhos) September 7, 2020
Na apresentação como reforço dos dinamarqueses, a sala de imprensa do estádio foi “invadida” pelos pais e outros familiares de Pione Sisto, que interromperam a conferência para realizar um ritual tradicional do Uganda. O momento não foi uma surpresa total, já que a família do jogador já tinha protagonizado exatamente o mesmo episódio na primeira conferência de imprensa em que este participou como elemento da seleção Sub-21.
Pela mesma altura, Sisto decidiu dar uma longa entrevista ao Politik e abrir o livro sobre vários temas: a depressão em que caiu durante o Mundial da Rússia, as saudades da família quando se mudou para Espanha e o racismo que sofreu enquanto era adolescente e jogava nas camadas jovens do Midtjylland.
“O melhor que posso dizer sobre os últimos dois anos começa com uma história: não gostei de estar no Campeonato do Mundo, nem um bocadinho. Só queria ir para casa. Nem sequer é mentira. E isso já explica um bocadinho o momento em que eu estava. Só queria mesmo ir para casa. Não queria saber como é que as coisas corriam, se fôssemos eliminados estava tudo bem. Não desfrutei absolutamente nada de uma experiência que deveria ter sido fantástica”, revelou o avançado, que cumpriu apenas três jogos em todas as competições na última temporada.
Mais à frente, na mesma entrevista, Sisto sublinhou a ideia de que tinha passado por dois anos particularmente difíceis. “Tive muita dificuldade para encontrar felicidade nos últimos dois anos. E não fui feliz, de todo, em 2018. Sentia que o meu corpo estava prestes a colapsar. Para além disso, tive alguns problemas privados que gostaria de guardar para mim. Mas tudo isso criou uma depressão enorme. Estava completamente destruído. Não sabia o que fazer”, acrescentou.
Foi precisamente em 2020, no ano desta entrevista, que Pione Sisto cedeu o terreno que tinha comprado na antiga Quinta dos Sete Poços, em Seixo da Beira, Oliveira do Hospital. Nesse mesmo local, nesse mesmo ano, instalou-se a seita espiritual que se auto-denomina Reino do Pineal — cujo líder, Água Akbal Pinheiro, está a ser investigado pelo Ministério Público devido à morte do próprio filho de pouco mais de um ano, em abril de 2022. A ligação entre Sisto e o Reino do Pineal, porém, era totalmente desconhecida até esta quinta-feira, dia em que o jogador decidiu clarificar que tem conhecimento do que se passa na Quinta dos Sete Poços.
“Tenho recebido muitas mensagens sobre a minha relação com a Fundação Pineal em Portugal. Deixem-me ser claro. Sou uma atleta, um empreendedor e um filantropo. Acima de tudo, sou um homem espiritual que acredita num bem maior. Vivo a minha vida com o objetivo de me melhorar a mim e ao mundo, de todas as formas que conseguir. A Fundação Pineal é um dos muitos projetos espirituais, culturais, ambientais e ecológicos a que dediquei o meu tempo e a minha energia. Sou patrono da Fundação Pineal porque fiquei inspirado pela sua filosofia, pelos seus ideais e princípios e pela forma como vivem a vida […] Enquanto a Fundação Pineal continuar a viver de acordo com os seus ideais e princípios, de forma legal, pacífica e espiritual, vou continuar a apoiar os seus esforços de todas as formas que conseguir”, escreveu Sisto no Instagram.