Cinco semanas. Dez crimes. O Verão como fundo. E no Observador o melhor alibi das suas férias
É o que vai encontrar em Crimes quase Perfeitos, deste sábado, 4 de Agosto, até domingo, 2 de Setembro
São quase cinco da tarde. Na Rua das Olarias, paredes meias com a Mouraria, Carlos Pereira acaba de se levantar. O facto de trabalhar de noite numa padaria justifica diante dos demais habitantes da casa onde reside essas sestas pela tarde fora. Carlos Pereira é um dos hóspedes do número 3 da Rua das Olarias. Quem sabe, depois de se arranjar, Carlos vá até à Rua dos Lagares dar uns dedos de conversa, tomar qualquer coisa…
Enfim aproveitar as horas de sol que ainda sobram nesse entardecer de Outubro lisboeta. Em 1972, a vida de um padeiro, mesmo jovem, não permitia grandes distracções: saía para trabalhar quando os outros se juntavam em casa e regressava para descansar quando a cidade fervilhava de vida.
Mas fosse com que projectos fosse, Carlos Pereira sai do quarto onde ainda dorme o José António, padeiro como ele e também como ele um dos hóspedes com os horários às avessas naquele primeiro andar, do nº 3, da Rua das Olarias. Mal sai do quarto, Carlos – pelo menos assim o dirá à polícia – dirige-se à sala da casa e é então que depara com o corpo da dona da casa de hóspedes caído chão. Ela está inanimada ou a ele tal lhe parece. Grita pelo José António que logo acode. Isto apesar de José António dizer que o seu sono é muito pesado, detalhe nada irrelevante nos factos que nos dias seguintes vão andar nas bocas da Mouraria e nas páginas dos jornais.
Mas voltemos a esse entardecer de 6 de Outubro de 1972. Mais precisamente ao momento em que no primeiro andar do nº 3 da Rua das Olarias, Carlos Pereira e José António se confrontam com o corpo inanimado de Laura Rei, assim se chamava a voluntariosa dona da casa de hóspedes onde habitavam os dois padeiros.
Estão os três no que para uns é a sala da casa e para outros um quarto, pois em todos os cantos e recantos daquele andar se anichavam camas, divãs e colchões. Laura está caída no chão com a cabeça ensanguentada. Os dois rapazes tentam reanimá-la. Como nada conseguem, apressam-se a chamar uma ambulância para a levar até ao quase vizinho Hospital de São José.
No chão uma mancha de sangue confirma a tese que rapidamente se espalha como tinta em papel mata-borrão pela Rua das Olarias, Travessa do Terreirinho, Calçada do Monte…: Laura Rei, a dona da casa de hóspedes da Rua das Olarias, caíra e perdera os sentidos.
Enquanto Laura Rei é levada para o hospital o bairro repete como numa prece – Deus queira que em São José os médicos consigam fazer alguma coisa por ela! Uma mulher tão trabalhadora! Com o seu feitio (e quem não o tem?!) mas séria como já não se usa! – e recorda a jovem vistosa de cabelos fartos e riso aberto que há mais de vinte anos aí chegara na companhia do marido, o Emílio a quem a Mouraria rapidamente chamou Misérias.
Laura nascera no norte, numa localidade da raia próxima de Monção. Como tantos outros, o jovem casal veio para a capital em busca de melhor vida. Valha a verdade que a vida em Lisboa de Laura Rei dificilmente podia ter tido começo mais difícil: o Misérias, talvez para fazer justiça à alcunha, começara por não garantir o sustento da família. Em seguida rumara para o Brasil donde, como era seu hábito, não fez chegar vintém. Também não mandou notícias e isso sim era uma novidade com que Laura Rei teve de lidar.
Laura fica na Mouraria com dois filhos pequenos para criar: a Maria Cândida e o Manuel Emílio. Não tinha dinheiro nem trabalho. Mas a vida não lhe metia medo. A casa onde vive torna-se no seu ganha-pão. Passou a alugar quartos e, quem sabe, talvez para fugir à miséria, não descansou enquanto não transformou aquele primeiro andar num labirinto de quartos partilhados; divãs que se abrem, fecham e guardam atrás das portas; camas que se montam em qualquer canto… Cabia sempre mais uma pessoa! E assim, naquela casa da Mouraria acabaram a viver doze hóspedes que se apresentam como padeiros, serralheiros, empregados do comércio, vigilantes e um guarda da PSP. Se eram “pobres mas honrados” ou “gente remediada” são classificações pitorescas que para o destino de Laura Rei não adiantam nem atrasam mas ajudam a perceber a vida naquela casa de hóspedes (e nas outras). A própria proprietária, Laura, não só dormia na sala como a partilhava com um hóspede mas isso, dizia-se no bairro, não era tanto para escapar da miséria mas sim para esquecer o Misérias.
Estava a Mouraria neste quem conta um conto sempre acrescenta um ponto quando do Hospital de São José chega a notícia que faz brotar as lágrimas e a roupa preta sair das gavetas: Laura Rei está morta. Na verdade entrara já cadáver no hospital.
No primeiro andar da Rua das Olarias os hóspedes vestem-se de luto mais ou menos rigoroso. Espera-se a chegada da filha emigrante em França para se fazer o funeral. Ninguém fala em crime. A ida de um agente da Polícia Judiciaria à casa de hóspedes fora vista como uma mera formalidade. (Terá algum dos hóspedes reparado na atenção que o agente do piquete da PJ dedicou a uma moldura com espelho partido na sala-quarto de Laura Rei?) Aliás não falta nada em casa: em cima dos móveis continuava o dinheiro e os pertences que dona Laura se recusava a guardar fechados porque, dizia ela (e ai de quem a contrariasse!) na sua casa de hóspedes só havia gente séria.
Estava-se assim neste tempo difuso que, pelo menos na parte do mundo onde nos coube viver, constitui a despedida a um morto, quando uma notícia colhe todos de surpresa: Laura Rei fora morta a tiro. Ou seja, na Rua das Olarias tivera lugar um crime, para mais um crime com arma de fogo: na moldura que enquadrava o espelho partido foram detectados vestígios de bala.
O que dizia a bala atrás do espelho
A autópsia efectuada na Medicina Legal confirma que Laura Rei morrera em consequência de uma bala lhe ter perfurado o crâneo: a bala entrara pelo parietal direito, saíra pelo occipital e fora alojar-se na parede donde é retirada pela PJ cujos agentes passam a vasculhar a casa de hóspedes. Logo à partida é descartada a hipótese do suicídio: o traçado da bala era incompatível com a posição de alguém a disparar contra si mesmo.
Mas a balística diz mais: a arma que disparara a bala era de calibre 7.65, ou seja a bala fora disparada por uma arma não permitida a civis. Resumindo e confundindo: Laura Rei fora assassinada com uma arma policial.
Na Rua das Olarias o espanto não podia ser maior. Por ali como na vizinha Mouraria não eram raras as facadas por motivos que as autoridades diziam fúteis. Algumas brigas resolvidas à pancada por razões prontamente esquecidas. Estrangulamentos executados por mãos que se diziam apaixonadas. Mas tiros? E para mais tiros disparados por uma arma policial? E ninguém ouviu os tiros? E ninguém viu o polícia? E donde aparece um polícia neste caso?
Na verdade há um polícia na casa de Laura Rei: é seu hóspede. Mas no dia do crime ele, Mário Fernandes de seu nome, não estava em casa e é fácil confirmá-lo: o agente em causa fora fazer um exame. Não foi armado. Deixou a arma no quarto, dentro de uma pasta. Mas foi precisamente dessa arma que saiu a bala que matou Laura Rei.
Vasculhar a pente fino a vida de Laura Rei e os passos dos seus doze hóspedes nesse dia 6 de Outubro de 1972 é a etapa que se segue.
Cruzando o horário do almoço com o das sestas dos padeiros mais o testemunho do vizinho do andar debaixo que diz ter ouvido um pouco antes das três da tarde, vindo da casa de hóspedes, um barulho “como se fosse a queda de algo pesado” e do carteiro que declara ter batido à porta do número 3 da Rua das Olarias pouco depois das quinze sem que ninguém o atendesse é definida a hora do crime: 14h45m.
Dos doze hóspedes de Laura Rei os suspeitos ficam assim reduzidos aos que estavam na pensão na tarde da sua morte ou mais propriamente ao grupo dos sonos trocados. E quem faz parte desse grupo? Os dois padeiros (Carlos Pereira e José António) que se deitavam a seguir ao almoço e encontraram Laura Rei inconsciente. E um vigilante nocturno de um banco que se deitava manhã cedo e se levantava ao princípio da tarde e que nesse dia 6 após ter almoçado aproveitara para ir tratar de um assunto relacionado com a sua carta de condução
Depois há o grupo daqueles que podiam ter um interesse directo na morte de Laura Rei e que declarando não estar em casa às 14h45m a ela podiam ter regressado como era o caso do sr. Coelho, o hóspede que partilhava o quarto com Laura Rei e que alguns diziam ter discutido com ela, outros que se “dava” com ela e outros ainda ambas as coisas. O sr. Coelho não só desmentia todas estas versões como se declarava ofendido na sua reputação pois, explicava desolado aos jornalistas, se acabara a partilhar a sala-quarto com Laura Rei fora porque ela tinha tanto medo de ficar sozinha de noite que a própria filha acabara a pedir a este hóspede de confiança (era o sr. Coelho, funcionário de uma tesouraria pública, quem ajudava Laura Rei com as contas da casa onde ele se instalara há onze anos) que aceitasse colocar o seu divã na sala onde dormia a mãe.
E o Ben-Hur entrou no crime das Olarias
E depois há o Manuel Emílio, o filho de Laura Rei e do “Misérias”. Manuel Emílio tem 20 anos. Não se recorda do pai na casa da rua das Olarias. Aprendeu a profissão de montador de estores mas as fitas que o cativavam não eram as dos estores mas sim as do cinema. E assim nesse mesmo dia 6 de Outubro Manuel Emílio saiu de casa depois de almoçar, foi tomar tomar uma bica e um bagaço, jogou dominó no Café Avis e para acabar a tarde em beleza dirigiu-se para o Royal onde na matinée passava então o “Ben Hur”.
Não se sabe se Manuel Emílio pensou por breves minutos nas suas obrigações enquanto diante dos seus olhos se desenrolava não uma persiana mas sim a épica corrida de carros de cavalos que punha à prova a perícia de Ben-Hur (Charlton Heston) enquanto condutor de quadrigas. Mas não restavam dúvidas de que Manuel Emílio tinha todas as condições para ser o mais óbvio suspeito da morte da sua mãe: como ele mesmo confessa (e o bairro confirma) discutiam frequentemente por causa de dinheiro. Dinheiro que Laura tinha. Dinheiro de que Manuel Emílio precisa e que a mãe não lhe empresta.
A par disto, que já não é pouco, outro dado complica ainda mais a vida de Manuel Emílio: ele sabe que existe uma arma na casa onde vive. O guarda da PSP, o hóspede Manuel Fernandes, até a tinha mostrado na manhã desse mesmo dia 6 a ele e ao padeiro José António. Mas depois, garante o Manuel Emílio, o guarda colocou a arma no seu sítio habitual e foram almoçar.
Em abono de Manuel Emílio acorrem apenas o Ben-Hur – no cinema Royal confirmam que na hora em que Rua das Olarias Laura Rei era baleada, estava o Manuel Emílio à espera que a cortina subisse – e, por ironia, o dinheiro espalhado pela casa. Afinal se ele Manuel Emílio tivesse matado a mãe por causa do dinheiro não tirava nada? Pois se ele mesmo Manuel Emílio punha as coisas deste modo era difícil contrariá-lo.
De quem seria então a culpa? Do hóspede que partilhava o quarto-sala com Laura Rei e sobre quem corriam boatos acerca do relacionamento que mantinha com Laura Rei?
Ou seria dos padeiros? Afinal um deles, o José António, vira a arma nessa manhã. E Mário Vítor, o vigilante nocturno na casa bancária teria ido mesmo tratar de um averbamento na carta de condução? E não poderia o agente da PSP uma vez terminado o tal exame, ter voltado à rua das Olarias e disparado a sua arma sobre a sua senhoria?…
Os dias passam. O crime da Rua das Olarias começa a tornar-se mistério.
A PJ confirma álibis: o agente da PSP e dono da arma fora de facto fazer o tal exame. Mário Vítor, o vigilante nocturno na casa bancária, estivera mesmo a tratar da sua carta de condução. O Manuel Emílio não saíra do cinema e o senhor Coelho não estava nas imediações. Sobravam portanto os padeiros, sobretudo o José António que nessa mesma manhã estivera com o Manuel Emílio a contemplar a arma.
Seguem-se interrogatórios e mais interrogatórios.
Até que a 18 de Outubro alguém diz: fui eu.
A meia-hora decisiva
Ele é um hóspede. Ele trabalha de noite. Ele estava na casa de hóspedes na hora da morte de Laura Rei. Ele sabe da arma. Mas não é um dos padeiros mas sim Mário Vítor, o vigilante nocturno.
Mário Vítor tem 27 anos. Chegou à casa de hóspedes da rua das Olarias há sete meses. Partilha um quarto com o agente da PSP. Aliás ele mesmo já fora agente da PSP. Nesse dia 6 de Outubro, enquanto recuperava da noite de trabalho (ele dormia de manhã) viu o agente Fernandes da PSP tirar a arma da pasta onde a guardava e mostrá-la ao filho de Laura Rei e a um dos padeiros. Em seguida viu-o guardar a arma de novo.
Chegou a hora do almoço. Mário Vítor é um dos hóspedes com cama, mesa e roupa lavada. Almoça, portanto. Depois cada um ruma à sua vida: o agente Fernandes da PSP foi para o exame. O Manuel Emílio para o cinema, que as persianas avariadas podiam esperar mais um dia. Os padeiros deitaram-se. Passa já das duas e meia. A casa cai no torpor da tarde. Apenas Laura Rei está a pé. Não é difícil imaginá-la na lida que uma casa daquelas devia dar.
E é então que Mário Vítor procura Laura Rei. Mas não saíra ele para tratar da carta de condução? Não. Ele só vai sair dentro de meia-hora. E na verdade só o faz para arranjar um álibi. Antes ele foi mais uma vez tentar a sorte junto de Laura Rei. Não é a primeira vez que o faz. Mais uma vez ela rejeita os avanços daquele hóspede pouco mais velho que o seu filho e que desde que chegara à rua das Olarias não deixava de tentar chamar-lhe a atenção. Laura Rei não é mulher para se deixar intimidar. Só que nesse dia Mário Vítor leva consigo a arma do seu companheiro de quarto. Laura repele-o. Ele dispara. Laura Rei cai no chão. No andar debaixo o vizinho ouve o som abafado de algo que cai.
Durante uns momentos Mário Vítor espera que apareça alguém atraído pelo som do disparo. Mas nada. Na pensão das ruas das Olarias o torpor das tarde de sesta mantém-se.
Mário Vítor recolhe a arma. Vai para o seu quarto. Limpa a arma e guarda-a na pasta.
Em seguida sai do quarto. Fecha atrás de si a porta da rua e vai tratar do averbamento na carta de condução. Passou meia hora. A meia hora que o fez cair em contradições sucessivas nos interrogatórios da PJ e por fim confessar.
O resto já se sabe: pelas três e pouco o carteiro bate e ninguém o atende. Mais de uma hora depois um dos padeiros acorda…