Nem as férias parlamentares à porta aqueceram o debate do estado da Nação. Os “casos e casinhos” no Governo, as críticas recentes sobre o posicionamento relativo à corrupção e os dossiê da TAP eram temas que, logo à partida, estavam à mão da oposição para aquecer o ambiente, mas nenhuma intervenção foi capaz de mudar a história do debate. António Costa esteve longe das performances agressivas em que dispara para todas as direções, a oposição não se destacou ao ponto de levar o primeiro-ministro a precisar de se expor e no fim do debate acabou tudo por ficar mais ou menos na mesma.
O Governo levou para o Estado da Nação a ideia de um país que está bem (“com problemas”, mas bem) em quase todas as áreas, um Portugal de resultados positivos e reconhecidos (e nem entende como a oposição não o vê). E a oposição está longe de compreender o estado das coisas (“Este Governo não tem noção do estado da Nação”): da saúde à habitação, passando pela educação e pelo custo de vida, tudo foi motivo de crítica. No final do dia, que é quase o final do ano legislativo, o debate foi morno, pouco emotivo — e nem sequer houve anúncios do Governo, algo raro já que o primeiro-ministro costuma fazer questão de marcar as presenças em debates relevantes com uma carta que traz na manga.
Os desígnios
O primeiro-ministro deixou um caderno de encargos para a segunda metade deste mandato e definiu 9 “desígnios”: modernizar o tecido produtivo (duplicar tecnológicas), combater as alterações climáticas (reduzir 55% as emissões de gases com efeito estufa), melhorar o sistema de ensino (investimento de 60 mil euros por aluno em centros tecnológicos), garantir o direito à habitação (26 mil novos fogos até 2026), aumentar alojamento estudantil (mais 18 mil camas), combater pobreza (retirar 600 mil da pobreza), qualificar respostas sociais, reforçar a coesão territorial, convergir com UE na dívida pública (ficar abaixo dos 100% do PIB).
A duração
Mais de 200 minutos. Começou às três da tarde e acabou já depois das sete, mais de quatro horas de debate parlamentar, como é habitual.
O regressado (ao telefone com a direita)
Menos de uma hora depois de ter começado o debate, Pedro Nuno Santos já era referido no hemiciclo, pelo deputado do Chega André Ventura, que lembrou o capítulo da localização do novo aeroporto de Lisboa e o despacho revogado. Lá atrás, na última fila, o ex-ministro (que chegou com 14 minutos) reclamava, em direção a Ventura: “Que obsessão!”. Mas a deixa não foi desperdiçada e o próprio primeiro-ministro pegou nela para falar não só de Pedro Nuno, mas também de outra deputada ex-governante, Marta Temido, com ironia à mistura: “A atender ao que se lê na imprensa, os dois ministros que saíram com muita pena minha estão muito mais populares agora do que eram quando eram membros do meu Governo.” Mas o foco estava todo em Pedro Nuno que, na última fila do plenário, foi usando o telefone fixo que tinha à frente para ligações a várias bancadas: foram longos os minutos em que esteve a conversar, entre sorrisos, com André Ventura ou Filipe Melo, do Chega, ou com Carlos Guimarães Pinto, da IL. Já para não falar dos vários deputados socialistas que o visitam na última fila. Uma operação de charme, no regresso ao Parlamento, onde não parece escapar nenhum canto do espectro político.
A frase
“Portugal só está melhor, se os portugueses estiverem melhor”. Era a frase que o PS trazia no bolso para atirar para cima da mesa e tentar incomodar o PSD de Luís Montenegro, hoje líder mas também autor do original “a vida das pessoas não está melhor, mas o país está melhor”, dito em 2014, em plena crise da troika. António Costa foi o primeiro a falar no assunto e mesmo antes de ouvir a linha de ataque que os social-democratas traziam para atirar de volta, a acusação de “ter a marca do empobrecimento”. Joaquim Miranda Sarmento tocou mesmo no nervo, ao ir ao Governo de Sócrates quando “os portugueses conheceram a bancarrota socialista e agora, com António Costa, conheceram o empobrecimento socialista”, apontando sobretudo ao aumento da carga fiscal como causa de todos os males.
A (curta) resposta à corrupção
Não disse muito. Foi mais uma repetição do habitual “à política o que é da política e à justiça o que é da justiça”, mas tendo em conta que tem fugido do tema Marco Capitão Ferreira, António Costa aproveitou para esclarecer que Portugal é um “país onde ninguém está acima da lei” (obviamente com governantes incluídos). Costa disse que “o Ministério Público goza de autonomia”, que “o sistema judicial é independente” e que se impõe o “princípio da presunção de inocência” — todas as referências servem o tema do caso do secretário de Estado que se demitiu, mas também de Rui Rio — o PSD ainda pediu a António Costa que se pronunciasse, mas não serviu de muito. No seguimento ainda disse que não adivinhava que “inquéritos é que decorrem” quando nomeia alguém e defendeu os seus ex-governantes: “Dos quatro membros que saíram do Governo nenhum teve a ver com atos praticados no exercício de funções.”
A fábula
Na narrativa de António Costa coube ainda outro argumento, para lá do tiro anterior, que foi atirar à “retórica política da oposição, contrapondo a ação do Governo”. Disse mesmo que a oposição “discursa a dizer o que falta, mas nós trabalhamos para que deixe de faltar”. Parecia a fábula da cigarra e da formiga, mas quem se lembrou dela foi o PSD, com Hugo Carneiro a tentar virar a história a favor da oposição: “A cigarra é o Governo, a formiga são as famílias e as empresas”.
A tirada polémica
A casa da democracia voltou a assistir a um momento que mereceu uma reprimenda do presidente da Assembleia da República. Outra vez o suspeito do costume. “Queríamos um país que fosse a maior casa de família da Europa, o senhor primeiro-ministro quer fazer disto a maior casa de alterne da Europa.” Os apupos foram instantâneos e transformaram-se em aplausos quando Augusto Santos Silva tomou a palavra: “Essa frase é absolutamente excessiva.” António Costa não perdeu a oportunidade, não perdeu a cabeça (como noutras ocasiões idênticas), mas descreveu o momento como “degradação da democracia”.
O diabo à esquerda
António Costa colou Mariana Mortágua à direita para pedir que não siga a ideia de que há um diabo sempre prestes a chegar. A coordenadora do Bloco de Esquerda (que mereceu um cumprimento especial pela eleição) tinha atacado o Governo: um programa Mais Habitação que “já fracassou”, um país que “não vai perdoar ao Governo a maior instabilidade de todas” e uma situação “catastrófica” que a publicidade “não vai resolver”. Pediu “prudência” àquela que foi uma peça-chave na altura da geringonça e não ficou pelas meias palavras: “Não se coloque relativamente à maioria absoluta como a direita se colocou relativamente à nossa relação comum, antevendo sempre que o diabo vem aí só porque há maioria absoluta.”
Vale a pena ligar
Depois de no último debate ter ficado ofendido quando António Costa o desafiou a vacinar-se contra o populismo, Rui Tavares não deixou o primeiro-ministro esquecer-se da maldade, mas dedicou-se essencialmente a escancarar as portas ao diálogo. Mostrou-se esperançoso de que as reuniões que o Governo teve com os partidos da oposição não tenham sido apenas uma “resolução de ano novo” de Costa e, na resposta, o primeiro-ministro deixou via aberta para toda e qualquer “postura construtiva” — em especial para o “vizinho”: “Sempre que quiser reunir comigo tem o meu telemóvel há muitos anos, é só ligar.” Noutra bancada, Inês Sousa Real bem esticava o braço a pedir também abertura socialista para o diálogo com o seu partido, mas neste debate os olhos de Costa estavam postos no deputado do Livre.