Foram quase 11 horas de debate parlamentar que acabaram com um high five significativo já fora da sala do plenário. O debate na generalidade do Orçamento do Estado para este ano está feito e o final já estava contado mal o PS conseguiu uma maioria absoluta nas legislativas. O número de deputados socialistas chegava e sobrava para dar luz verde à proposta do Governo. Mas este dia e meio de debate foi feito de tiradas, avisos políticos, anúncios, promessas e até vinganças.
O Observador deixa-lhe aqui o essencial do que se passou no debate do OE2022.
O resultado
O high five final entre António Costa e Duarte Cordeiro, já nos Passos Perdidos e acabada de aprovar a proposta de Orçamento, foi acompanhado de um “foi uma boa campanha”, atirado por António Costa ao seu diretor de campanha nestas legislativas. Seis anos depois de ter sido nomeado primeiro-ministro pela primeira vez, uma sensação nova para Costa que vê, assim, um Orçamento aprovado sem serem necessárias negociações prévias com a esquerda. A maioria absoluta do PS foi suficiente e nem foi preciso estarem todos os 120 deputados eleitos pelo partido presentes na sala na altura da votação.
A duração
Quase onze horas de debate parlamentar, um dia e meio. E ainda falta tudo. Esta foi só a primeira parte do tratamento parlamentar que o Orçamento do Estado tem pela frente antes da aprovação final global que está marcada para 27 de maio. No próximo mês, os ministros vão ser ouvidos pelas respetivas comissões da especialidade, os partidos vão poder apresentar propostas de alteração à proposta do Governo (até 13 de fevereiro) e, depois de tudo, haverá uma semana de debate e votações na especialidade (artigo a artigo) até ao dia final da última votação. O calendário da Assembleia da República prevê que a redação final do Orçamento esteja pronta a meio de junho e, só nessa altura, seguirá para a promulgação do Presidente da República. A entrada em vigor estará apontada para julho.
O anúncio
António Costa voltou a aproveitar um debate parlamentar para fazer um anúncio relacionado com os preços dos combustíveis. Desta vez, a novidade foi sobre uma descida do Imposto sobre Produtos Petrolíferos (ISP), que Costa vendeu como sendo sinónimo de uma quebra no preço final ao consumidor de 20 cêntimos por litro, a partir de segunda-feira — viria a acrescentar que essa comparação é com outubro, o que faz toda a diferença. É que, como o Observador escreveu, ainda que o preço final vá mesmo descer, não será uma queda tão grande (face à semana anterior), desde logo porque essa estimativa já tem em conta as reduções temporárias do imposto introduzidas pelo Governo desde outubro. Aliás, segundo anunciou o ministério das Finanças esta sexta-feira, a redução do ISP vai fazer a gasolina descer 15,5 cêntimos e o gasóleo 14,2 cêntimos.
Preço final dos combustíveis vai descer, mas menos que os 20 cêntimos de redução do imposto
Na área da Defesa, e depois de ter sido confrontado várias vezes sobre os investimentos nesse dossiê, Costa anunciou a criação de um “contrato intermédio para funções específicas”, um “quadro permanente de praças para funções técnicas que não justificam ser assumidas em regime de contrato” e o alinhamento da formação nas forças armadas com o sistema geral de qualificações.
Os outros dois anúncios foram da responsabilidade da ministra da Saúde. Marta Temido revelou que, em junho, as taxas moderadoras acabarão em todo o serviço de saúde, exceto nas urgências não referenciadas ou que não originem internamento. E prevê que a adjudicação da construção do novo Hospital de Lisboa Oriental aconteça em julho.
Os avisos
Foi uma expressão constante no debate, usada por várias bancadas parlamentares para avisar o Governo que maioria absoluta não deve ser sinónimo de falta de diálogo interpartidário. Um dos avisos veio do ex-parceiro da gerigonça, Jerónimo de Sousa, que vê na proposta de OE um “exemplo da teimosia própria das maiorias absolutas” por “recusar” as “soluções para os problemas nacionais”. Jerónimo atirou mesmo que “só por cima da maioria absoluta do PS” é que o “percurso” feito nos últimos ano pode ter “continuidade”. Catarina Martins, do Bloco, também não poupou nas palavras: “Esta legislatura só tem um mês e há já uma evidência. A maioria absoluta abandonou a maioria do povo”.
Rui Tavares, num tom menos agressivo, mostrou disponibilidade para negociar com o Governo no âmbito da especialidade, mas avisou que só estar à “frente do pelotão” não chega, usando uma expressão de Cavaco Silva: é preciso ir além. Para isso, o Governo deve negociar com outros partidos. Até porque “não há maior trincheira do que uma maioria absoluta”.
As melhores tiradas
Num debate parlamentar há sempre apartes e tiradas que marcam o ritmo da discussão. O ministro Pedro Nuno Santos é um íman para esse tipo de momentos e desta vez não foi diferente. Fez rir o plenário quando disse, sentido, a Mariana Mortágua (noutros tempos parceiras de “geringonça”) que lhe tinha feito “uma maldade” por o “categorizar como um liberal”. Logo ele, que se sentou à mesa com a esquerda, nesses tempo pré-absolutista dos acordos escritos com PCP, BE e Verdes. É também um novo tempo, este em que o homem mais à esquerda do PS tem pegas com a esquerda à esquerda do PS.
Pouco depois, novamente Pedro Nuno Santos que, numa resposta a Paulo Moniz do PSD, fez novamente rir o plenário. O deputado social-democrata acusou-o de transformar a TAP numa “verdadeiramente incineradora do dinheiro dos impostos de portugueses”, calculando que tenham sido pagos pelos portugueses 4,4 milhões de euros por dia em 2021. Logo de seguida disse ter pena, porque até tem “alguma simpatia” por Pedro Nuno enquanto membro do Governo, começando agora “a temer” que o dinheiro colocado na TAP seja uma “incineradora política” para o ministro. “Corremos o risco de daqui a um ano já não estar nessas funções”, disse, apontando ainda que podia alguém estar a rir-se na bancada do Governo.
Na bancada, estão vários possíveis sucessores de António Costa na liderança do PS e Pedro Nuno começou logo a rir para Fernando Medina (um deles) e o ministro da Finanças a responder também com um sorriso trocista. Quando tomou a palavra, desafiou Moniz: “Se tem essa simpatia por mim e não quer que seja incinerado, tem uma solução: apoiar-me.”
Por fim, uma pequeníssima tirada de Augusto Santos Silva — não podia passar incólume na relação que está a estabelecer com a bancada do Chega — depois de ouvir Diogo Pacheco Amorim a dizer-lhe que não desejaria estar no lugar de Santos Silva. Do alto do plenário, ouviu-se a voz de Santos Silva: “É recíproco”. A bancada do PS soltou gargalhadas.
A vingança
A vingança serve-se fria, diz o ditado popular; e foi isso mesmo que o PS fez questão de provar à esquerda, exatamente sete meses depois do chumbo que fez cair o Governo – e que lhe viria a dar a maioria absoluta. Bastou ouvir, no púlpito onde se ouviam antes promessas de diálogo e compromisso, Ana Catarina Mendes a descrever os antigos parceiros como “irresponsáveis” e António Costa a ironizar e desafiar Catarina Martins a “orgulhar-se” do passado conjunto – mas também os constantes apartes na bancada do PS (quando a líder do Bloco acusou a maioria PS de abandonar a maioria do povo, deputados socialistas atiravam que “o povo é que abandonou”… o Bloco). A tensão esteve alta, mas por muito que a esquerda apontasse defeitos ao Orçamento e acusasse o Governo de usar a “língua morta” da austeridade e da direita (expressão da líder bloquista), do outro lado ouvia, inevitavelmente, uma resposta: os portugueses escolheram – até “referendaram” – este Orçamento e este Governo absoluto. Não há qualquer vestígio de sintonia entre os antigos aliados.
O pai da austeridade
Já foi chamado de “Centeno de Rui Rio” e agora Joaquim Miranda Sarmento é também o homem que um dos candidatos à liderança do PSD convidou para coordenar a sua moção de estratégia global ao congresso do partido. No debate acusou o PS de ser o pai da austeridade, ao dizer (entre outras acusações) que no PEC 4, de 2011, já constava o corte de pensões — “num ano, aplicaram dez mil milhões de austeridade e qual foi o resultado final: trouxeram a troika. O PSD mandou-a embora. O pai da austeridade é o PS”.. Foi uma batata quente atirada de um lado para o outro, entre as bancadas do PS e a do PSD. Quem é afinal mais pai da austeridade que vigorou entre 2011 e 2013?
Não houve conclusões. Mas o PS jura a pés juntos que o que traz agora não é austeridade, embora a oposição tenha passado boa parte do debate a apontá-la ao dizer que são insuficientes as medidas para aplacar os efeitos da inflação.
O novo diabo
É o “diabo” dos novos tempos: antes era a crise que a direita dizia que chegaria com a governação socialista, agora é a inflação que ameaça as contas e, sobretudo, o poder de compra dos portugueses. E a oposição não perdoou: da esquerda à direita, os partidos insistiram que com uma inflação nos 7,2% em abril que não é compensada por aumentos de salários e medidas fortes de atenuação só pode mesmo chamar-se “austeridade” – ou “empobrecimento”, ou “perda de poder de compra”, ou “abandono do povo”, ou até “Cátia Vanessa”, como ironizava o bloquista José Soeiro, perante a resistência do Governo em assumir frontalmente os efeitos dramáticos da perda de poder de compra. Nada feito: Costa insistiu que não é o seu Orçamento que provoca a inflação, mas antes o instrumento que a tentará mitigar, e saiu do debate sob uma enxurrada de críticas nesta matéria mas sem promessas para combater o “forte choque inflacionista”, além das que já eram conhecidas.
O diabo veste-se de inflação. O primeiro dia do debate do Orçamento
O aplauso maior(ia)
O mundo político mudou. Se dúvidas houvesse, bastaria olhar para a imagem dos deputados do Bloco de Esquerda e do PCP, levantados das suas cadeiras ao mesmo tempo que os do outro lado do hemiciclo – PSD, IL e Chega – para votar contra o Orçamento. Ora, os deputados do PS constataram jocosamente o mesmo e, perante a imagem, muitos não resistiram a rir-se e até lançar comentários irónicos: “Olha, juntinhos!”. Nas outras bancadas, a imagem de Inês Sousa Real, do PAN, e Rui Tavares, do Livre, a levantarem-se para assinalarem a abstenção também provocou risos e exclamações de fingida surpresa – já se sabia que ambos se iriam abster e que desejam dialogar com o Governo na especialidade. Os dois mostraram fair play e riram-se também.
Uma curiosidade: é verdade que a aprovação do documento na generalidade era mais do que anunciada, ou não tivesse o PS sozinho os votos necessários para isso. Ainda assim, é obviamente necessário que os partidos que querem votar contra votem na mesma, facto de que Augusto Santos Silva pareceu esquecer-se por momentos, depois de perguntar quem votava a favor e quem se abstinha. Passado uns segundos de silêncio, o presidente da Assembleia da República lá voltou a tomar a palavra para perguntar quem votava contra e ver, sem surpresas, deputados da esquerda à direita de pé, mas sem votos suficientes para travar o documento.
O protesto
O presidente da Assembleia da República teve ainda de voltar a intervir, durante a votação, para mandar acalmar os ânimos. Quando perguntou quem votava contra, constatou que havia pessoas nas galerias que se tinham levantado também — e recordou que os visitantes nas galerias, naturalmente, não votam. Não se tratava de um qualquer grupo de visitantes: nas galerias tinham-se levantado representantes da Frente Comum (incluindo o líder Sebastião Santana). Logo de seguida, deputados e governantes olharam para o piso de cima, onde outro grupo gritava por “mais salários”. Os elementos da PSP na Assembleia da República apressaram-se a mandar as pessoas que protestavam sair da sala.