De dois em dois anos, África pára para assistir ao melhor futebol do continente e à coroação do novo campeão da Taça das Nações Africanas. A CAN arranca este sábado, meses depois do inicialmente agendado para fugir à época das chuvas na Costa do Marfim, e conta com três treinadores portugueses e vários jogadores que atuam na Primeira Liga.
A acontecer em território costa-marfinense pela primeira vez desde 1984, a CAN faz parte do processo de reestruturação de um país que viveu duas guerras civis no espaço de dez anos e que aprovou uma nova Constituição em 2016. Foram construídos quatro estádios, renovados outros dois, e o apoio financeiro e pragmático da China é evidente e assumido na criação das novas infraestruturas.
Marrocos, seleção que fez história no Qatar ao tornar-se o primeiro país africano a chegar às meias-finais de um Campeonato do Mundo, parte como favorita à conquista da CAN. Ainda assim, é preciso não esquecer o Egito de Rui Vitória, a Nigéria de José Peseiro ou o Senegal de Aliou Cissé. Ou a própria Costa do Marfim, onde atua o leão Diomande, que vai cimentar no apoio doméstico a grande força para repetir a glória de 1992 e 2015.
Costa do Marfim, um país anfitrião à procura de se reencontrar (com uma ajuda da China)
Entre os séculos XV e XVI, os exploradores portugueses e franceses dividiram a costa ocidental de África em quatro “costas” cujos nomes refletiam os principais recursos existentes naquele território: a Costa da Pimenta, a atual Libéria, a Costa do Ouro, o atual Gana, a Costa dos Escravos, atuais Togo, Benim e Nigéria, e a Costa do Marfim, que nunca deixou de ter o título agora centenário.
Localizado entre a Guiné, a Libéria, o Mali, o Burquina Faso e ainda o Gana, o país tem fronteira marítima com o Oceano Atlântico a sul. Alcançou a independência em 1960, depois de ter sido uma colónia de França durante vários séculos, e teve uma estabilidade política e institucional assinalável nas décadas seguintes. Um golpe de Estado em 1999, porém, atirou a Costa do Marfim para uma guerra civil que durou de 2002 a 2007, repetindo-se o conflito interno entre 2010 e 2011.
Atualmente, o país é liderado pelo presidente Alassane Ouattara desde 2010, tendo aprovado uma nova Constituição em 2016, e tem procurado reconstruir-se na última década de paz. Ainda assim, os efeitos sociais, económicos e estruturais de quase 10 anos de guerra são visíveis – e a organização da Taça das Nações Africanas, a CAN, faz parte do plano de reestruturação de uma nação que precisa de voltar a gostar de si mesma.
Ainda assim, o processo de atribuição da CAN à Costa do Marfim teve alguns solavancos. O país foi o escolhido para receber a competição em 2021, mas a Confederação Africana de Futebol (CAF) acabou por optar por atribuir o evento aos Camarões. Os costa-marfinenses ainda apresentaram um protesto formal junto do Tribunal Arbitral do Desporto, mas acabaram por aceitar a mudança na sequência de uma reunião entre a própria Federação e a CAF.
Mas esta não foi a única mudança. Inicialmente, a próxima edição da CAN estava marcada para o verão de 2023, mas acabou por ser adiada para o atual mês de janeiro para evitar a época das chuvas na Costa do Marfim. Ao todo, o país vai receber a competição mais de dois anos depois do previsto. Um atraso que até poderá ter facilitado o processo.
“Hoje consigo ver que tivemos algum benefício com o atraso, ainda que eu ache que teríamos estado prontos em 2021 se tivéssemos de estar. Mas continuo a achar que é um ato de graça divina o facto de aqui estarmos hoje, com infraestruturas que foram concluídas de forma bastante melhor e graças a todos os testes realizados. Tivemos tempo para testar tudo tecnicamente, em termos de controlo de multidões e segurança. Estamos prontos”, explicou Touré Nimba, do ministério do Desporto costa-marfinense, à BBC.
A CAN mudou muito desde que a Costa do Marfim organizou a competição pela última vez – em 1984, quando só integrava oito equipas, sendo que atualmente inclui 24 – e o país teve de investir essencialmente em infraestruturas. O plano passou por expandir e renovar os já existentes Felix Houphouët Boigny Stadium e Stade de la Paix e construir outros quatro, incluindo um novo Estádio Nacional em Abidjan, a maior cidade e o verdadeiro centro económico do país.
O Alassane Ouattara Stadium, batizado com o nome do presidente costa-marfinense, tem 60 mil lugares e tornou-se desde logo um dos maiores estádios de África. Vai receber o jogo inaugural da CAN já este sábado, entre a Costa do Marfim e a Guiné-Bissau (20h, SportTV5), e também será o palco da final do próximo dia 11 de fevereiro. O pormenor? O estádio foi desenhado pelo Instituto de Design Arquitetural de Pequim e construído pelo Grupo de Construção e Engenharia de Pequim, duas entidades estatais chinesas.
A parceria não é uma surpresa e também não é caso único em África, já que a China também esteve ligada à construção de estádios no Gabão, em Angola, no Mali e nos Camarões. A ideia é naturalmente implementar uma esfera de influência no continente africano, abrindo a porta a alguma interdependência ao nível das importações e exportações, e teve como selo de aprovação a visita do presidente Alassane Ouattara a Pequim em 2016, quando as obras no novo estádio começaram.
Os 24 penáltis e a angariação de fundos do Níger: uma competição com história(s)
Entre o futebol, as cores nas bancadas e a alegria que está sempre associada ao evento, a CAN é conhecida pelas histórias menos ortodoxas e os momentos mais inesperados. E a próxima edição já conta com um episódio: durante a viagem rumo à Costa do Marfim, depois de um estágio de preparação na Arábia Saudita, o avião que transportava a seleção da Gâmbia tinha o ar condicionado avariado e as altas temperaturas, associadas à falta de oxigénio a bordo, levaram a que vários jogadores adormecessem, com o piloto a acabar por decidir aterrar de emergência.
“Inaceitável. Assim que entrámos no pequeno avião que foi contratado para nos levar, notámos o calor imenso que nos deixou a pingar suor. Foi-nos garantido pela tripulação que o ar condicionado começaria assim que estivéssemos no ar. O calor desumano, misturado com a falta de oxigénio, causou fortes dores de cabeça e tonturas extremas a muitas pessoas. Além disso, as pessoas começaram a adormecer profundamente minutos depois de entrarem na aeronave”, contou Saidy Janko, antigo jogador do FC Porto que está atualmente no Young Boys e que é internacional pela Gâmbia.
Recuando mais de uma década, é impossível não lembrar a meia-final de 2006, edição que o Egito acabou por conquistar, quando Camarões e Costa do Marfim decidiram o apuramento ao longo de uma maratona de 24 penáltis. O jogo terminou a zeros ao fim de 90 minutos, um golo para cada lado no prolongamento não desfez o empate e todos os jogadores – incluindo guarda-redes – acabaram por cobrar uma grande penalidade. No fim, Samuel Eto’o falhou e Didier Drogba marcou, atirando os costa-marfinenses para um final que acabariam por perder para o Egito.
Quatro anos depois, em 2010, o protagonista da história foi um adepto. No jogo inaugural da competição, Angola chegou ao último quarto de hora a golear o Mali por 4-0. Nessa altura, um esperançoso adepto apostou que o jogo iria terminar empatado – ou seja, que o Mali conseguiria marcar quatro golos em 15 minutos. O mais improvável aconteceu e os angolanos concederam mesmo o empate até ao apito final, com o adepto a encaixar cinco mil euros após ter apostado apenas cinco.
Em 2012, a Zâmbia conquistou a CAN ao vencer a Costa do Marfim na final e na decisão por grandes penalidades. Na hora de subir ao pódio e levantar o troféu, porém, só 22 jogadores da seleção então orientada por Hervé Renard receberam a medalha de ouro – Clifford Muluenga, tido como um promissor talento, foi excluído da equipa por “razões disciplinares” durante a fase de grupos e não chegou a cumprir um minuto de jogo, acabando por não ser coroado campeão africano.
Semanas antes da final, em conjunto com outros três colegas, Clifford Muluenga violou a hora de regresso ao hotel que estava estabelecida pela comitiva. Para além das sanções financeiras, a Federação da Zâmbia exigiu que os jogadores pedissem desculpa em frente a todo o grupo. Todos cumpriram a exigência – à exceção de Muluenga, que acabou excluído. Agora com 36 anos e a jogar no Forest Rangers da Zâmbia, nunca cumpriu tudo o que prometeu e já reconheceu que muito se deveu ao alcoolismo. “Se pudesse mudar alguma coisa sobre o Clifford Muluenga, seria não beber tanto quanto bebi”, atirou o jogador.
Um ano depois, em 2013, o Níger surpreendeu ao conseguir qualificar-se para a CAN. Depressa se percebeu, porém, que a Federação do país não teria capacidade financeira para organizar um estágio de preparação, para pagar as viagens ou para reservar uma unidade hoteleira. Surgiu a ideia de criar uma angariação de fundos, que decorreu ao longo de um programa de televisão em direto, e foi possível juntar três milhões de euros. O Níger foi à CAN, ainda que tenha sido eliminado logo na fase de grupos, e grande parte disso deveu-se à solidariedade.
Em 2015, na CAN que decorreu na Guiné Equatorial, Costa do Marfim e Gana levaram a final até às grandes penalidades. Copa Barry, o guarda-redes costa-marfinense, tinha acabado de defender um penálti – e era a sua vez de atirar à baliza, sendo que a Costa do Marfim conquistava o título se marcasse. Numa imagem que ficou na memória de todos os que assistiram ao jogo, Barry atirou-se para o chão e queixou-se de cãibras na perna, pedindo que fosse o capitão Yaya Touré a assumir a responsabilidade. Mas os árbitros não permitiram.
“Aproximei-me dele e tentei convencê-lo. Disse-lhe que era a segunda vez que jogava uma final da CAN e que tinha perdido a primeira. Que era um dos jogadores mais velhos da equipa e que só faltava um remate para a Costa do Marfim ganhar o título. Tinha de assumir a responsabilidade e marcar o penálti. Se marcasse o golo decisivo, seria um herói em casa. Era uma oportunidade para acabar a carreira internacional em grande. As palavras tocaram no orgulho dele e levantou-se para marcar o penálti”, explicou mais tarde o árbitro assistente Djibril Camara.
“Quando marcou o golo da vitória, correu quando os colegas foram atrás dele. Pensei para mim mesmo que um jogador lesionado não podia correr daquela maneira. Ele queria tornar as coisas mais difíceis para nós e fui inteligente o suficiente para não cair na armadilha dele”, completou.
Vitória, Peseiro e Gonçalves, os treinadores portugueses na CAN
De forma natural, a CAN conta com uma ligação próxima a Portugal. São três os treinadores portugueses em competição – Rui Vitória no Egito, José Peseiro na Nigéria e Pedro Gonçalves em Angola – e cinco as seleções lusófonas, entre Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe. Adicionalmente, contam-se 15 jogadores da Primeira Liga que vão estar na prova africana, somando-se ainda seis da Segunda Liga, quatro da Liga 3 e um do Campeonato de Portugal.
Historicamente, o Egito é o país com mais títulos, sete, seguindo-se Camarões, com cinco, e Gana, com quatro. A seleção de Rui Vitória que conta com Salah como principal figura é sempre uma das candidatas à vitória final, mas a larga maioria das previsões olha para Marrocos como a grande favorita. O conjunto de Hakimi, Mazraoui, Ounahi e companhia fez história no Mundial 2022, ao tornar-se a primeira seleção africana a chegar às meias-finais de um Campeonato do Mundo após eliminar Espanha e Portugal, e surge na Costa do Marfim com muitas possibilidades de conquistar um troféu que só levantou em 1976.
Para além de Marrocos e Egito, Senegal e Nigéria também surgem bem cotados nas casas de apostas. Os senegaleses de Sadio Mané conquistaram a última edição da CAN, ao vencerem o Egito na final de 2021, e os nigerianos de Zaidu, Bruno Onyemaechi e Chidozie têm uma equipa extraordinariamente ofensiva que pretende voltar a lutar por um troféu que já venceu em três ocasiões mas que escapa desde 2013. Adicionalmente, é preciso não esquecer a anfitriã Costa do Marfim, onde atuam Diomande do Sporting e Sébastien Haller do B. Dortmund, que conta com o apoio dos adeptos da casa e ganhou a competição em 1992 e 2015.