Um cientista pergunta porquê. Um engenheiro pergunta porque não. A comparação é feita por um engenheiro, Carlos Matias Ramos, e ilustra bem o debate animado e por vezes agressivo que agitou Portugal no final da década passada, a propósito das grandes obras públicas. Antes dos efeitos da crise financeira se tornarem evidentes na economia e nas finanças do Estado, a discussão que dominava não era a sustentabilidade económica dos projetos. Havia milhões para distribuir em Bruxelas e na banca. E projetos não faltavam.
Desde o túnel Algés/Trafaria, proposto pela Lusoponte na viragem da década, até à ponte-túnel Beato/Montijo, defendida num estudo da CIP como o melhor acesso ao novo aeroporto na margem Sul, passando pela travessia Chelas/Barreiro que era a solução mais consolidada dentro do executivo.
Antes de se questionar se havia dinheiro para fazer, começou por se questionar onde devia ser feito. O ponto de partida era que as opções de local e traçado, mais ou menos assumidas pelo governo de José Sócrates, não eram as melhores. O debate começou nos fóruns académicos dos engenheiros, com epicentro no Instituto Superior Técnico e Ordem dos Engenheiros, mas depressa contagiou a política e a economia, com a Confederação da Indústria Portuguesa (CIP) a assumir um papel de intervenção inédito no processo de decisão política.
A questão chegou ao grande público através de debates televisivos onde engenheiros e especialistas, qualificados e com reputação profissional, se dedicavam a arrasar as soluções técnicas dos seus colegas, igualmente qualificados e respeitados.
A discussão foi tão acesa que até o site arquitetura colocou à votação as várias opções:
- Chelas/Barreiro, solução defendida pelo governo
- Beato/Montijo, proposta sugerida no estudo da CIP
- Túnel Alverca/Margem Sul, sugestão apresentada na Ordem dos Engenheiros
- Algés/Trafaria, proposta da Lusoponte
- Túnel do Cais do Sodré/Margueira (antiga Lisnave)
- Vila Franca de Xira-?
- Ao lado da Ponte Vasco da Gama, Chelas-Montijo
- Ponte habitável ??? Ajuda-Pragal
- Uma ponte que ligue todas a margens do estuário
A discussão pública sobre as obras públicas começou no aeroporto internacional de Lisboa, que o governo queria fazer na Ota, mas acabou por ter de mudar de local perante a contestação técnica e política. Depois foi a rede de alta de velocidade ferroviária (TGV), e por fim, a terceira travessia do Tejo. Esta infra-estrutura seria a porta de entrada do TGV em Lisboa, mas ia também assegurar os acessos, sobretudo ferroviários ao novo aeroporto internacional, previsto agora para o Campo de Tiro de Alcochete,
Perante os ataques crescentes, o primeiro governo de José Sócrates — Mário Lino era ministro — encomendou ao Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC) a missão de estudar as alternativas viáveis do ponto de vista técnico e económico e apontar as soluções mais sólidas. O LNEC, então liderado por Carlos Matias Ramos, estudou primeiro a localização do novo aeroporto de Lisboa e depois a terceira travessia do Tejo. No caso do aeroporto, o estudo veio dar força aos que contestavam a opção da Ota, favorecendo a alternativa apresentada pela CIP para o Campo de Tiro de Alcochete, uma vitória por 3-2, muito graças à decisão de excluir o custo dos acessos da equação económica que veio a considerar a opção da margem Sul como um investimento mais barato.
Em declarações ao Observador, Matias Ramos, que mais tarde veio ser bastonário da Ordem dos Engenheiros, recorda a discussão. O LNEC fez um estudo comparativo entre as duas alternativas mais consistentes antes de confirmar, com sustentação técnica e económica, o corredor Chelas/Barreiro.
“Do ponto de vista técnico, quase tudo é possível”, reconhece ao Observador o ex-presidente do LNEC. Mas há que equacionar os custos e o retorno económico e há também decisões políticas e constrangimentos de natureza ambiental e de integração na rede de transportes que pesam na escolha final. A opção desde logo assumida de que a nova travessia teria ser ferroviária, constituiu desde o princípio um condicionamento, que afastou por exemplo a opção Algés/Trafaria cujas vantagens seriam exclusivamente rodoviárias.
O túnel Algés/Trafaria. A grande obra que ninguém ia ver
A solução do túnel rodoviário entre Algés e Trafaria foi proposta pela concessionária das travessias do Tejo, no final da década de 90 do século passado. A Lusoponte, que tem o exclusivo das travessias por estrada na área da grande Lisboa, propunha fazer o investimento e ficar com a concessão da exploração, recebendo a receita das portagens.
Na altura, já era mais ou menos evidente que a Ponte Vasco da Gama, inaugurada em 1998, não servia um dos seus objetivos: descongestionar a ponte 25 de Abril. O túnel submerso no leito do Tejo previa um investimento de 1000 milhões de euros. Esperava-se um tráfego médio diário da ordem dos 50 mil carros a 60 mil carros por dia. Mas a proposta nunca foi totalmente acolhida pelo poder político.
Foram levantadas ainda dúvidas sobre a execução técnica do projeto, dada a falta de experiência da engenharia portuguesa em túneis submersos, e também sobre o impacto que teria em termos de ordenamento do território, ao reforçar as acessibilidades a áreas com grande densidade de ocupação humana. Apesar de o custo de investimento ser inferior ao de uma ponte, os custos de operação seriam mais elevados, sobretudo por exigências de segurança. Por outro lado, diziam alguns técnicos em tom de brincadeira, os políticos nunca iriam fazer uma grande obra pública que não se visse.
Matias Ramos recorda que o eixo Algés/Trafaria foi logo afastado pela análise comparativa feita pelo LNEC em 2008, também porque comprometia o movimento de navios no Porto de Lisboa. A opção túnel levantava ainda problemas técnicos, sobretudo da margem sul do rio, devido à profundidade do leito do rio e existiam também limitações na ligação às acessibilidades da margem sul. A necessidade de ter dois canais ferroviários, um para o transporte convencional e outro para a alta velocidade, também jogou contra a solução do túnel, como alternativa única.
O crescimento da pressão urbana sobre zonas já muito ocupadas como Algés, ou sensíveis, como a Costa da Caparica, foram outros fatores que pesaram no afastamento desta opção. No entanto, do ponto de vista exclusivo das ligações rodoviárias o eixo Algés/Trafaria continua a ser o que faz mais sentido, porque permite o prolongamento da CRIL (Circular Regional Interna de Lisboa) à margem Sul. E muitos especialistas acreditam que esta ligação terá de avançar num futuro mais ou menos próximo.
Matias Ramos admite que esta solução possa voltar a ser colocada num cenário de evolução tecnológica, em que por exemplo fosse apenas necessário um canal ferroviário, em vez de dois, se os problemas de bitola forem ultrapassados. Será também uma hipótese viável como complemento de uma ponte ferroviária em outra localização. Foi aliás assim que o corredor ressurgiu, ainda que por pouco tempo, na alternativa proposta pela CIP para a terceira travessia do tejo (TTT).
A ponte-túnel Beato Montijo/Barreiro
Depois de conseguir mudar a localização do novo aeroporto de Lisboa, da Ota para o Campo de Tiro de Alcochete, a CIP prosseguiu com a sua missão de questionar os projetos de obras públicas e promoveu o estudo dos acessos ao novo aeroporto na margem Sul. O trabalho, conduzido pela consultora TIS de especialista em transportes José Manuel Viegas, apresentou uma proposta alternativa ao eixo Chelas/Barreiro para a terceira travessia do Tejo que tinha também impacto no traçado escolhido para a entrada do TGV em Lisboa.
Esta análise começou por estudar uma ligação no corredor Beato/Montijo em túnel ou em ponte exclusivamente ferroviária com o duplo objetivo de servir o aeroporto e fechar a ligação do TVG de Madrid a Lisboa. Ao contrário da ponte Chelas/Barreiro, a componente rodoviária ficava de fora e seria assegurada, a prazo, por uma quarta travessia, entre Algés e Trafaria.
Mais tarde, num debate na Ordem dos Engenheiros, José Manuel Viegas veio a defender uma nuance na travessia Beato/Montijo ao propor uma solução mista túnel/ponte inspirada na ligação entre a Dinamarca e a Suécia, chamada Oresund.
A travessia mista começaria por uma ponte no Beato, na margem Norte, que desceria até uma ilha artificial no Tejo, a partir da qual a travessia continuaria através de um túnel submerso. Esta solução argumentou José Manuel Viegas, teria menos impacto ambiental, resolvendo o problema da interferência com a Zona de Proteção Especial, no Montijo. A partir daqui, a linha de alta velocidade seguiria para o aeroporto (e para Espanha). O custo estimado, ainda muito preliminar, seria da ordem dos 1,1 mil milhões de euros.
O estudo propriamente dito centrava-se nas vantagens do canal Beato/Montijo face a Chelas/Barreiro para a ligação ao aeroporto, considerando que esta travessia (em ponte ou túnel) seria aparentemente “menos complexa”. O projeto envolveria a realização de uma pequena ponte entre o Montijo e o Barreiro que garantiria apenas um “acréscimo de um minuto à ligação suburbana entre Lisboa e o Barreiro e a partir daí a toda a rede convencional da margem esquerda.
Apesar de reconhecer que a área metropolitana de Lisboa necessitaria sempre de uma terceira travessia rodoviária a relativamente curto prazo — o estudo defende o corredor Algés/Trafaria — conclui também que não seria necessário um novo acesso rodoviário ao novo aeroporto que seria servido pela Ponte Vasco da Gama.
Esta solução foi avaliada num estudo comparativo face à ponte Chelas/Barreiro, desenvolvido pelo Laboratório Nacional de Engenharia Civil em 2008. Apesar de considerar que a travessia Beato/Montijo era viável, o LNEC concluiu que seria menos favorável do ponto de vista ambiental. Acrescentava igualmente que as vantagens comparativas, do ponto de vista da complexidade de execução e de custos, poderiam desaparecer com a necessidade de fazer uma ligação entre o Montijo e o Barreiro. Havia também um custo de oportunidade favorável ao projeto Chelas/Barreiro por este se encontrar mais avançado e estar já a caminho de assegurar financiamento comunitário via projeto da alta velocidade.
“Face aos objetivos do mandato e aos princípios e critérios em que assentaram as análises, conclui-se que a ligação Chelas-Barreiro se apresenta como claramente mais favorável para a travessia ferroviária do Tejo na Área Metropolitana de Lisboa: conclui-se também que é viável e justificável a associação de uma componente rodoviária a esta travessia”.
O corredor Chelas/Barreiro. A ponte é uma miragem?
O projeto de uma ponte entre Chelas e Barreiro já tem uma história relativamente longa. Quando o governo liderado por Cavaco Silva lançou o processo de estudo e decisão para construir uma segunda ponte sobre o Tejo, o corredor Chelas/Barreiro foi finalista no debate, ao lado da solução Moscavide/Montijo. A primeira solução era a preferida pelo então ministro do Planeamento e Ordenamento do Território, Valente de Oliveira, mas perdeu para a ponte preferida pelo ministro das Obras Públicas, Joaquim Ferreira do Amaral.
Numa entrevista dada pelos 10 anos da Vasco da Gama, Ferreira do Amaral defendeu a sua dama, com o argumento de que uma ponte entre Chelas e Barreiro seria muito difícil de construir e colocaria grandes problemas ambientais, por causa da contaminação de metais pesados depositada nos leito do rio na margem sul, fruto das indústrias do Barreiro. Ainda assim, foi criada uma reserva de terreno para proteger o corredor Chelas/Barreiro de construções que pudessem vir a inviabilizar ou tornar muito cara a futura construção de uma ponte.
A ponte Chelas/Barreiro foi sempre mais acarinhada pelos partidos à esquerda que defendiam a importância de combater o declínio económico e demográfico da cidade do Barreiro com uma infraestruturas que criasse estimulasse a reabilitação urbana. A autarquia do Barreiro já foi comunista, socialista e comunista.
Para além das razões de ordenamento do território e reabilitação urbana, Chelas/Barreiro também ganhava na valência ferroviária, sendo a melhor solução para assegurar a continuidade do serviço e das ligações na ferrovia convencional. O projeto, que começou por ser exclusivamente de uma ponte ferroviária, ganhou força com o TGV depois de ter ficado decidido que seria a melhor solução para a entrada de uma nova linha de bitola europeia de alta velocidade na capital.
O tabuleiro rodoviário sempre foi uma hipótese, — até se ponderou uma construção faseada. Mas só em quando foi anunciada a decisão de mudar o projeto do novo aeroporto para o Campo de Tiro de Alcochete, é que o primeiro governo de José Sócrates decidiu avançar com a construção da terceira travessia rodo-ferroviária no corredor Chelas/Barreiro. O investimento ascendia a 1.800 milhões de euros, com a componente rodoviária a custar cerca de 600 milhões de euros.
A nova ponte teria acomodar quatro linhas ferroviárias, duas para o TGV e mais duas para a rede convencional em bitola ibérica, e estavam previstas seis faixas rodoviárias, três em cada sentido. Seria a ponte com mais capacidade de transporte em Portugal e as exigências da dupla circulação ferroviária obrigariam a um reforço da estrutura para aguentar o eventual impacto da frenagem (travagem) dos comboios em pleno tabuleiro, para além de estar prevista a circulação de mercadorias, que tem restrições na ponte 25 de Abril.
O impacto visual no estuário seria mais agressivo do que o das pontes existentes, admite o engenheiro Carlos Matias Ramos, mas desvaloriza as imagens que chegaram a circular e que faziam a nova ponte parecer quase um bunker em cima do Tejo. Seria possível, um desenho menos pesado, com outra tecnologia, defende.
O concurso internacional para a construção da terceira travessia foi lançado em 2009 como parte do segundo troço da ligação de alta velocidade ferroviária entre Lisboa e Madrid. O primeiro troço desta ligação, Poceirão/Caia tinha sido adjudicado ao consórcio Elos da Soares da Costa e da Brisa em 2010. A concurso surgiram três propostas, mas duas destacaram-se logo na fase de avaliação: a apresentada pela Tave Tejo, um consórcio liderado pela empresa espanhola FCC, e a proposta da Altavia, um consórcio dominado pela Mota Engil.
As duas passaram à fase final, mas os espanhóis tomaram a dianteira da corrida, graças a um preço mais baixo. As duas propostas estavam separadas por cerca de 500 milhões de euros. A Tave Tejo propôs um preço de 1.964 milhões de euros, contra 2.473 milhões apresentados pelo concorrente mais direto. Apesar das duras críticas do concorrente português à proposta mais bem classificada, questionado o financiamento, o cumprimento do caderno de encargos e até a solidez técnica da travessia proposta, a Tave Tejo ficou em primeiro lugar no concurso, porque o critério preço valia mais.
O consórcio da Mota-Engil prometeu contestar até ao fim a vitória pré-anunciada do concorrente, mas estávamos em 2010 e a tempestade que iria atingir a dívida e a economia portuguesa já estava em formação. Em maio, mês em que rebentou a crise grega, o governo de José Sócrates, anunciou os primeiros cortes, o chamado PEC 1 (Programa de Estabilidade e Crescimento).
A terceira travessia e o novo aeroporto foram as primeiras vítimas. Foram adiados. Apesar da forte componente de fundos comunitários, os investimentos exigiam financiamento público, sobretudo na componente da ferrovia convencional. O Estado teria ainda de suportar uma fatura com os custos operacionais e amortização destes investimentos. O concurso foi anulado antes da adjudicação, dando origem ao pagamento de indemnizações aos concorrentes.
Mas ainda no mesmo mês desse ano, o então secretário de Estado dos Transportes, Correia da Fonseca, deixava a garantia.
«A Alta Velocidade é uma realidade, já assinámos o contrato (troço Poceirão/Caia) e ao contrário do que muitos dizem, Espanha está a avançar com trabalhos no terreno. Em Portugal, em Setembro, também já temos obra no terreno (…) Não passa pela cabeça de ninguém que a Alta Velocidade fique no Poceirão». Questionado diretamente sobre se a terceira travessia, um projeto que já então estava em dúvida, Correia da Fonseca respondeu: «Teve que ser adiada, mas vai avançar».
Um ano depois, e já com o PSD/CDS no leme do governo e a troika em casa, o contrato assinado para o primeiro troço do TGV Lisboa/Madrid (entre Caia e Poceirão), é anulado depois da recusa de visto prévio pelo Tribunal de Contas. O processo de indemnização ao consórcio vencedor, a Elos, ainda está a correr, com o Estado a contestar a decisão do tribunal arbitral que o condenou ao pagamento de 150 milhões de euros.
Será que o projeto da terceira travessia vai voltar? Carlos Matias Ramos está convencido que sim, mas não arrisca um horizonte temporal. Vai depender de decisões politicas e opções estratégicas para o país. E qual corredor? Apesar de lamentar a prática portuguesa de deitar todo o trabalho feito fora e recomeçar do zero, sempre que há uma nova decisão em relação a um projeto, o especialista admite que com o desenvolvimento das tecnologias poderá fazer sentido voltar a estudar cenários que foram afastados no passado.
Terceira ou quinta travessia?
A chamada terceira travessia do Tejo seria na verdade a quinta ponte sobre o rio Tejo, se consideramos a área da Grande Lisboa e Vale do Tejo. A primeira ponte nesta área não foi a 25 de Abril, mas a ponte de Vila Franca de Xira que comemorou 60 anos em 2012. Inicialmente batizada de ponte Marechal Carmona, esta travessia tem 1,2 quilómetros e liga as margens do Tejo entre Vila Franca e Porto Alto. Quando foi inaugurada no início dos anos 50, estava já pensado o primeiro troço da futura autoestrada Lisboa/Porto.
A ponte teve portagens até depois do 25 de abril. Foram abolidas quando Maria de Lurdes Pintassilgo foi primeira-ministra em 1979, com o argumento de que o investimento feito na construção já estava pago. Ainda hoje, é única travessia nesta zona que é gratuita.
Para além das pontes 25 de Abril e Vasco da Gama, há também a mais recente travessia do Tejo, a ponte do Carregado, que liga a A1 a A10 à A13, tudo concessões da Brisa. Esta infraestrutura, batizada ponte da Lezíria, passa por cima dos rios Tejo e Sorraia e tem uma extensão total de 12 quilómetros. A ponte permite ir de Norte a Sul fugindo à área da Grande Lisboa e foi inaugurada em 2007.