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[Veja nesta fotogaleria posters antigos dos principais filmes de Orson Welles]
O estranho caso de Orson Welles ou O Mundo a seus Pés
Nascido (surpreendentemente?) em pleno Midwest burguês (Kenosha, Wisconsin), numa família de gente próspera e instruída, Orson Welles foi um menino-prodígio: ainda muito pequeno já tocava piano e – por assim dizer – falava francês. O filme que lhe deu instantaneamente um lugar na história do cinema, O Mundo a seus Pés (Citizen Kane), foi o seu filme de estreia e realizou-o aos 25 anos (“Ter 25 anos e não ser Orson Welles”, suspirou uma vez Jean-Luc Godard, ainda longe de se tornar le plus con des cinéastes suisses pro chinois, como rezava uma parede parisiense do Maio de 68). Durante 50 anos esteve no topo absoluto da lista dos melhores filmes de todos os tempos que publica de dez em dez anos a revista do British Film Institute Sight and Sound, elaborada com os votos de umas centenas de críticos (foi destronado em 2012 pelo Vertigo de Hitchcock; ficou em segundo lugar, até 2022).
Não desfazendo nos méritos das suas outras obras – pode dizer-se que começou a sua carreira no ponto mais alto, o resto pareceu tudo daí para baixo. A sua primeira obra é consensualmente considerada a sua mais indiscutível obra-prima. As extraordinárias facilidades dos princípios tornar-se-iam infindas dificuldades daí para a frente. Não foi caso único em Hollywood, embora raramente as facilidades iniciais tenham sido tão descomunais: foram dados a um absoluto “principiante” carta-branca, controle absoluto sobre o produto final e os melhores colaboradores. Dessa maturidade precoce e depois de muitos avatares, passou na última parte da sua vida a anúncios de vinhos (e até de produtos menos prestigiosos) e a brincar aos prestidigitadores, mais famoso por ser famoso do que por ser o que era.
Orson Welles nunca se entendeu bem com a “indústria”, até à reconciliação quase póstuma – e sem consequências práticas – do tributo prestado pelo American Film Institute em 1975, dez anos antes da sua morte. Entretanto, completara apenas uma dezena de filmes (entre os quais duas versões das peças de Shakespeare Macbeth e Othelo – além do magnífico As Badaladas da meia-noite, muito mais tarde; “Somos da geração”, disse uma vez François Truffaut, “que conheceu Shakespeare por intermédio de Orson Welles”), todos de rodagem e destino quase sempre atribulados; deixou inacabados ou abandonados vários projectos e participou como actor, com empenho e resultados variáveis, em mais de uma centena de filmes alheios. É impossível fazer justiça em menos de muitos milhares de palavras a toda a multifacetada e intensa actividade de Welles e a todas as suas ramificações. Por ocasião da homenagem prestada a Welles no Festival de Cinema Cannes deste ano, o Canal ARTE dedicou ao cineasta um certeiro raccourci (menos de um quarto de hora): C´étais quoi Orson Welles?.
Além do amplo material hoje disponível na Internet existem várias biografias de Orson Welles publicadas ao longo dos anos e muitos outros livros sobre o seu cinema, entrevistas, etc. Neste ano do centenário do seu nascimento foi publicado mais um livro sobre a vida do cineasta: Young Orson: The Years of Luck and Genius on the Path to Citizen Kane, do biógrafo Patrick McGilligan.
O actor
A vida artística de Welles começou no teatro. Em pequenino brincava aos teatrinhos caseiros, muito elaborados – e chegou a fazer de coelho, “profissionalmente”, numa promoção comercial de uns grandes armazéns. Aos 15 anos, órfão de mãe há vários anos, morreu-lhe também o pai. Senhor de alguns dinheiros, em breve deixou os estudos e partiu para a Europa com autorização do seu tutor. Na Irlanda – com 16 anos – dirigiu-se às grandes luminárias do teatro irlandês dessa primeira metade do século XX (incluindo o mítico Micheál MacLiammoir) e convenceu-os a dar-lhe trabalho, aldrabando a idade, que ninguém se preocupou muito em verificar numa era em que a infância e a adolescência não eram tão protegidas como hoje do exercício dos seus talentos. Foi o teatro que mais tarde, nos Estados Unidos, com a sua entretanto formada e bem-sucedida companhia do Mercury Theatre, o levou à rádio e ao cinema.
A inconfundível e esplêndida voz de Welles foi usada em inúmeras ocasiões – além das milhentas emissões da sua carreira radiofónica dos anos trinta e quarenta – em “narrações” no cinema (O Rei dos Reis, Os Vikings, muitíssimos outros), na publicidade e na televisão. Glosando o que escreveu o grande produtor teatral e cinematográfico John Houseman, desde sempre cúmplice de Welles, essa voz era um extraordinário instrumento de enorme versatilidade, subtileza e poder dramático. Quem quiser certificar-se disso em menos de sessenta segundos veja o trecho do filme Mr. Arkadin (Relatório Confidencial) em que ele conta de forma incomparável a famosa fábula da rã e do escorpião popularizada entre nós por Marcelo Rebelo de Sousa. (Está na íntegra no curto filme emitido pelo ARTE.) Mr. Arkadin, de 1955, é um dos raros filmes de segunda ordem que Welles assinou mas vale o desvio, de qualquer maneira, por alguns momentos como esse.
A maior parte dos filmes em que participou exclusivamente como actor não o ilustram sempre – ou quase nunca. Foram na sua maior parte, como se diz, papéis “alimentares”, de corpo presente, e em filmes muitas vezes manhosos; destinavam-se não só a pagar-lhe as contas como também a financiar os seus projectos. “Devo ser doido”, disse ele a esse propósito na entrega do Life Achievement Award do AFI.
Mas falar do Welles actor – sobretudo nos filmes que não eram seus – é falar obrigatoriamente de O Terceiro Homem, um grande filme de Carol Reed, dominado pela sombra do criminoso Harry Lime, o personagem quase sempre ausente que Welles encarna – e pela sombra de Welles. Escrito por Graham Greene (com a colaboração de Welles?), quem poderia a não ser ele tornar igualmente inolvidável a grande tirada do profiteur ao protagonista? No alto de uma roda de luna-parque, na Viena em ruínas do pós-guerra, onde enriqueceu a vender remédios avariados, diz ao amigo horrorizado: “Não sejas tão pessimista. No fim de contas, isto não é assim tão mau. Como dizia o outro, em Itália durante trinta anos, sob os Bórgias, houve guerras, terror, assassínios e derramamento de sangue mas produziram Michelangelo, Leonardo da Vinci e o Renascimento. Na Suíça houve amor fraternal – tiveram 500 anos de democracia e paz – e o que é que produziram? O relógio de cuco. Até à vista Holly.”
Houve, apesar de tudo, algumas outras interpretações memoráveis. Fique referida, por todas, a do advogado de O Génio do Mal (Compulsion, 1959), de Richard Fleischer. Obteve com ela um Oscar da Academia como actor. Depois de O Mundo as Seus Pés foi a única nomeação ou Oscar que recebeu da Academia.
A Guerra dos Mundos
Orson Welles era já um encenador e actor teatral reputado e aclamado quando foi convidado para produzir, com o seu grupo do Mercury Theatre, uma série de programas de rádio “culturais” para a CBS. Foi um desses programas, transmitido a 30 de Outubro de 1938, que definitivamente o celebrizou. Adaptação de um conhecido romance de H. G. Wells, sob a forma de falsa reportagem em directo, abriu-lhe as portas de Hollywod e pô-lo aos comandos do que ele definiu como o “biggest electric train set any boy ever had!“.
A Guerra dos Mundos começou por ser um romance de finais do século XIX do famoso polígrafo inglês que é considerado um dos fundadores da ficção científica. The War of the Worlds (1898) foi, se não me engano, o livro que inventou os “marcianos” como proverbiais extraterrestres hostis, mais inteligentes e poderosos do que o homem, esverdeados e viscosos. Não sei quantos portugueses o terão lido (houve uma dúzia de edições portuguesas, uma das quais, pelo menos, ainda no mercado), mas é natural que muitos mais tenham visto o filme de Steven Spielberg; tinha havido uma primeira versão cinematográfica nos anos 50, com uma fotografia magnífica nas cores saturadas do Technicolor da época, assinada por George Barnes; o argumento era de um tal Barré Lyndon! (era o curioso pseudónimo de um jornalista inglês).
Entre as obras de H. G. Wells também se contam A Máquina do Tempo (The Time Machine), um “regresso ao futuro” em que “inventou” a viagem no tempo da ficção científica tal como a conhecemos no século XX, A Ilha do Dr. Moreau (The Island of Doctor Moreau) ou O Homem Invisível (The Invisible Man) – dois casos de experiências científicas que acabam mal – e, já nos anos 30 do século XX, The Shape of Things to Come (Imaginar a forma das coisas que hão de vir: que melhor definição de grande parte do género literário a que chamamos ficção científica ou, também, justamente, “literatura de antecipação”?); esse texto e um outro escrito do mesmo autor serviram de base ao filme que é considerado a primeira grande produção cinematográfica inglesa de ficção científica: A Vida Futura, de Alexander Korda e William Cameron Menzies. Todos os textos referidos, aliás, foram levados ao cinema, alguns várias vezes, como aliás outras obras do seu prolífico criador. Nascido em 1866, Wells só morreu em 1946. Welles ainda o conheceu pessoalmente.
O programa do Mercury Theatre causou furor. Escrito numa primeira versão pelo argumentista Howard Koch, a fórmula da falsa emissão de breaking news que acabou por ser escolhida, com o decisivo contributo de outros membros da companhia e do próprio Welles, convenceu muitos ouvintes distraídos ou tardios de que tudo aquilo se estava a passar de facto. A fantasia chegou a criar algum verdadeiro alarme embora talvez não o suposto pânico nacional, cuja extensão e gravidade terão sido um manifesto exagero noticioso (saiu este ano o mais recente estudo sobre as verdadeiras dimensões sociais do caso: Broadcast Hysteria: Orson Welles’ War of the Worlds and the Art of Fake News, de A. Brad Schwartz). Orson Welles, como hoje é moda a propósito de tudo e de nada, fez no dia seguinte um contrito pedido público de desculpas. Mas o que ninguém lhe tirou foi uma enorme notoriedade. Não tardou que estivesse assinado o contrato com a RKO para a realização de Citizen Kane.
[Ouça aqui a emissão radiofónica completa de A Guerra dos Mundos, narrada por Orson Welles]
A famosa emissão de 1938 durava cerca de uma hora. Na produção, além de John Houseman e do próprio Welles, estava Paul Stewart (que fazia parte igualmente do elenco) que depois veríamos muitas vezes no cinema, a começar por Citizen Kane, em que também se estrearam cinematograficamente vários actores do Mercury Theatre que depois fizeram carreira em Hollywood. Em Citizen Kane, Paul Stewart é o ominoso secretário-mordomo do Cidadão.
O guião do programa radiofónico foi traduzido e publicado em Portugal pela revista de Víctor Palla, O Gato Preto, “antologia de mistério e fantasia”, no seu número 2, datado de fevereiro de 1952, sob o título A Invasão dos Marcianos. Tenho-o aqui diante de mim.
Cinco grandes filmes de Welles e o Relatório Confidencial
Não me conto entre os admiradores de O Processo (a versão cinematográfica do livro de Franz Kafka, um autor que também não é outra das minhas particulares devoções, Deus me perdoe), filmado em França. Deixando de fora Macbeth e Othello, por várias razões – os cinco filmes de Welles que apetece sempre rever são O Mundo a Seus Pés (Citizen Kane, 1940), O Quarto Mandamento (The Magnificent Ambersons, 1942), A Dama de Xangai (The lady from Shanghai, 1947), A Sede do Mal (Touch of Evil, 1958) e As Badaladas da Meia-noite (Chimes at Midnight, 1965). Os quatro primeiros desta lista são, à sua maneira, uma crónica da América. O último, para mim, é a apoteose de Welles como leitor e intérprete de Shakespeare.
Kane é a biografia, sob a forma de investigação jornalística, de um plutocrata norte-americano, cujos traços se inspiram, às vezes muito diretamente, na figura do poderoso William Hearst, magnate da imprensa, que não perdoou e fez pagar caro a Welles a impertinência. (Não entro, por respeito pelas minhas leitoras, na questão do que tinha com a vida íntima de Hearst o famoso “Rosebud”, última palavra pronunciada pelo Kane moribundo e que no filme é o nome do seu trenó de menino.) O Quarto Mandamento, baseado num premiado e popular romance de Booth Tarkington, a melancólica história do declínio e queda de uma grande família do Midwest natal de Welles, na passagem do século XIX para o XX. A Dama de Xangai, um filme noir em que Welles nos faz quase tocar a corrupção, como em Touch of Evil, outro film noir, seu filme de regresso aos Estados Unidos e à realização depois de dez anos de intervalo, que se passa na fronteira com o México e é uma meditação sobre os meios e os fins ou, talvez melhor, a tragédia de um homem excepcional que escreve direito por linhas tortas. As Badaladas da Meia-noite é uma vida do gordo e devasso Falstaff, composta por Welles com fragmentos de todas as peças de Shakespeare em que o personagem entra: é uma das maiores interpretações do cineasta no papel do protagonista.
Fala-se muito, desde as primeiras críticas de Citizen Kane, da invenção técnica ou “formal” de Welles, desde Citizen Kane e dos seus cenários com teto, do uso da grande angular, da profundidade de campo, dos movimentos de câmara e do uso da grua, dos espectaculares oito minutos do plano único de abertura de A Sede do Mal. Mas o que é mais notável na ostensiva virtuosidade de Orson Welles é que nunca “distancia” o espectador, nunca resulta em detrimento da empatia dramática, antes a acrescenta e o como se conta é também, emocionantemente, o que se conta. As Badaladas da Meia-noite é, nesse aspecto, uma excepção: a sobriedade de meios é notória. O resultado não é menos brilhante e comovente. Foi o seu último filme completado e exibido comercialmente e um dos que ele preferia.
Em 1955, de mistura com o seu romance amoroso com uma princesa italiana, Welles escreveu e realizou, no meio de grandes trapalhadas, Mr. Arkadin, Relatório Confidencial. (Foi publicado como romance por Welles, sob o mesmo título). É um filme atamancado, com os seus momentos e uma boa ideia: contratado por um cliente misterioso para investigar o passado de um ricaço de antecedentes duvidosos, o protagonista acaba por descobrir que o interessado é o próprio, que quer certificar-se de que cobriu bem qualquer rasto das suas malfeitorias.
O reconhecimento
O Mundo a Seus Pés foi nomeado para vários Óscares da Academia: o de Melhor Realizador, de Melhor Actor e de Melhor Argumento Original; Welles só ganhou este último, a meias com o co-autor do argumento, Herman J. Mankiewicz. Os seus pares da Academia de Artes e Ciências do Cinema só tornaram a distingui-lo em 1959, pela interpretação no filme de Richard Fleischer já referido, e uns quantos anos depois com um Honorary Award em 1971, “for superlative artistry and versatility in the creation of motion pictures“.
Ao longo da sua carreira recebeu muitas outras distinções, principalmente na Europa, onde foi sempre especialmente venerado, mas também nos Estados Unidos. Em 1975 recebeu o Lifetime Achievement Award do American Film Institute. No ano da sua morte foi-lhe atribuído pela Director’s Guild of America o D.W. Griffith Award.
As cinzas de Orson Welles estão sepultadas em Espanha.