“Fado é amor
Que sobrou d’algum queixume,
Que se agarrou ao ciúme
E se embrulhou no seu manto.
Fado é a dor,
É o meio termo da vida,
Nem esperança perdida,
Nem riso, nem pranto.”
No seu regresso aos discos de originais, Carminho não faz um exercício existencialista sobre quem é como artista nem sobre o lugar que afinal ocupa. Pelo contrário, mantém a certeza de ser fadista por convicção. Portuguesa – assim se chama o álbum que é editado a 3 de março –, resulta de uma “busca pelo aprofundamento do pensamento sobre o fado”. Com produção própria, a artista reuniu 14 temas, entre os quais “fados tradicionais originais” compostos pela fadista, como por exemplo “As flores” (fado Flores), no qual assina música e letra.
Pelo meio de um extenso trabalho de pesquisa, musicou poemas de Sophia de Mello Breyner Andresen, David Mourão-Ferreira ou Manuel Alegre, foi aos fados clássicos, como é o caso de “Fado é amor” (que citamos como embalo desta conversa) de Joaquim Frederico de Brito ou o fado Pagem de Alfredo Marceneiro e olhou para o presente e para o que estava à sua volta. Foi aí que decidiu convidar vários autores, como Rita Vian, que compôs “Simplesmente ser”, Luísa Sobral, em “Sentas-te ao meu lado”, Joana Espadinha, em “Ficar”, e o músico brasileiro Marcelo Camelo, que escreveu “Levo o meu barco no mar”. Cinco anos depois do seu quinto álbum, Maria, lançado em 2018, a artista portuguesa que tem colaborado com diversos nomes internacionais, sabe que no fado encontrou um lugar de pertença e de experimentação, num campo de possibilidades que não se esgota.
Ao Observador, diz tratar-se de uma linguagem que se pratica e que, por isso mesmo, se aperfeiçoa e se transforma à frente dos olhos. A naturalidade com que encara este ofício – é assim que entende aquilo que tem vindo a fazer desde muito nova, das mais pequenas casa de fado às maiores salas de concertos – não deixa de ser emocional, mas também um campo de decisões e escolhas. Na busca pela construção de um repertório, “o fado está tão presente e é tão transversal” na sua natureza, que basta praticá-lo para ele já estar a ser traduzido, a existir e a ser pertinente. No fim do dia, procura manter-se fiel ao legado que lhe foi transmitido, mas convicta na intuição de que há que olhar para o momento que se vive, para se estar seguro e encontrar a sua identidade. É portuguesa, mulher e fadista. Mas a sua identidade não se determina pelos traços ou rótulos mais visíveis – está embrenhada num olhar poético, que é também de uma profunda afeição pelo que se tornou no seu porto de partida, seja qual for o destino a seguir.
[“O Quarto”, primeiro single do álbum “Portuguesa”:]
No início deste novo disco, no tema “As Flores” escreve: “Os vasos servem as flores / Como servem os amores, / O tempo, a atenção.” Para quem começou no fado tão nova, como é que a canção a continua a servir?
O fado serve-me completamente. Serve-me do ponto de vista da comunicação, da exploração dos meus sentimentos, do encontro com o outro. O fado é uma língua viva e é esse aspeto que o torna tão rico, que o torna inesgotável e que o faz ser sempre praticável. É como uma língua… é na prática que ele se vai transformar, mas com a naturalidade de quem o pratica.
No seu caso, estamos longe do cliché se dissermos que é uma forma de expressão tão natural como a fala?
Sim. E para a comunidade dos fados também acho que sim. Ou seja, não acho que seja uma opinião muito pessoal. É uma atitude da natureza do fadista por si só, por excelência e afeição. Acho que é essa prática que está traduzida neste disco.
De que forma?
Este disco é um exercício da prática do fado. Aglutina esse percurso que tenho vindo a fazer.
A ideia para este disco começou a nascer em 2019. O que é que está neste disco dessa motivação inicial?
É difícil de responder, porque essa naturalidade está na forma como nos vamos encontrando com as canções… basicamente, quem manda são as canções, é o repertório. E foi nessa construção de repertório que centrei a minha energia e o meu espanto, de me deixar encantar pelas canções. Sejam elas de compositores recentes, de poetas que já não estão cá, de canções que escrevi ou fiz. Essa ideia de construção de repertório interessa-me e foi evoluindo, tive só mais tempo para o fazer. Tive mais tempo para me confundir, para ter dúvidas, o que foi bom, porque às vezes as coisas parecem muito arrumadas e muito certas e só o facto de ter de esperar mais tempo tornou esse olhar mais técnico. Foi pensado e demorado. Não foi tão intuitivo.
Por comparação com discos anteriores?
Foi um processo de intuição no início, porque as canções chegam primeiro a mim de uma forma muito emocional. Os poemas que escolho da Sophia [de Mello Breyner Andresen] ou do David Mourão-Ferreira, são poemas que já li, mas que parece que nunca os tinha encontrado na vida e que nunca os tinha lido. E quando me deparo com eles, quando estou à procura de repertório, tudo isso muda. Recorro aos mesmo livros muitas vezes e descubro novos poemas de cada vez que os abro. E é fascinante como a poesia nos muda e esses poemas se transformam, estão vivos e fazem-nos sentir coisas diferentes. É nessa intuição, depois da leitura, que eu os apanho e que decido que os quero cantar. E com um sentimento que é suficientemente forte para poder perdurar durante dois, três ou vinte anos a cantá-los. Porque tenho a consciência que quando escolho um poema vou cantá-lo durante muito anos.
E vivemos num tempo em que tudo muda rapidamente, mesmo a nossa perceção sobre certos objetos.
Exatamente, e há alturas em que alguns acabam por cair. Das duas uma: ou porque tiveram uma escolha menos refletida – no meu caso são poucos, posso dizê-lo –, ou porque realmente eu mudei. E a verdade é que também mudo de opinião e faço-o sem problema algum. Mas isto para dizer que, nesse encontro com os poemas, é um processo muito emocional. Depois, com o tempo, eles ganham forma. No caso do poema da Sophia, fiz automaticamente a música e fi-la numa estrutura de fado tradicional.
Esse poema nunca tinha sido musicado?
Que eu saiba não. Nem o do David ou do Manuel Alegre.
Portanto, deu-se um encontro inusitado.
Sim, e esse encontro passa por aí. É curioso, não me lembro de pensar nisso, mas esteve implícito no processo de escolha do poema. Há essa emoção porque eu já estava a sentir uma música ao ler os versos.
Os poemas são sempre o grau zero?
Nem sempre, porque, por exemplo, no caso do Marceneiro, o fado Pagem tinha a base musical. Incluí um poema que escrevi [“O Quarto”] em que há uma reflexão de homenagem e uma atitude de reverência à história do Marceneiro e a vários artistas mais antigos. É por isso que o disco começa por aí. Tem um sentido de homenagem à história do fado e à forma como certas figuras, o Marceneiro, a Amália ou a Beatriz da Conceição foram fazendo e cantando fado. Há neles um olhar e uma atitude crítica sobre o seu próprio repertório e a forma como procuravam originais para tocar e a forma como se preocupavam com a saúde de uma linguagem que me impacta. O fado não é um exercício de memória. O fado é um exercício de prática.
Fala de como é um disco feito de pesquisa, sobre a poesia e tradição. Podemos chamar-lhe de certa forma “antológico”?
Sinto que, sem dúvida nenhuma, o fado é a minha linguagem e ao praticá-lo não consigo fazer fronteiras. Não consigo traçar um limite entre o que está antes de mim e depois. Claro que posso olhar para a pesquisa e para os antigos dessa forma, naquela coisa de “Carminho, agora faz tu o teu caminho; nós tivemos o nosso e agora inspiramos-te a fazeres também o teu”. Há um bocadinho essa passagem de testemunho, mas como uma rampa e não como um antes e depois. Sou eu a descer a minha ladeira e no caminho vou apanhando outras referências que me inspiram. No meu entender, são os artistas que inspiram outros artistas e por isso eles precisam uns dos outros para poder continuar. E não é numa perspetiva de plágio ou numa atitude de preguiça. É numa atitude de entusiasmo, de encontro, de soma.
Vivemos um momento que inspirador?
Acho que sim. Há imensos artistas, sinto-me completamente realizada com a geração da qual faço parte, porque tenho artistas com os quais me identifico cada vez mais. É importante juntarmo-nos e estas pessoas que aqui reúno até fazem outras coisas, outros géneros musicais. Mas depois penso “o que é fazer outras músicas se as coisas se encaixam, se se compreendem e funcionam?”. Não gosto de gavetas e de criar rótulos, só para arrumar as pessoas nos seus cantos. Não vale a pena, isso. Nós próprios temos de dar esse espaço para que outros artistas nos surpreendam, nos digam que afinal não era bem aquilo que estávamos à espera.
Onde é que situa este disco no seu percurso?
É o meu melhor disco. Pondo de outra forma, o meu melhor disco é sempre o que virá depois. Mas à data, este é o melhor e foi sempre assim que olhei para os meus discos. Tenho imenso orgulho de todos eles e consigo identificar essa emoção de estar a dar o meu melhor, se me lembrar do momento em que cada um deles foi lançado. Não dá para ter mais prazer do que isso. É como olhar para as fotografias da escola e gostar de todas. A minha mãe ajudou-me a estar bem em todas elas… ufa! Isto pouco interessa, porque crescemos, mas temos de aceitar quem éramos. E ter aquela sensação de “não, eu não fui desleixada” é boa, no fim de contas.
Não gosta de títulos de álbuns, pelo que disse no passado… este tem uma certa assertividade.
Foi uma ideia bastante bizarra. Claro que ando a trabalhar nestas questões da poesia portuguesa, da música, da prática do fado, o que é e o que é que não é… esta ideia de jogar com regras definidas, num jogo que pode ser sempre novo. Tudo isso é muito interessante para mim. A partir do momento em que fiz uma sessão fotográfica com o Giovanni Bianco e ele antes de fazer a sessão já me está a mandar referências para um disco e eu estou a ver pela primeira vez que há esse olhar externo sobre uma coisa que é interna. Isto não é um assumir do que é a cultura portuguesa.
Não é uma bandeira?
Não é uma bandeira. É um olhar totalmente pessoal sobre algo que é contemporâneo também. Assenta numa ideia de transversalidade em mim, da mulher que fui, da mulher que quero ser, da artista que se está a desenvolver. De como é que leio a poesia, de como é que ouço música e como é que a consigo produzir. No fundo, estão aqui traços de identidade. Só que é uma identidade que se constrói.
Volto aos versos: “O maior anseio é poder ficar?”; “Estou a tentar simplesmente ser?” Há uma reflexão sobre o lugar que ocupa na música portuguesa e no fado.
Podia responder “sou a Carminho” e fugir a esta questão com airosidade, mas quero ir mais longe. Não gosto de ter de me definir. Sei que sou portuguesa, sei que sou mulher, que sou fadista.
Que passou pelo Algarve e se fixou em Lisboa.
Que passei e que sou desses lugares, mas na verdade estou sempre a tentar descobrir o que sou… mais do que tudo, não me perguntem se sei quem sou, mas sim se sou fiel àquilo que sou. Mais importante do que propriamente saber quem sou, é que sou fiel ao pouco que sei. É nessa permanência e nesse ficar e na vontade de praticar, no “simplesmente ser”. O fado está tão presente e é tão transversal na minha natureza que basta praticar o fado para ele já estar a ser traduzido, a existir e a ser pertinente. Quem sabe também a ser transformado, porque há a contaminação de uma nova geração. Posso estar a cantar os mesmos fados que cantava uma fadista nos anos 50 e o simples facto de o praticarmos em tempos diferentes traduz-se em resultados diferentes. Porque somos diferentes. E é aí que surge espaço e conforto para a experimentação. É uma fenda, um lugar, uma espécie de oportunidade onde a experiência vai tomar o lugar. É aí que eu tenho de ser fiel comigo e séria nas minhas intenções.
Daí ter assumido o comando, incluindo na produção?
Não sei se foi querer tomar o comando, mas foi uma questão de necessidade de ouvir aquilo com que me identifico e o resultado que me é representativo do que eu sou para que possa ser fiel. Não quer dizer que daqui a um ano não convide alguém, um artista diferente e mais conceptual, para poder interpretar de forma diferente e assumir esse mesmo comando. Aqui foi um acreditar que conseguia levar até certos portos o meu olhar, o meu ouvido e as minhas convicções.
Muitos apontam o facto de ser uma artista de decisões firmes e ponderadas, que nunca se esquece das suas origens. Há fadistas que parecem ter enveredado por outros caminhos na exploração de géneros musicais. A Ana Moura, a título de exemplo.
Como disse, o fado é uma língua viva. Na prática vai transformar-se ao longo do tempo. Isso não tem nada que ver com estilos musicais diferentes. A Ana [Moura], por exemplo, tem um disco muito plural, com uma mistura de influências, de géneros. Tem o fado, como tem a música africana. Portanto, essa ideia musical não é necessariamente uma ideia de evolução do fado. É uma ideia de evolução artística, até porque não acredito que um artista possa dizer que vai transformar o fado, nem qualquer estilo musical. Ela tem a experiência dela e o fado aglutina o que tiver de aglutinar. Às vezes costumo dizer: se chegar um dia a uma casa de fados e estiver lá um oboé contratado e várias casas de fado fizerem o mesmo, quer dizer que o instrumento foi aglutinado pelo fado, integrou-se, e não há nada de mal nisso. Mas essa é a forma em que se vê como um estilo musical se transformou e aglutinou. Se formos ver, foi o Paco de Lúcia que levou o cajón para o flamenco. É algo recente. Antes disso estavam lá as palmas, que serviam o mesmo propósito, neste caso. Mas essa pesquisa e esse trabalho é sempre interessante. Perceber o que é que cada instrumento pode servir no fado e como é que este se pode transformar.
Disse numa entrevista: “É de dentro para fora que têm de ser feitas as mudanças. É saber por exemplo como é que tocava o Armandinho e depois o Fontes Rocha, perceber a diferença entre essas duas formas de abordar a guitarra portuguesa. É muito fácil ficar-se com vontade, e percebo que seja tentador, de se trazer uma grande mudança, de se ser o portador do Graal.”
Lá está, não se consegue ser o portador do Graal. Porque, para já, quem muda realmente é de dentro e quem é de dentro nunca acredita que tem o Graal, porque existiram muitos outros antes. Se alguém acha que tem o Graal, então não conhece o interior. Está a tentar fazer um exercício estético de pretensão de mudança, de querer transformar em si mesmo toda uma história que é também de mudança ao longo do tempo. E é preciso respeito pelos que estiveram cá a fazer este trabalho e a praticá-lo. No xadrez não há esse risco, porque não há jogadas de mestre. No xadrez pratica-se e é talvez um dos desportos mais difíceis de jogar por isso mesmo. Ninguém chega ao xadrez e mata o adversário se não souber já como jogar.
O disco tem letras de Rita Vian, Joana Espadinha e Luísa Sobral. Há um lado feminino declarado?
Há, mas foi uma constatação à posteriori. Não é uma busca pelas mulheres e tentar que elas estejam ali. Dei por mim e as canções que venceram e que escolhi eram todas de mulheres — ou quase todas. Para mim foi um absoluto prazer constatar isso.
No caso da Rita, numa espécie de dueto.
Sim, não é um dueto ortodoxo, mas mostra muita coisa sobre uma mulher que serve outra mulher, num serviço de humildade enorme. Ela está a fazer uma cama para eu cantar e isso é de uma generosidade como artista, num dueto entre duas mulheres, que é muito significativo e muito simbólico. Eu disse-lhe que aquilo era de facto muito forte, porque não é só a canção extraordinária que é dela e que é linda, mas é a atitude da canção e a forma como construímos juntas. Foi muito impactante. No caso da Luísa Sobral, ela é uma escritora de canções nata, pareceu que nasceu com uma pasta de canções debaixo do braço, quando ainda nem sabia falar e já fazia hits. E a forma como elas encaram a língua portuguesa e encaram as palavras também é algo com que me identifico.
Mas também há Marcelo Camelo, que vai buscar um lado mais transatlântico.
É a primeira vez que estamos a colaborar e foi lindo. Estivemos imenso tempo a tentar chegar a este ponto. Ele primeiro mandou-me esta canção, entretanto fomos tentar outras, depois fez arranjos… foi um trabalho de laboratório e de oficina num tempo muito rico. E acredito que vamos fazer muitas coisas juntos. E sinto que a canção demonstra a grandiosidade dele como compositor, como intérprete no mundo, ele que é brasileiro, mas que vive em Portugal e que tem esta capacidade de tradução dessa ligação transatlântica.
Que já estava também no seu percurso.
E por isso é que me identifico tanto com a canção e com esse gesto do Marcelo. Por isso é que faço vénias para que haja mais oportunidades de trabalharmos juntos.
Para aquela menina que um dia cantou no coliseu, aparentemente preocupada com a roupa que vestia, há hoje o conforto de ver que correu tudo bem?
Sim. E isso num período em que o fado não era assim tão bem recebido. Não era só o facto do fado poder estar lá fora, mas de querer sair e não ser assim muito bem entendido. Hoje, olho para trás e tenho imensa honra de ser fadista. Sinto-me muito agradecida ao fado por ele me ter permitido pertencer a esse lugar. Sinto que o fado me acolheu, a determinada altura da minha vida. Vim do Algarve e apesar do fado já ser parte de mim, houve assim uma espécie de desenraização. Sentia que não tinha onde pertencer e foi no fado que senti um lugar de pertença.
Há o lado de star system, quando se alcançam certos patamares, em que muitos se deslumbram. Ainda se reconhece como fadista na casa de fados, a cantar para uma pequena plateia?
Sem dúvida e continuo a fazê-lo.
É justo dizer que, a certa altura, foi preciso levar o fado lá fora, para ele ser melhor entendido cá dentro?
Talvez, acho que às vezes é preciso reconhecer… isto passa por muita coisa. Não digo tanto o público, mas também a imprensa. A comunicação que era feita do fado era muito depreciativa e limitada. Havia gerações de ouvintes com muito preconceito em relação à história do fado, de ser conotado com a propaganda política e havia esta dúvida sobre a casa portuguesa e todos os outros estereótipos. No outro dia perguntavam-me se ainda me identificava com o fado da desgraçadinha. E eu penso “já ouviram o fado ‘O Quarto’ que abre o meu disco?” As nossas emoções, o que sentimos e o que cantamos não pode ser colocado em gavetas, com exclusividade. A pessoa que sente uma dor não é uma desgraçadinha, mas os temas continuam a ser os mesmos.
Porquê?
Porque o ser humano é o mesmo. Talvez pudesse estar escrito com outras palavras, talvez já não nos identifiquemos com as palavras “ardina” ou “varina”, mas isso são os temas naturais do fado e que o fazem estar na história. É importante que não se vá recuperar só esses, mas todos os outros, que sejam atuais ou que façam novos. É essa a dinâmica, entre o passado e o presente, que é importante ser tida em conta quando se constrói repertório, com espírito critico e uma análise reflexiva sobre o que se vai cantar. A minha mãe obrigava-me a desligar o rádio. Dizia que eu tinha de escrever os fados no papel, para eu não copiar apenas o que escutava. Aquilo é uma tentação muito grande, dá-nos prazer porque é uma linguagem… é como a alegria de chegar à praia e ter esse preencher de emoção. É o reconhecer de toda uma história que sinto quando entro numa casa de fados. É o que sinto quando ouço os primeiros acordes do “Pintadinho” da Maria Teresa de Noronha. É indiscutível que me emocione sempre e eu quero cantar aquilo.
Ainda se emociona?
Muito mesmo. Ouço bastante fado e há sempre esse lado. Mas isto para dizer que o repertório tem de ser pensado e temos de ter consciência do que estamos a cantar. Os tempos mudaram. Sabemos que o fado também era machista, com letras difíceis de compreender, mas isso não me pode caracterizar a mim como artista. Daí a escolha que faço, também com o intuito de que não se mantenha essa preguiça de pensar no fado como era lá atrás num tempo longínquo.
Em 2009, na altura do seu primeiro disco, escrevia o Miguel Esteves Cardoso: “Estamos na presença de uma potência incontrolável. Cuidado com a Carminho”. Está confortável no lugar que ocupa?
Estou bem no lugar de sentir que dou o meu melhor e que tento procurar a verdade. Não sei bem o que é que isso quer dizer, mas gosto da ideia. Procuro ser honesta com o que sinto, de ser honesta com o estilo musical que me acolheu, de respeitá-lo e de olhar para aquilo que me foi ensinado e transmitido. E respeitar a minha intuição, que pressupõe muitas vezes não ser entendida dentro desse mesmo meio. No fim do dia, o que importa é cantar aquilo em que acredito.