Já é oficial: pela terceira vez em duas legislaturas diferentes, o Parlamento voltou a decidir despenalizar a eutanásia – mas, na verdade, este será só o primeiro passo de um caminho que segue agora para a fase da especialidade, para afinar detalhes, e que só depois da previsível aprovação final pode tornar-se turbulento — quando chegar às mãos de Marcelo Rebelo de Sousa.

Para já, no hemiciclo, a votação decorreu de forma calma e sem surpresas: os partidos voltaram a apresentar os seus argumentos e houve uma larga maioria de votos a favor de todos os projetos (PS, IL, BE e PAN), que são, na redação, praticamente iguais. E chumbaram, igualmente sem surpresas, a proposta de referendo do Chega. Faltará, assim, o próximo obstáculo: o aval do Presidente da República. Quando Marcelo vetou a última tentativa de despenalização, em novembro, deixou claro que teria ainda mais reservas caso os partidos deixassem cair a expressão “doença fatal” – coisa que acabaram mesmo por fazer. E avisou: sendo esses os moldes, tinha dúvidas de que houvesse consenso na sociedade portuguesa para avançar com a despenalização. Os partidos discordam e não hesitaram em voltar a desafiar Belém. Os próximos episódios do processo da eutanásia seguem dentro de momentos.

Eutanásia. Doze respostas sobre o debate que regressa agora ao Parlamento

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A favor

Feitas as contas, todos os projetos para despenalizar a eutanásia foram aprovados com pelo menos 126 votos a favor. O que gozou de maior margem de aprovação foi o do PS, aprovado com os votos de quase toda a bancada do PS, seis deputados do PSD, e as bancadas do Bloco de Esquerda e Iniciativa Liberal, a somar a Inês Sousa Real (PAN) e Rui Tavares (livre). A variação em relação aos outros projetos foi muito curta, com um ou dois deputados a alternarem entre o voto a favor e a abstenção, consoante a proposta.

O lado do Parlamento que é favorável à eutanásia entrou no debate confiante: afinal, aqui não há obstáculos – esta composição do Parlamento conta, como se comprovou, com uma maioria confortável de deputados pela despenalização – e só quando a lei chegar a Belém é que pode voltar a ser travada. E foi precisamente com este possível obstáculo em mente, e tendo em conta o veto político de Marcelo Rebelo de Sousa que travou a última tentativa de legalizar a eutanásia, que os deputados foram dando garantias sobre a versão atual da lei.

Desta vez, Marcelo estará, na verdade, ainda menos satisfeito, uma vez que os partidos proponentes – PS, IL, BE e PAN – deixaram cair a expressão “doença fatal”: para Marcelo, um alargamento do objeto da eutanásia; para os partidos, apenas uma simplificação da linguagem e a concretização do que já era o espírito da não tão minimalista lei.

Ainda assim, as primeiras palavras foram de tranquilização: Isabel Moreira, do PS, que tem sido um dos rostos da construção desta lei – e que chegou a emocionar-se durante a sua intervenção – defendeu que “não há lei mais defensiva” do que a portuguesa, que alguns até consideram “pecar por cautelosa”. E contrapôs: não só a lei sempre se dirigiu a pessoas que passam por um “sofrimento atroz” que “ponha em causa a subsistência da própria vida” – não que estejam literalmente em risco iminente de vida – como todos os países europeus que legalizaram a eutanásia seguem moldes semelhantes, sobretudo Espanha, caso que o Tribunal Constitucional português apontou como exemplo para ultrapassar as dúvidas de constitucionalidade. E aproveitou para deixar um aviso ao Presidente: se o Parlamento quiser, tem maioria para simplesmente voltar a aprovar a lei e ultrapassar um hipotético novo veto — se não o fez até agora é apenas porque quis que o diploma entrasse em prática “sem mácula”.

Das outras bancadas proponentes, foram muitas as garantias contra “alarmismos” ou “mistificações”: Catarina Martins, coordenadora do BE, lembrou que a lei tem sido amplamente debatida – até porque já foi votada várias vezes no Parlamento – e criticou as “campanhas desesperadas” de quem não aceita que a “larga maioria” dos portugueses é favorável à despenalização. Não se dirigiu a Marcelo, mas podia: no último veto, o Presidente avisava que o facto de deixar cair o termo “doença fatal” radicalizava a lei e colocava em dúvida se, nessa formulação, haveria uma maioria social a favor do diploma.

No PAN, argumentos semelhantes: o modelo é “seguro” e não pode ser travado por “preconceitos pessoais”, insistiu Inês Sousa Real. A Iniciativa Liberal – que mudou a sua posição quanto ao referendo, uma vez que há dois anos chegou a votar a favor – defendeu a liberdade individual, e frisou que, afinal, os direitos fundamentais “não são referendáveis”.

Houve ainda duas intervenções a favor na bancada do PSD, que sentou na linha da frente dois deputados favoráveis à despenalização e dois contra, com o líder parlamentar, Paulo Mota Pinto, sentado no lugar do meio, para sinalizar a tradição do partido – dar liberdade de voto aos deputados nesta matéria, por se tratar de uma questão de consciência. Assim, e apesar de a esmagadora maioria dos sociais-democratas ter votado contra, André Coelho Lima e Sofia Matos intervieram para representar os deputados laranja favoráveis.

Coelho Lima expôs o argumento que justifica que, na sua ideia, um deputado do PSD seja a favor da eutanásia: a matriz do partido é personalista e esta posição espelha isso mesmo. Falando no que diz ser um “ato de amor e altruísmo”, questionou: “De quem é o direito à vida? É nosso ou daquele que a vive? Como se pode ser humanista e impedir a cada ser humano a sua autodeterminação?. Sofia Matos defendeu, na mesma linha, o direito a “poder escolher”.

Aos proponentes e aos deputados do PSD juntou-se ainda Rui Tavares, que na última legislatura não tinha assento no Parlamento. Por isso, foi breve e resumiu a sua mensagem aos autores dos projetos: “Obrigado, e contem com o meu voto”.

Contra

No final de todas as contas, os votos contra foram sempre 88, colocando do mesmo lado o Chega, o PCP, 63 deputados do PSD (incluindo o líder parlamentar, Paulo Mota Pinto, e dirigentes como José Silvano e Ricardo Batista Leite), e sete do PS (Joaquim Barreto, Romualda Fernandes, Raquel Ferreira, Cristina Sousa, Pedro Cegonho, Maria João Castro, Sobrinho Teixeira).

Os argumentos não foram, porém, tão alinhados. No Chega, o discurso foi mais radical nas palavras e logo em duas frentes: não só atacavam os projetos pela legalização da eutanásia como a oposição que já adivinhavam à sua proposta de referendo (ver em baixo). André Ventura acusou a esquerda de não querer proteger os idosos e os mais vulneráveis, mas antes querer “dar-lhes a morte diretamente através do SNS”. Citou até Ramalho Eanes para dizer que é absurda esta discussão sem haver acesso da maioria da população a cuidados paliativos. “Ao menos tivessem presente o general Ramalho Eanes” — que é contra a legalização. Já o deputado Filipe Melo, da mesma bancada, foi ainda mais longe, ao acusar os partidos pro-eutanásia de estarem “obcecados com a morte dos portugueses”.

Sobre a proposta de referendo da bancada do Chega, Ventura afirmou que “ao contrário dos outros”, o Chega não tem ” medo de ouvir Portugal”. “Por alguma razão o PS omitiu a eutanásia do seu programa: têm medo de ouvir os portugueses”, provocou dirigindo-se à bancada socialista. E depois também à da Iniciativa Liberal, que há dois anos votou a favor do referendo e hoje é contra.

No PCP, coube a Alma Rivera fazer a defesa de uma posição que “não foi tomada de ânimo leve. Não se baseia em maniqueísmos ou ideias feitas” e dispensa “qualquer atitude de arrogância intelectual ou qualquer invocação de superioridade moral”. A deputada comunista garante que o partido é “laico e de esquerda e baseia as suas posições numa reflexão onde não cabem dogmas nem anátemas”, opondo-se à “opção legislativa”, dizendo que “uma sociedade organizada não é uma mera soma de autonomias individuais”.

Já no PSD, a bancada foi a dois tempos, misturando intervenções a favor e contra, duas de cada. Contra a legalização da eutanásia falaram Paulo Rios e Cláudia Bento, o primeiro a criticar a “opção laxista” dos partidos que apresentaram iniciativas pela despenalização, ao deixarem cair a expressão “fatal” como condição para o recurso à eutanásia. “Adequaram alargando, abrindo mais a porta para a solução radical drástica a que se refere o Presidente da República”, afirmou. E a segunda deputada a focar-se sobretudo na questão da rede de cuidados paliativos que é insuficiente e devia ser a prioridade do Parlamento.

Abstenção

As abstenções foram, nos casos dos quatro projetos, ligeiramente variáveis. Com um diploma que causa maioritariamente posições firmes a favor ou contra, no projeto do PS – o mais votado – registaram-se apenas quatro abstenções no PS (João Azevedo, Ricardo Pinheiro, Nuno Fazenda, Miguel Iglésias) e uma no PSD (Lina Lopes). No caso dos projetos de BE e IL, Adão Silva, do PSD, passou também para a abstenção e no projeto do PAN Pedro Carmo, do PS, fez o mesmo.

Referendo do Chega chumbado. E a cambalhota da IL

A única proposta que havia neste sentido era a do Chega e chumbou com votos contra de PS, nove deputados do PSD, IL, PCP, BE, PAN e Livre. Houve duas abstenções no PSD (Joana Barata Lopes e Bruno Coimbra). A favor votou o Chega e a maior parte da bancada do PSD. Resultado final: 147 votos contra, 77 a favor e 2 abstenções.

O Chega avançou com um projeto de resolução neste sentido argumentando com a necessidade de “ouvir os portugueses, “deixá-los falar num tema tão sensível”. André Ventura provocou diretamente o PSD, lembrando que Cavaco Silva ou Marques Mendes, ambos ex-líderes, são a favor do referendo; mas também o próprio novo líder, Luís Montenegro — que assume a presidência do partido após o congresso do início de julho.

Depois atirou aos “famosos liberais”. “Liberais em tudo, menos em ouvir os portugueses”. E lembrou mesmo que a IL chegou a ser favorável ao referendo. O que é certo é que na intervenção desta quinta-feira, João Cotrim Figueiredo afirmou que o referendo “é uma tentativa tosca de fazer duas coisas inaceitáveis. A primeira é de estabelecer um precedente de que direitos fundamentais e liberdades individuais são referendáveis. Não são e nunca deverão ser.” Há dois anos, o mesmo deputado votou a favor, ao lado do CDS (André Ventura, na altura deputado único, faltou a essa votação) de uma iniciativa de cidadãos pelo referendo à eutanásia. Ventura deu uma explicação para a mudança da IL: a “amizade com o PS”.

Alexandra Leitão, do PS, também falou desta proposta para a classificar de “errada, inaceitável e, já agora, inconstitucional”. “Referendar a liberdade individual de cada um é uma contradição, uma ditadura da maioria. Quem defende a liberdade não impõe aos outros as suas convicções”, argumentou a socialista que considera o Parlamento suficiente para decidir sobre esta matéria.