Annie Clark sempre foi obcecada por música. Aos cinco anos já brincava com uma guitarra de plástico. Aos nove, os Nirvana caíram-lhe no colo, com o portentoso Nervermind (1991), e ela nunca mais foi a mesma. “Nunca me vou esquecer de quando ouvi esse álbum pela primeira vez”, revela ao Observador, numa entrevista de antecipação do seu sétimo trabalho de estúdio. “A música que ouvia nessa altura era a pop que passava na rádio ou as canções que os meus pais ouviam. Mas, quando ouvi Nirvana pela primeira vez, percebi que aquela era a minha música, que era a música da minha geração.”
As malhas pesadas — “que adoro e que me fazem querer partir merdas, cuspir e esfolar os joelhos”, diz — sempre foram a sua casa e o seu coração. Se St. Vincent fosse uma artista linear, provavelmente era esse o espírito que teria encarnado desde que se estreou a solo com Marry Me, em 2007. Felizmente, não o é, e a sua carreira camaleónica é o retrato de uma mulher que se procura experimentar e desfragmentar a todo o momento. “Acho que todos os discos que fiz refletem aquilo pelo que passei na minha vida, numa determinada altura. Em alguns deles, fiquei obcecada com a ideia de criar uma persona. Não tinha como fugir disso, porque sou uma pessoa queer, atenta às questões de género e à ideia de desconstrução de identidade”. O novo All Born Screaming, por sua vez, mostra uma versão de St. Vincent conceptualmente mais despojada e exposta. “Este álbum não é sobre a desconstrução de uma persona, isto é a vida, a morte e o amor”.
A música a revelar-se a si mesma
Em fevereiro deste ano, Clark explicou à revista britânica Mojo que o seu novo trabalho personificava “uma pop pós-praga”: “A pandemia representou um tempo de perda coletiva e pessoal, mas a perda e a morte podem levar a estados de clareza, na medida em que fazem desaparecer tudo o que não é de todo relevante”, declarara. Hoje, refletindo com mais algum distanciamento, a autora do podcast History Listen: Rock partilha outro ponto de vista: “Primeiro, porque não quero estar a relembrar as pessoas desse período. Embora o tenhamos ultrapassado, foi um período de muitas perdas. Ninguém é o mesmo depois disto e talvez ainda seja cedo para perceber o verdadeiro impacto da pandemia e o que realmente mudou. Depois, achei que apelidar este álbum de ‘pop’ não era de todo verdade. Claro que há canções, grooves e melodias memoráveis, mas não é um álbum pop, até porque nem sei bem o que é que ‘pop’ significa hoje em dia”.
[o vídeo de “Broken Man”:]
Se há algo que a pandemia fez, inquestionavelmente, foi colocar Annie Clark em contacto consigo mesma, num processo de composição e de produção a solo. Este, aliás, é o primeiro trabalho produzido inteiramente pela artista. “Eu sabia que tinha sonoridades na minha cabeça que só eu conseguiria transpor para o álbum. Foi um desafio. Não tinha ninguém comigo a dizer ‘está ótimo, vamos seguir em frente’. Tinha-me apenas a mim e isso foi, em certos momentos, duro, porque tinha de conciliar o olhar de performance com o olhar de produtora”.
Apesar disso, All Born Screaming é tudo menos um disco solitário. Nele participam muitos músicos e amigos de St. Vincent, como Stella Mozgawa, das Warpaint; Justin Meldal-Johnsen, que se encarregou dos baixos e teclados e que no passado trabalhou com bandas como os Air e os Nine Inch Nails (são notórias as influências de Moon Safari (1998) e de The Downward Spiral (1994)); Cate Le Bon, “uma das minhas melhores amigas e uma das minhas artistas preferidas de sempre”, que ajudou Annie a ultrapassar bloqueios criativos; ou Dave Ghrol que, agarrando a bateria, deu a volta ao tema “Flea” e elevou-o para “outro patamar”: “Conhecemo-nos quando os Nirvana entraram no Rock & Roll Hall of Fame [na cerimónia de 2014, St. Vincent foi convidada para tocar Lithium]. Desde aí que nos tornámos amigos. Ele é simplesmente o melhor! É tudo o que gostarias de ser e mais ainda”.
Nenhum destes convites foi premeditado, garanto-nos a artista crescida em Dallas, no Texas, enfatizando uma das lições que guarda para a vida: “A música é mais esperta do que tu. Desde que ouças o que ela pede, honrando a canção e não tentando impor-te a ela, a música dir-te-á o que precisa. Parece um pouco místico, mas se apenas tentares servir a música, ela eventualmente revelar-se-á a ti”.
Pé fundo no rock: “As minhas raízes estão aqui expostas”
O que se revelou perante St. Vincent foi o lado cru do rock. All Born Screaming é marcado por pulsões primárias, é marcado por vários tipos de morte: de uma vida, de uma relação, de uma era, de um paradigma, de uma forma de atuar no mundo e de nos comportarmos. É fogo posto em erva seca para que, da terra queimada, nasça outra forma de vida qualquer.
Talvez por isso o disco abra logo com Hell is Near e com as palavras “our beginning begin again”. “Sou uma sortuda pelo facto de a arte ser o meu modo de vida. É um lugar onde posso despejar toda a violência, caos, beleza, o meu mundo interior e exterior e juntar tudo num sítio onde isto faça algum sentido. Como uma vez disse o Brian Eno, a arte é um carro no qual podemos esbarrar uma e outra vez de forma segura, safando-nos sem lesões.”
Ao volante da sua música, Annie Clark estatelou-se na tristeza, num certo negrume, mas também na vulnerabilidade. Na mesma entrevista à Mojo frisara, inclusivamente, que este era o seu trabalho menos divertido de sempre e o mais carnal. Contudo, é precisamente quando o cenário ganha contornos apocalípticos, que o disco revela um sopro de esperança e humanidade inesperado, uma luminosidade que, sendo o avesso da catástrofe, bebe da mesma energia criativa. “I forgot people be so kind in these violent times”, canta na faixa Violent Times, tema que lembra Shirley Manson, dos Garbage, a lançar a sua voz sedutora e grave em The World is not Enough.
Mesmo não se assumindo como um exercício de diluição de identidade, All Born Screaming acaba por tocar em distintos nomes e eras da história do rock, trazendo à tona, de um modo surpreendente e até contraditório, uma versão depuradíssima de St. Vincent. É como se Annie Clark compreendesse, ao fim de quase 15 anos de carreira a solo, que não valia a pena ser mais esperta do que si mesma. Que, bastando-se a si e ouvindo-se com atenção, toda a sua essência fluída e estética bowieana acabariam por aflorar naturalmente. Assim o escreve em So Many Planets, irmão próximo de Redondo Beach, de Patti Smith:
“here at the back of my head watching my life happening
feeling distinct smithereens i’ve gotten used to it
I have to visit so many planets before I find my own
I fall asleep in the golden highway before I find it”
Ao longo das 10 faixas do disco, St. Vincent é PJ Harvey e Karen O, Madonna e Talking Heads, Nick Cave e Tori Amos, Texas e Aerosmith, Bauhaus e Underworld. É isso sem ser coisa nenhuma, sendo ela mesmo uma valquíria que personifica as virtudes dos seus heróis e heroínas, revisitando, ao mesmo tempo, as várias personas da sua própria discografia. “As minhas raízes estão aqui expostas, isto sou eu, não tenho como escapar”, afirma. A raiva do grunge, o lado sombrio e sarcástico do pós-punk, a leveza da eletrónica espacial, o rock psicadélico dos anos 60, as melodias dos 90, está tudo lá, nessa árvore de ramos nervosos que é All Born Screaming.
O álbum, lançado esta sexta-feira, 26 de abril, viajará primeiro pelos Estados Unidos. “Os concertos serão um misto de rock, daquele que vai diretamente ao coração e, ao mesmo tempo, uma festa em êxtase”, revela. Ainda não há novidades sobre as datas europeias, mas a visita a Portugal está garantida. “Estás a brincar? Amo tocar e amo Portugal. É um dos meus lugares favoritos no mundo para atuar e para passar férias”. Com sorte, poderá fazer as duas coisas em simultâneo. Como sempre, St. Vincent poderá fazer o que ela quiser.