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“A curto-médio prazo pode haver um empobrecimento da oferta de concertos a que o público tem acesso”, arrisca Vasco Sacramento, da agência Sons em Trânsito
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“A curto-médio prazo pode haver um empobrecimento da oferta de concertos a que o público tem acesso”, arrisca Vasco Sacramento, da agência Sons em Trânsito

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

“A curto-médio prazo pode haver um empobrecimento da oferta de concertos a que o público tem acesso”, arrisca Vasco Sacramento, da agência Sons em Trânsito

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

O impacto da inflação na música. Vamos ter menos concertos internacionais? "Se já ficava mais caro chegar a Portugal, agora…"

Com a inflação e a crise energética vieram aumentos generalizados em voos, combustíveis, estadias, alimentação. Portugal pode receber menos artistas estrangeiros? Quatro promotores respondem.

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[Este é o primeiro de dois especiais sobre o momento atual da indústria da música ao vivo — e a forma como está ou não a ser afetada pela inflação e pela crise energética. O segundo incidirá nos efeitos sobre as digressões de artistas portugueses:]

Os sinais começaram a chegar de fora. Ao longo dos últimos meses, sobretudo no pós-verão, as más notícias iam aparecendo: cancelamentos de digressões, adiamentos de espectáculos e, talvez uma novidade maior, músicos e bandas a anunciarem que não iriam fazer concertos na Europa ou no mundo porque financeiramente não lhes compensava sair do seu país para tocar.

Em outubro, por exemplo, a banda norte-americana Animal Collective cancelava a digressão europeia de apresentação do disco novo Time Skiffs, prevista para novembro, declarando: “Preparando-nos para esta digressão, fomos confrontados com uma realidade económica que simplesmente não funciona e não é sustentável. Da inflação à desvalorização da moeda, passando por aumentos galopantes dos custos de transporte e carga, e muito mais, simplesmente não conseguimos fazer um orçamento para esta digressão em que não percamos dinheiro — mesmo se tudo corresse tão bem quanto poderia correr”.

Não foi o único sinal de alarme. No mesmo mês de outubro, a banda britânica Urial Heep anunciava que também não iria fazer uma digressão que tinha prevista — e que incluía um concerto na Aula Magna, em Lisboa, mas também espectáculos em Madrid, Barcelona, Zagreb e Belgrado, entre outras cidades — devido a “questões relacionadas com logística e rotas de circulação”, citando também “custos inerentes às digressões que não param de aumentar”.

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Um mês antes, em setembro, era a norte-americana Santigold, autora de canções como “Disparate Youth” e “L.E.S. Artistes”, que anunciava o cancelamento de uma digressão nos Estados Unidos da América. “Enquanto alguém que faz música e atua ao vivo, não me parece que alguém antecipasse a nova realidade que nos esperava” após a pandemia, assumia Santigold, acrescentando que depois de dois anos em casa, os artistas viram-se confrontos com “inflação no auge — dispararam os combustíveis, [o aluguer de] autocarros de digressão, hotéis e custos de voos—” e com um mercado “inundado” pela quantidade de artistas que tentavam voltar à estrada. “Tentei e tentei, olhei para isto de todos os ângulos possíveis, e simplesmente não consigo tornar a digressão viável”, referia ainda.

Mais tarde, em declarações à revista Rolling Stone, Santigold foi ainda mais veemente: defendeu que o “sistema” da música ao vivo “já estava estragado” antes da pandemia, apenas piorou, e acrescentou: “Nunca foi ideal para mim, nunca senti que o nível de stress e tensão provocado por andar em digressão tivesse correspondência adequada em termos de compensação. Podemos fazer dinheiro com digressões, sim, mas é dinheiro suficiente para nos sustentar? Acho que nunca foi. As pessoas estão sem dinheiro e com dificuldades, portanto tentas pôr bilhetes a um preço que seja razoável. Mas andar em digressão é gestão de crise”.

Se a economia da música ao vivo já estava por um fio, entende Santigold, tudo se agravou. A “inflação insana” e os “preços dos combustíveis” criaram uma tempestade perfeita, porque “movemo-nos entre países por via terrestre, quer na Europa quer nos EUA”. Os “camiões de digressão” também ficaram mais caros, tal como “os voos”. E “como está toda a gente em digressão neste momento, algumas pessoas cancelaram tours porque nem sequer conseguiam arranjar carrinhas e autocarros de transporte”.

Não foram estes os únicos artistas que cancelaram digressões e concertos ao longo dos últimos meses — foram, isso sim, os que explicaram mais detalhadamente os motivos dos adiamentos ou cancelamentos. Em outubro, a canadiana Avril Lavigne anunciava o adiamento de dois concertos (já esgotados) em Hong Kong e Manila (Filipinas), alegando simplesmente “dificuldades com logística de viagens e agenda”. E alguns dias antes, no final de setembro, era o rapper e cantor britânico Stormzy que, sem grandes explicações, anunciava o cancelamento de todos os concertos que tinha marcados fora do Reino Unido (incluindo uma digressão na Austrália) até ao final de 2022.

Já no passado mês de novembro, um mês depois de um outubro de 2022 em que chegou a ter dois concertos marcados na Altice Arena, Lisboa — mas que faziam parte de uma digressão internacional que foi cancelada ainda em 2021 —, o cantor e estrela pop The Weeknd avançava datas de uma nova tournée mundial. Apesar de passar por perto de uma dezena de países europeus, antes de terminar na América do Sul (México, Colômbia, Brasil, Argentina, Chile), a digressão não contemplou concertos em Portugal — o extremo mais ocidental da Europa a que The Weeknd viajará é Espanha, atuando em Barcelona e Madrid mas não chegando a Portugal.

Serão casos isolados e coincidências? Ou a crise na indústria ao vivo é mesmo real e, atingindo especialmente países periféricos como Portugal, que geograficamente está distante do centro da Europa, pode afetar a oferta de concertos a que o público português vai ter acesso já no próximo ano?

Para o percebermos, falámos com alguns programadores de concertos, promotores e responsáveis de empresas de agenciamento e produção de espectáculos do país. Nomeadamente, com Pedro Azevedo, diretor artístico e programador do espaço lisboeta Musicbox — que faz parte da Circuito – Associação Portuguesa de Salas de Programação e de Música —, Pedro Trigueiro, fundador da Arruada, agência e produtora que gere a carreira de artistas como Branko, Mallu Magalhães e Dino D’Santiago e que trabalha com o festival EDP Cool Jazz, Vasco Sacramento, responsável da produtora e agência Sons em Trânsito (que trabalha com artistas como António Zambujo, Carolina Deslandes, Gisela João, Pedro Abrunhosa e The Black Bamba, entre outros) e Álvaro Covões, diretor da promotora de espectáculos Everything is New.

“Mesmo artistas gigantes como o John Legend estão a fazer contas à vida”

Praticamente todos os promotores e produtores portugueses de espectáculos concordam com uma ideia: a crise energética e a inflação aumentaram os custos inerentes à circulação internacional dos artistas e das bandas — e se quem trabalha em Portugal já tinha maiores dificuldades para trazer artistas de outros países, por comparação com promotores e produtores de espectáculos de países da Europa central, com o impacto da inflação e da crise nos custos de transporte (combustível e voos), alojamento e bens, a desvantagem intensificou-se. Estes problemas, claro, são mais sentidos quando se fala em artistas internacionais emergentes e indie. Mas sentem-se de forma transversal na indústria da música ao vivo.

"Algumas digressões que estávamos a negociar nem sequer chegaram a ser concretizadas, porque deixou de haver viabilidade financeira para elas. Os artistas vivem de transportes. Precisam de aviões, de autocarros, de camiões, de gasolinas e de gasóleos..."
Vasco Sacramento, Sons em Trânsito

Questionado sobre se a Sons em Trânsito, que em 2022 terá produzido em Portugal “cerca de 800” concertos, tem vindo a sentir mais dificuldades para trazer artistas internacionais devido à inflação e crise energética, e consequente aumento de custos para os artistas, Vasco Sacramento assume: “Tem-se vindo a sentir bastante, com um agravamento substancial desde o verão. Temo-lo sentido nas condições que nos são exigidas, que aumentaram consideravelmente porque os custos também aumentaram. Algumas tournées que estávamos a negociar nem sequer chegaram a ser concretizadas, porque deixou de haver viabilidade financeira para elas”. Muitos custos, diz ainda, “praticamente dobraram” face a 2019, o último ano pré-pandemia. O que aumentou mais? “Tudo o que tenha a ver com energia. Mas depois há um efeito de contaminação a tudo: hotelaria, refeições, custos de promoção [de digressões].

“Os artistas vivem de transportes. Precisam de aviões, de autocarros, de camiões, de gasolinas e de gasóleos, e tudo isso está bastante mais caro”, lembrava ainda Vasco Sacramento, em conversa com o Observador.

Apesar do acréscimo de custos com a circulação de artistas de país em país afetar mais as bandas e artistas com público menos alargado e mainstream, e que por isso não vendem tantos bilhetes, não é só no meio indie que é sentido. Quem é o garante é o fundador da Arruada, Pedro Trigueiro, que dirige uma agência e produtora que este ano “esteve envolvida em cerca de 250 espectáculos” e que dá até um caso concreto de artistas de grande dimensão que vão equacionando se vale a pena sair do seu país e fazer digressões internacionais.

Pedro Trigueiro, fundador da Arruada (© Joana Linda)

“Não tem exclusivamente a ver com artistas com maior ou menor escala, é transversal”, defende Pedro Trigueiro. “Mesmo artistas gigantes, com grandes digressões… este ano trabalhámos o John Legend [no festival EDP Cool Jazz] e também esse tipo de artistas está a fazer contas à vida”, acrescenta Trigueiro, assumindo que “está mais difícil” trazer artistas internacionais a Portugal, desde logo norte-americanos: “É preciso X datas e X valores para atravessar o Atlântico. Há ‘N’ artistas aos quais estávamos a fazer propostas que pura e simplesmente não vão ‘rodar’, não vão fazer espectáculos e digressões porque, como dizem os brasileiros, ‘a conta não fecha’”. E se, devido à inflação e ao aumento de custos com uma digressão, ‘a conta não fecha’, então “não vale a pena”.

Pedro Trigueiro vai mais longe e descreve o atual momento da indústria dos concertos como “um crash”: “Está a crashar. Não estou a dizer que esteja pela hora da morte…já por altura da Covid falava-se em ‘resiliência’ e a indústria da música é um bocado como as baratas. Pode vir a bomba atómica que a música não pára. Mas tem de se inventar mesmo muito”. Os motivos para o tal “crash” são muitos: “Aumentaram os combustíveis, os voos, os hotéis, os alugueres de viaturas. A somar a uma fuga de públicos no pós-pandemia e a compra de bilhetes mais em cima da hora…”

"Queremos trabalhar, as bandas têm disponibilidade e interesse mas os custos impossibilitam. Não estamos a sofrer com cancelamentos porque nem chegamos à parte da contratação"
Pedro Azevedo, diretor artístico e programador do Musicbox

O diretor artístico e programador do clube lisboeta Musicbox — que, pela sua dimensão, aposta sobretudo em artistas nacionais e internacionais “em crescimento”, ainda sem um público alargado em Portugal —, Pedro Azevedo, também não tem dúvidas: trazer uma banda ou um artista internacional para vir a Portugal dar um concerto está hoje “mais caro” do que em 2019. “Acho que na maior parte dos casos é hoje mais caro”, vinca o responsável de um clube que está aberto todas as noites menos a de 24 de dezembro e que todos os anos é palco de atuações de “800 a mil artistas e bandas”. Diz mesmo: “Naquilo que é a linha de programação do Musicbox, queremos trabalhar, as bandas têm disponibilidade e interesse mas os custos impossibilitam. Não estamos a sofrer com cancelamentos porque nem chegamos à parte da contratação”.

O problema do custo dos voos: “Há um campeonato que saltou fora, já não veio ou veio muito pouco”

Se os custos relacionados com viajar e passar dias ou semanas na estrada cresceram de forma transversal, foi nos transportes que mais se agudizaram. O aumento do custo inerente a viajar de avião, por exemplo, é especialmente problemático para quem chega a Portugal por via aérea — o que acontece sobretudo com artistas vindo de outros continentes, como a América do Norte e a América do Sul.

A dificuldade de trazer artistas que chegam a Portugal (ou à Europa) por voo é resumida, em conversa com o Observador, por Pedro Azevedo: “Vou dizer uma coisa que parece um bocado ridícula. A partir do momento em que não existe uma companhia aérea dedicada só aos trabalhadores da área musical, estamos sujeitos ao preço das viagens — como todas as pessoas estão. E isto é uma realidade para toda a gente, sem exceções: não há ninguém que consiga comprar um voo mais barato”. Isso “tem impacto”, defende. E afeta sobretudo países europeus a que, não só mas também pela distância a que estão da Europa central, é mais difícil e dispendioso chegar por via terrestre, como é o caso de Portugal.

Para quem, para passar por Portugal numa digressão europeia, precisa de carro (para chegar ao país) mas também de avião (para chegar sequer à Europa), a dificuldade é ainda maior. E se o alcance dos artistas ou bandas não for o público de massas, fica ainda mais inviável. “Por acaso não fiz as contas e não reparei, mas a quantidade de bandas americanas que vieram aos festivais portugueses este ano foi seguramente menor do que em anos anteriores. E seguramente quem veio já não era uma banda para tocar num clube de 300 pessoas, como o Musicbox. Esse campeonato saltou fora, já não veio ou veio muito pouco. Os The War on Drugs quando vieram a Portugal pela primeira vez, vieram ao Musicbox. O concerto não esgotou, nem esperávamos que nessa altura esgotasse. Esse tipo de bandas em 2022 já dificilmente vêm cá. Aliás, fazendo um exercício de memória, tirando uma banda americana que esteve cá em junho, não me recordo de ter tido outra banda americana no Musicbox este ano”.

“Este aumento precipitado dos custos de energia, e por consequência todo o aumento precipitado de custos com prestação de serviços, tem inviabilizado determinados projetos. (...) É como o problema das cerâmicas: quando desligam o forno, depois é uma chatice, custa uma fortuna ligar o forno de novo."
Álvaro Covões, diretor da Everything is New

Álvaro Covões, diretor da Everything is New, também reconhece que há custos com a circulação de artistas e bandas de país em país, e logísticos relacionados com a produção e preparação de um concerto, que aumentaram face ao último ano pré-pandemia. Diz até: “Há bandas que estão a perder dinheiro e continuam a fazer tournée. Os custos aumentaram”. Mas desvaloriza: “Este fenómenos da guerra e do pós-Covid, e deste aumento precipitado dos custos de energia e por consequência todo o aumento precipitado de custos com prestação de serviços — em parte causado pela guerra, em parte causado também por muitos profissionais e empresas terem saído do mercado durante a pandemia —, fizeram com que muitos custos tenham subido. Isso tem inviabilizado determinados projetos. Mas faz parte, é a lei da vida”.

O principal responsável pela empresa que produz e organiza anualmente o NOS Alive, mas que além disso tem uma atividade permanente e intensa de produção de espectáculos (este ano, trouxe a Portugal Rosalía, Harry Styles, Dua Lipa, Guns ‘N Roses, Bon Iver e Arcade Fire, entre outros), nota ainda: “Há outra questão. De repente, houve mais espectáculos do que era normal. Por causa dos espectáculos que tinham sido adiados e que se juntaram a anúncios novos. Havendo um aumento de espectáculos, é preciso autocarros, camiões, equipamento de som, backline e técnicos. E não há. Portanto, os custos sobem. Na pandemia muitos técnicos deixaram de ser técnicos, muitas empresas acabaram”. Álvaro Covões faz um paralelismo: “É como o problema das cerâmicas: quando desligam o forno, depois é uma chatice, custa uma fortuna ligar o forno de novo. Aqui é um pouco semelhante: quando a coisa pára, depois para retomar…”

O diretor da EverythingisNew, Álvaro Covões (C), durante uma visita de imprensa ao recinto do festival Nos Alive, que decorre de 06 a 08 de Julho, no Passeio Marítimo de Algés, 04 de julho de 2022. JOSÉ SENA GOULÃO/LUSA

Álvaro Covões, diretor da Everything is New, no festival NOS Alive (© José Sena Goulão / Lusa)

Também Vasco Sacramento nota algum “entupimento” na dinâmica do mercado provocado pela pandemia: “A pandemia obrigou a que os artistas tivessem de estar em casa bastante tempo. Há uma certa sofreguidão na marcação de espectáculos e digressões, o que faz com que a concorrência aumente tremendamente”.

Um outro problema que emergiu após a Covid-19, e que em Portugal veio dificultar a retoma do setor da música ao vivo, está relacionado com o comportamento do público, entendem alguns dos programadores e produtores de espectáculos. Vasco Sacramento, por exemplo, aponta: “O público está um bocadinho mais hesitante do que antes da pandemia. A venda de bilhetes está a fazer-se muito mais em cima da hora“.

“Se antigamente já ficava caro chegar a Portugal, agora ainda mais”

Para a indústria portuguesa da música ao vivo, há problemas que são novos, relacionados com os custos acrescidos provocados pela inflação e pela crise energética. Mas há dificuldades que vêm de trás. Ainda que não relacionadas com os últimos meses, acabam por ser pedras no sapato que se juntam aos problemas recentes. E deixam Portugal “mais exposto” às dificuldades do setor, por comparação com outros países, entendem os programadores e produtores de concertos ouvidos.

O isolamento geográfico de Portugal na Europa é uma das desvantagens. Por via terrestre, Portugal está a mais de 1.300 quilómetros de distância de França e a perto de 2.000 quilómetros de distância de Londres. Outras cidades europeias como Berlim, Milão e Amesterdão, relativamente próximas entre si, estão muito distantes de Portugal.

Mesmo a distância de Madrid a Lisboa não é pequena. Chegando à Península Ibérica e à capital de Espanha, um artista ou uma banda internacional para ir a Lisboa tem ainda de percorrer mais de 600 quilómetros — só para a ida, porque se depois regressar são mais de 1.200 quilómetros de viagem, apenas para passar por Portugal.

A localização periférica de Portugal na Europa é um problema antigo e sem solução. Mas num momento em que os voos estão mais caros e o combustível também aumentou de custo, essa desvantagem ganha importância. E torna tudo ainda mais difícil.

"Portugal é um país periférico. As pessoas acham que os artistas vêm de avião, mas a maioria vem por estrada. Vindo por estrada, torna-se tudo mais complicado. As grandes cidades na Europa central estão a 100 quilómetros umas das outras, aqui estamos a 600 [de Madrid]."
Álvaro Covões, Everything is New

Vasco Sacramento, da Sons em Trânsito, vinca isto mesmo: “As pessoas não têm noção de que temos muito mais dificuldade em atrair um artista internacional ao nosso país do que um promotor de espectáculos da Europa central. Já nem digo de França ou da Alemanha, mas mesmo países de dimensão semelhante a Portugal como a Bélgica, a Áustria e a Holanda têm muito mais facilidade em contar com os artistas nos seus territórios, porque para um artista fica muito mais caro chegar a Portugal [do que a esses países]”. Se antigamente já era mais caro, nota ainda o promotor, “agora ainda mais”.

Acresce que “a nossa posição periférica faz com que, para além de Lisboa e Porto, num raio bastante alargado de quilómetros, não existam outras cidades com dimensão suficiente para atrair determinados espectáculos, enquanto no centro da Europa no espaço de duas ou três horas consegue-se chegar a várias outras cidades grandes”.

O diretor da Everything is New, Álvaro Covões, também vinca a localização do país como uma dificuldade acrescida para os promotores nacionais: “Portugal é um país periférico. As pessoas acham que os artistas vêm de avião, mas a maioria vem por estrada. Vindo por estrada, torna-se tudo mais complicado. As grandes cidades na Europa central estão a 100 quilómetros umas das outras, aqui estamos a 600. Se o artista só vender X bilhetes e esses bilhetes não derem para pagar o custo, aí ficam mais no centro da Europa ou nos mercados onde os bilhetes possam ser vendidos a um preço superior, para viabilizar a tour”. Porém, lembra também: “A importância de se passar nos países é relevante para se ser um artista global. Se os artistas deixam de ir a um determinado país, as pessoas começam a dizer: epá, estou-me a borrifar para eles. Os artistas têm de continuar a vir cá. Há que fazer esse esforço, nem que os bilhetes tenham de ser um bocadinho mais caros”.

Ainda existe um problema estrutural em Portugal, que não decorre só da localização geográfica mas que nunca foi resolvido, defende, em declarações ao Observador, o diretor artístico e programador do Musicbox, Pedro Azevedo: a demora em chegar a Lisboa de transportes ferroviários. “Entre França, Alemanha, Holanda ou Bélgica as ligações são fantásticas. É mais fácil”. Por exemplo artistas emergentes e em crescimento, ainda à procura de projeção internacional, encontram em Bruxelas “uma cidade minúscula” mas com “seis ou sete salas e clubes que estão constantemente a acolher artistas que viajam de comboio, de qualquer parte da Europa”. Cá o cenário é outro: “Além da distância, ainda temos uma péssima linha férrea. Demoramos dez ou 12 horas de comboio a chegar a Madrid — demora mais quatro horas do que ir de carro!”

Pedro Azevedo, programador e diretor artístico do clube lisboeta Musicbox (© Diogo Ventura/Observador)

Pagar mais aos artistas ou aumentar preços dos bilhetes é possível? É difícil (e pode ser contraproducente)

Se “a conta não fecha”, para utilizar uma expressão usada pelo fundador da Arruada Pedro Trigueiro, o que é possível fazer para que passe a “fechar”? Para compensar os custos adicionais que os artistas e as suas equipas estão a ter para viajar e circular entre países, há duas opções que parecem lógicas. Uma passaria por aumentar os cachês dos artistas e das bandas, para os convencer a continuar a fazer digressões (e, neste caso, a passar por Portugal). Outra seria aumentar o preço dos bilhetes, para que economicamente os espectáculos continuem a ser viáveis quer para quem percorre os palcos, quer para quem os organiza.

A equação é simples: se os custos aumentam, é preciso que as receitas também aumentem. Mas nenhuma das duas soluções, que à partida pareceriam lógicas, é fácil de implementar — e uma delas pode até ser contraproducente, notam os promotores e produtores de espectáculos.

Na maior parte dos casos não dá para inflacionar um cachê para cobrir os custos. Esse investimento não é recuperável — e a partir desse momento deixa de ser viável
Pedro Azevedo, Musicbox

Relativamente a possíveis aumentos dos cachês dos artistas internacionais, para os continuar a convencer que vale a pena vir a Portugal tocar, aponta Vasco Sacramento:”É uma missão muito espinhosa. A margem para acomodar esses custos adicionais, provocados pela inflação e pela crise energética, é muito reduzida” — também por causa da pandemia, que durante dois anos asfixiou a liquidez das agências de música e promotoras de espectáculos, refere.

A mesma dificuldade sente-se quando se fala de concertos de artistas e bandas “em construção de carreira”, como os define Pedro Azevedo, do Musicbox (que tem lotação para 300 pessoas): “É muito difícil. Depende de caso para caso. Na maior parte dos casos não dá para inflacionar um cachê para cobrir os custos. Esse investimento não é recuperável — e a partir desse momento deixa de ser viável”. É claro que existem exceções, nota: “Há investimentos que não são recuperáveis e que se fazem porque têm a ver com o posicionamento [da programação]. Obviamente que por vezes corremos riscos e trabalhamos. O que não é possível é continuar a arriscar havendo uma inflação”.

Tentar aumentar as receitas dos espectáculos por via da bilheteira também não é uma hipótese sem falhas. É até, sugerem alguns dos produtores de espectáculos, uma pescadinha de rabo na boca. Pedro Trigueiro, da Arruada, resume numa frase: “Os bilhetes não podem ficar muito mais caros, se não as pessoas desaparecem absolutamente”.

"É muito difícil que haja margem para viabilizar espectáculos sem que isso se reflita no preço do bilhete — sendo que isso pode realmente ter impacto na adesão das pessoas."
Vasco Sacramento, Sons em Trânsito

Questionado se já foi preciso encarecer bilhetes de concertos devido aos custos acrescidos provocados pela inflação, Vasco Sacramento, da Sons em Trânsito, aponta: “Temos já posto bilhetes à venda a um preço que sei que é elevado. Eu sei a realidade do país em que vivo e sei o que custa a um português médio dar determinada quantia para ver um espectáculo. Além de ganharmos consideravelmente menos do que os povos da Europa central, com a inflação galopante com que estamos o poder de compra das pessoas diminuiu”.

“Por mais que a cultura desempenhe um papel importante na vida de determinada pessoa”, nota ainda Vasco Sacramento, “nunca será tão importante como comer, vestir, beber… necessidades básicas”. Mas nesta fase, “é muito difícil que haja margem para viabilizar espectáculos sem que isso se reflita no preço do bilhete — sendo que isso pode realmente ter impacto na adesão das pessoas”. A cultura e os espectáculos, vinca, “não são um oásis da realidade do país”. E também no preço dos bilhetes é provável que a inflação faça a sua mossa em 2023, antecipa.

Também Álvaro Covões, da Everything is New, começa por lembrar: “Nós trabalhamos com o dinheiro disponível das pessoas. O dinheiro que o cidadão tem começa por ser para cobrir as necessidades mais básicas. Depois o que sobra, quando sobra… infelizmente vivo num país em que tenho a noção que para muitas pessoas não sobra”. De seguida, refere: “Cada espectáculo tem o seu preçário e bilhete definidos em funções de duas coisas: o potencial que tanto o artista como o promotor entendem que as pessoas estão disponíveis para pagar e a necessidade de receitas para cobrir os custos de uma digressão”.

É claro que há casos e casos, que tornam mais ou menos possível aumentar preços de bilhetes sem perder o público. Artistas de grande dimensão e cujo concerto em Portugal é, em si, um acontecimento — como é o caso dos Coldplay, que têm espectáculos agendados em 2023, com um preço de bilhete teoricamente elevado mas que esgotaram — permitem bilhetes mais caros. Os grandes festivais, sobretudo os que têm uma percentagem muito relevante de estrangeiros (com maior poder de compra do que os portugueses) entre os compradores de bilhetes, também terão mais facilidade em aumentar preços sem perder competitividade. E clubes noturnos como o Musicbox, que têm também uma grande afluência de estrangeiros por percentagem total de “clientes”, teriam igualmente facilidade em subir preços e aumentar receitas, já que o dinheiro disponível de quem chega via turismo é habitualmente superior ao dos residentes da cidade.

Esse é, porém, um caminho que Pedro Azevedo, programador do Musicbox, entende que não deve ser seguido: “Já caímos nessa tentação mas não efetivámos. O que não quer dizer que não tenhamos errado. Há um momento em que sentimos que um espectáculo já não é para nós, porque o preço do bilhete já é demasiado elevado”. O diretor artístico do clube noturno faz uma ressalva: “Quando temos parcerias com promotores, quando o investimento de um espectáculo está a cargo de promotores externos, não temos muito a dizer sobre o bilhete. Mas nos espectáculos produzidos pelo Musicbox, não aumentámos os preços este ano. Tivemos algum aumento no clubbing mas de um ou dois euros e que se reflete no consumo que é oferecido no bilhete — tem a ver com a valorização da programação artística, também”.

Para os artistas com um público alargado, de massas, atuar várias noites consecutivas na mesma cidade pode ser uma solução para atenuar o aumento de custos logísticos, que se sentem cada vez que é preciso mover uma estrutura pesada de uma cidade para outra, apontaram nos últimos meses alguns analistas internacionais. Fizeram-no até lembrando casos como o de Harry Styles, que este ano atuou 15 noites consecutivas no Madison Square Garden, em Nova Iorque.

Sobre esta hipótese, Álvaro Covões, da Everything is New, refere: “Se um artista anunciar uma noite, vender bilhetes e as vendas justificarem fazer uma segunda noite, isso tem vantagens. Mas é algo pensado de raiz, não é improvisado”. Acrescenta o promotor: “Há uma avaliação feita tanto pelo promotor como pelo artista, se pode haver uma, duas, três ou quatro noites. Essa pré-avaliação é feita. O caso de Coldplay [em Coimbra], por exemplo, estava previsto. É evidente que depois há um trabalho de base feito pelo promotor, com o agente e o management, que decidem: há capacidade para fazer quatro noites? Feita essa avaliação… depois a forma como se anuncia, se logo as quatro noites de uma vez ou uma de cada vez, é uma decisão conjunta“.

“O setor da cultura é dos mais organizados que existem”, reitera Álvaro Covões, dando um exemplo: “Uma Dua Lipa da vida chega no dia com 25 camiões de equipamento, montamos aqui e as portas abrem às 17h. O espectáculo acontece e às 2h já estão a caminho de Madrid. Isto requer uma capacidade logística e de organização muito grande. E, claro, do ponto de vista económico tudo tem de ser também muito organizado”.

O que os artistas internacionais têm também a perder — e o que vai ser o futuro próximo

O público pode vir a perder, se a oferta de concertos internacionais em Portugal abrandar devido ao aumento de custos precipitado pela inflação. Mas a perda pode ser bidirecional, sobretudo para artistas estrangeiros à procura de se projetarem internacionalmente e que necessitam ainda de ganhar fãs com os concertos ao vivo.

É esta, pelo menos, a perceção de Pedro Azevedo: “Clubes como o Musicbox estão espalhados pelo mundo inteiro. E esse tipo de salas são cruciais para os artistas internacionais emergentes. Um artista em crescimento precisa de tocar em venues para criar comunidades locais que o sigam e que possam servir de porta de entrada para chegar futuramente ao mainstream. Este tipo de espaços, que existem por todo o mundo, são essenciais para o desenvolvimento de uma carreira artística”, refere.

Neste mercado mais indie e emergente, se as bandas não tocarem em diferentes cidades “não há uma proximidade” com os públicos de cada país, entende o promotor. “Gera-se uma falta de conexão com bandas que é triste, acho que os artistas têm muito a perder com isso”, acrescenta.

"Quanto mais difícil for a operacionalização financeira dos espectáculos, mais caro terá de ser o preço dos bilhetes. Logo, mais difícil é que a procura exista e que os espectáculos sejam rentáveis."
Vasco Sacramento, Sons em Trânsito

O momento atual da indústria ao vivo gera dúvidas e algumas preocupações. Principalmente quanto ao próximo ano. Vasco Sacramento, por exemplo, projeta: “O que se antevê para 2023 é um cenário de dificuldade económica geral e obviamente o mercado musical não será imune a isso. Quanto mais difícil for a operacionalização financeira dos espectáculos, mais caro terá de ser o preço dos bilhetes. Logo, mais difícil é que a procura exista e que os espectáculos sejam rentáveis”.

O promotor da Sons em Trânsito, porém, diz não acreditar “numa hecatombe”. Até porque “a cultura dos espectáculos já está muito enraizada, as pessoas gostam dos espectáculos e da música”. O que pode acontecer é “um ajuste, uma adaptação, um redimensionamento da indústria e dos players que operam na indústria musical”. Haverá “gente que pode ficar pelo caminho” e há o risco de existir “a curto-médio prazo um empobrecimento da oferta a que o público tem acesso, porque pode deixar de ter tanta oferta como tem neste momento“, entende.

O diretor da Everything is New, Álvaro Covões, tem menos receios sobre o futuro da indústria da música ao vivo em Portugal e até sobre o que será o próximo ano — e lembra mesmo que no mundo inteiro “tem havido espectáculos como nunca houve”. Acrescenta: “Não podemos dizer que tenha havido mais espectáculos ou mais público do que em 2019 mas, quer dizer, voltámos muito àquilo que era normal”.

Mesmo no mercado mais indie e alternativo, as notícias não são exclusivamente negativas. Pedro Azevedo, do Musicbox, tenta ver o copo meio cheio: “Se não vier uma banda inglesa, ‘bora descobrir o que está a ser feito de fixe em Espanha, ou em cidades como Milão, em que ainda se conseguem comprar voos da Easy Jet por 100 euros“. O Musicbox, acrescenta, “está numa posição de ser criativo com os poucos recursos que tem” e, como outras salas de pequena e média dimensão, pode apostar mais em trazer artistas de latitudes geográficas menos anglo-americanas, onde também existirá qualidade nas bandas e artistas. Sendo menos conhecidas, há que “trabalhar melhor o perfil dos artistas”, indica.

O que o diretor artístico do Musicbox não deixa de reconhecer é que a menor rentabilidade dos concertos e digressões para os artistas, nesta fase, pode aumentar os problemas de saúde mental — cada vez mais assumidos em todas as indústrias de trabalho, de forma transversal, mas também particularmente no setor da  música. E há motivos para isso, no meio mais indie: “Nós não reduzimos a qualidade do nosso acolhimento por causa dos custos. Há os mínimos de conforto que temos de cumprir. Mas há muitos promotores que reduziram. Não estou a censurá-los, é uma forma de estar e fazer as coisas. Há, sim, uma série de bandas que provavelmente têm hoje em dia uma vida muito mais difícil na estrada. Não conseguem recuperar de um concerto para o outro, têm muito mais pressão“.

Azevedo dá um exemplo de problemas com que bandas emergentes se deparam, ao viajar de país em país: “Imagina o que é chegares a um hotel e de repente já não é bem um hotel, é uma pensão. Ou em vez de teres dois quartos duplos para quatro pessoas que estão na estrada, passar a ser preciso partilhar um hostel com mais quatro pessoas. Isto acontece e acontece cada vez mais. É óbvio que isso mexe muito com as pessoas e desgasta”.

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