Começo com um pequeno introito: um dos meus queridos leitores disse, a propósito do artigo anterior, que não pensava ser possível escrever tanto sobre escovas de dentes (mal sabe ele a quantidade de material que descartei para destilar um texto tão pequeno). Sugeriu, como tema para este artigo, a importância do arame farpado na ida à Lua. Imaginem, as possibilidades! Arame farpado, idas à Lua. Claro que tive de me controlar, porque o tema é de tal modo vasto e interessante que eu depressa iria cair num poço de investigação do qual não sairia tão depressa. E, temo dizer ao meu querido leitor lança-farpas, defini os temas destes artigos há mais de um ano: a escova de dentes era o artigo para dezembro. Para janeiro, é a palhinha. Sim, a palhinha que usamos (ou usávamos) para beber de copos, latas e pacotinhos de leite. Agradecendo muito a sugestão, peço por isso desculpa ao meu leitor entusiasta de vedações metálicas e viagens espaciais. O arame farpado não será tratado nestes artigos, e, decididamente, não ficará entre mim e estas linhas.
Em qualquer caso, deixo aqui uma brevíssima história da palhinha em quatro frases, em homenagem a esse leitor que parece não querer perder tempo com coisas irrelevantes. Fica assim: a palhinha é usada há mais de cinco mil anos, tendo sido provavelmente inventada pelos egípcios ou sumérios para beber cerveja. No séc. XIX, o americano Marvin Stone, apercebendo-se de que a palhinha (feita, precisamente, de palha – é daí que lhe vem o nome) não era muito eficaz, porque amolecia e alterava o sabor da bebida, inventou uma palhinha de papel. Nos anos 60 do séc. XX, e seguindo o destino de uma série de utensílios de uso doméstico, a palhinha começou a ser fabricada em plástico, disseminando-se pelo mundo inteiro. Atualmente, a palhinha de plástico, tal como muitos outros objetos descartáveis produzidos no mesmo material, está a ser descontinuada por causa do impacto ambiental que causa, e substituída por palhinhas descartáveis em papel ou por palhinhas reutilizáveis, em metal, plásticos sustentáveis ou outros compostos duradouros.
Portanto, se os leitores quiserem apenas uma curta história da palhinha, podem ficar por aqui e não ler o resto deste artigo (até vou fazer agora mesmo um parágrafo para vos ajudar a não continuar).
Para quem resolveu continuar a ler, obrigada por terem ficado (querido leitor do arame farpado, espero que tenha decidido ficar). Abaixo poderão encontrar uma história da palhinha mais detalhada. Mas, também, outras histórias, reveladas pela palhinha, ou em que a palhinha foi usada como meio de as contar. Como se lembram, estes artigos não contam apenas as histórias dos objetos invisíveis do quotidiano. Servem também para pôr os objetos a contar outras histórias, a fazer ligações entre histórias diferentes, a mostrar como as coisas com que interagimos são mais do que facilitadores silenciosos dos nossos dias (que de silenciosos não têm nada, na verdade, mas isso fica para outra altura).
Em qualquer caso, adivinho a pergunta que vai nas vossas cabeças: uma palhinha, a sério? Eu percebo. Também olho para a palhinha com alguma incredulidade, mas é mais por causa da sua inutilidade, e não pela sua insignificância. Como é possível um objeto destes ter sobrevivido mais de cinco mil anos? Qual é, e qual foi, a necessidade, a urgência de uma palhinha? Sobretudo hoje em dia, em que proliferam recipientes, por que razão não bebemos os líquidos pelos copos? A minha estupefação é causada pela sua própria existência, não só agora, mas desde sempre, e pela sua resiliência. As palhinhas de plástico sobem em bebidas gaseificadas, ficando ali à beira do precipício, quase a cair do copo. As palhinhas de papel têm aquela textura esquisita que parece agarrar os nossos lábios, quase como se estivéssemos a beijar tecido, sobretudo quando começam a amolecer. Usar palhinhas de papel é semelhante a usar colheres de madeira, o nosso cérebro a dizer que há alguma coisa naquela textura que não está bem, que o papel e a madeira não são coisas que se meta na boca. As palhinhas articuladas, que dobram na ponta, são mangueiras de fazer nódoas, em que basta dar-lhes um toque para nos borrifar de leite com chocolate. Todas, sem exceção, podem ser usadas para fazer aquele ruído irritante quando se sorvem as últimas gotas, uma espécie de barulho de aspirador com expetoração que nos valeu múltiplos ralhetes quando tínhamos oito anos. Como é que um objeto com tantos defeitos, e de utilidade questionável, chegou aos nossos dias?
A palhinha pode parecer hoje um objeto supérfluo, mas não foi sempre assim. Calculo que seja estranho a quem hoje nos países mais ocidentais seja apreciador de cerveja pensar que, há uns cinco mil anos, a cerveja era bebida nos territórios do Egito e da Suméria a partir de grandes recipientes comunitários, à volta dos quais vários homens se reuniam. Munidos, cada um, com uma palhinha de quase um metro. É difícil imaginar esses momentos, decerto bastante másculos, pontuados por pequenas pausas para curvar o corpo na direção de um pote de barro e afunilar os lábios na abertura da palhinha, se calhar segurando delicadamente a palhinha fina com dois dedos. E as perguntas inevitáveis: será que faziam barulho a sorver a cerveja, será que tinham de fazer barulho? Bebiam todos ao mesmo tempo? Tinham alguma ordem ou ritual? Seguiam algum ritmo? Como saber se estavam todos a beber mais ou menos a mesma quantidade?
Beber cerveja por uma palhinha pode parecer hoje ridículo. Desafio os leitores mais corajosos a pedirem uma palhinha da próxima vez que beberem uma cerveja num bar, explicando que é um comportamento altamente masculino, e que foi para isso que a palhinha foi inventada. Mas na Antiguidade tinha uma utilidade própria. A cerveja era feita em grandes recipientes e não era decantada, pelo que se bebia diretamente do vaso onde tinha sido feita. As palhinhas permitiam a várias pessoas bebê-la ao mesmo tempo, enquanto evitavam que ingerissem os sedimentos que se depositavam no fundo e as impurezas da fermentação que ficavam a boiar. Desconheço se haveria essa preocupação (calculo que não), mas usar uma palhinha evitava também a partilha de germes entre os vários participantes. Além disso, o uso de palhinhas era parte de um ritual de partilha: a palhinha era individual, mas a sua individualidade permitia o uso comunitário de um recipiente numa ocasião social.
Há registos, sobretudo egípcios e sumérios, com imagens desses eventos onde se usavam palhinhas para beber cerveja (se procurarem na internet por “história da palhinha” chegarão a essas imagens facilmente). Algumas dessas palhinhas eram feitas de metal e adornadas com materiais preciosos e figuras (algumas sobreviveram até aos dias de hoje e estão em museus), outras eram feitas de barro, mas sabe-se que também foram feitas de materiais vegetais, usando canas ou juncos. Muitas eram fechadas em baixo e tinham pequenos furos para filtrar as impurezas. A sua descoberta em territórios que hoje fazem parte da Rússia, da Argentina e de vários países africanos mostra como o uso de palhinhas era comum a mais do que uma civilização. Ainda hoje, em alguns países da América Central e do Sul, é usada a “bombilla”, uma palhinha feita de metal para beber chá, fechada e alargada na ponta, com orifícios pequenos para filtrar as folhas de chá. E, ainda hoje, na Tanzânia, no Quénia ou no Uganda, é possível encontrar tradições em que grupos de pessoas se juntam para beber cerveja artesanal por um recipiente único, cada uma com a sua palhinha gigante.
Na Europa e na América do Norte, a palhinha feita de material vegetal chegou até ao século XIX com um comprimento mais curto e uma utilização mais solitária e individual. Individual foi também a sua evolução a partir daí, pelas mãos de homens concretos: a partir do séc. XIX, a palhinha deixou a sua história anónima para passar a entrar no mundo das patentes de autor individual. Em 1870 e em 1879, Eugene Chapin e William Henry Brown inventaram utensílios similares à palhinha que conhecemos hoje. A invenção da palhinha moderna é, todavia, atribuída ao americano Marvin Stone. Stone encontrava-se frequentemente com os amigos depois do trabalho e bebiam Mint Julep, um cocktail alcoólico com bourbon, açúcar e folhas de menta. Provavelmente por causa das folhas de menta, usavam uma palhinha feita de palha de centeio. Diz-se que num desses dias, em 1870, Stone sentiu-se irritado pelo sabor que a palhinha deixava na bebida e pelo resíduo que deixava na sua boca quando começava a dissolver-se. Lembrou-se, então, de enrolar um pedaço de papel à volta de um lápis e de segurar a estrutura do papel com cola. Não foi uma ideia vinda do nada: Stone fazia, na altura, boquilhas para cigarros. Começou então a produzir palhinhas em papel e a cobri-las de parafina para as tornar impermeáveis. Patenteou a palhinha em Inglaterra em 1887 e nos Estados Unidos em 1888. Aparentemente, Stone preferia que a palhinha fosse tingida com a cor natural das palhinhas feitas de palha, para que os utilizadores não a estranhassem. A empresa, chamada Stone Straw Limited, ganhou um sucesso considerável e, em 1906, Stone mecanizou o processo com uma máquina de enrolar papel, cujo sistema seria mais tarde usado para a produção de rádios e componentes elétricos. Os anúncios da palhinha de Stone, chamadas de Palhinhas para Julep, proclamavam todas as suas qualidades, dizendo ainda que depois de usadas podiam ser cortadas ao meio e servir para acender cigarros. A palhinha era um objeto inquestionavelmente masculino, tanto no seu uso principal como no seu aproveitamento posterior.
A palhinha acabou por se difundir para outros públicos, sobretudo com a sua utilização em bares que serviam bebidas gaseificadas e que proliferaram durante a época da Lei Seca (conhecidos por soda fountains). O medo da disseminação de doenças como a gripe ou a poliomielite incentivou o uso de palhinhas nestas bebidas. Nos anos 30 do séc. XX, Joseph Friedman, outro americano, inventou uma palhinha flexível, que dobrava, depois de ver a sua filha Judith, ainda criança, tentar beber uma bebida por uma palhinha normal. A palhinha que dobrava permitia adaptar a palhinha à altura do seu utilizador, ganhando sucesso entre as crianças. Teve também sucesso imediato junto de hospitais e clínicas, que assim conseguiam dar bebidas aos seus pacientes acamados com mais facilidade. Os utilizadores de palhinhas diversificaram-se, e com essa diversificação veio também uma panóplia de palhinhas coloridas e às riscas.
No entanto, as palhinhas de papel também amoleciam. Nos anos 60, a necessidade de resolver esse problema cruzou-se com a proliferação de novos materiais que haviam sido usados para equipamento militar durante as grandes guerras, e que agora procuravam novos destinos. Várias fábricas começaram a produzir palhinhas em plástico, e depressa as palhinhas em papel desapareceram do mercado. Os consumidores, sedentos de novos produtos que o seu crescente poder de compra lhes trazia, receberam com agrado as palhinhas de plástico, produzidas na panóplia de cores que tingia o otimismo do pós-guerra.
As palhinhas de plástico inundaram um mundo ainda pouco sensível aos efeitos ambientais da utilização crescente de produtos descartáveis não perecíveis. O seu ar inofensivo enquanto objeto singular, um canudo leve de plástico fino, tornava difícil visualizar o efeito acumulativo e prolongado que o uso de milhões de palhinhas poderia ter. Durante décadas, foram enchendo aterros e muitas vezes acabaram a flutuar nos oceanos. Vídeos de animais marinhos feridos por palhinhas de plástico encheram os nossos ecrãs nos últimos anos, motivando alterações legislativas para descontinuar a sua produção. De produto inocente usado maioritariamente por crianças, a palhinha de plástico tornou-se num inimigo ambiental, um objeto proscrito nos restaurantes, persona non grata em bares, aquela-cujo-nome-não-deve-ser-pronunciado em festas de aniversário. Em alguns casos, estão a ser eliminadas por completo: se repararem, muitos dos pacotinhos de leite agora têm pequenas aberturas onde podemos encostar a boca, em substituição daquele furinho coberto com papel de alumínio onde espetávamos uma palhinha bicuda (resta saber se essa nova abertura, também ela feita de plástico, com uma tampa igualmente em plástico, terá um impacto ambiental muito diferente da palhinha). Hoje assistimos à sua aniquilação em massa, na versão de plástico, de tal modo que será em breve um objeto em extinção. Mas, ao contrário dos animais que andou a ferir, nada será feito para a preservar, a não ser, talvez, integrá-la na coleção de museus de design e incluí-la em exposições sobre poluição. Ou, se os grupos que defendem a sua existência em contextos hospitalares tiverem sucesso, incluí-la na lista de dispositivos médicos, na classe dos cateteres urinários e das seringas.
Numa volta ao passado, as palhinhas voltaram recentemente a ser de papel quando descartáveis e, agora já em muitos casos, novamente de metal (apesar de não terem pequenos animais sagrados a enfeitá-las, como no antigo Egipto, o que é uma pena) ou materiais orgânicos.
A palhinha enquanto objeto não tem apenas uma história de poluição. Também esconde estas histórias oscilantes dos seus materiais – do vegetal e do metal para o papel e para o plástico, para novamente voltar ao papel e para o vegetal e metal. E histórias de bondade e de cuidado, como a palhinha que dobra para chegar a crianças e a doentes. A palhinha é também uma coisa que mexe com histórias dos sentidos. É um objeto que toca diretamente na nossa boca, centro primitivo de sensibilidade. Aliás, recordem-se que foi o sabor e restos de palha que as palhinhas vegetais deixavam na sua bebida que motivou Stone a fazer palhinhas de papel. Foi o amolecer do papel das palhinhas em contacto com líquidos (e todos nós sabemos o desagradável de uma palhinha de papel mole a desfazer-se entre os nossos lábios) que contribuiu para a sua produção em plástico, sobretudo a partir dos anos 60. A palhinha é um objeto extremamente sensorial, e não há dúvidas de que a sua interação com os nossos sentidos provocou alterações à sua própria materialidade ao longo do tempo.
A palhinha também foi usada para contar histórias que não são suas. Não é difícil encontrá-la em pinturas, fotografias, ilustrações, filmes, obras literárias. Surpreendentemente, até em Charles Dickens, que em 1884 falava das palhinhas americanas feitas de erva e usadas em bebidas alcoólicas no seu livro A Vida e as Aventuras de Martin Chuzzlewit, escrito depois de uma viagem aos Estados Unidos. O tom era algo satírico; Dickens tinha tido, aparentemente, alguns desentendimentos com editores americanos por causa de direitos de autor, e não nutria nessa altura sentimentos muito positivos acerca da cultura americana. A palhinha aparece como um utensílio algo exótico e usado para beber um cocktail, onde boiavam cubos de gelo, de uma só vez.
Nas suas apresentações mais modernas, as palhinhas são usadas como ícones de um consumismo pop positivo, inofensivo e colorido do pós-guerra, sobretudo como parte da Americana que habita o nosso imaginário e que nos remete para as ilustrações de Norman Rockwell. Quando pensamos num diner americano do fim dos anos 50, chão aos quadrados brancos e pretos, bancadas de fórmica azul pastilha elástica, paredes enfeitadas com néon fluorescente, uma jukebox a tocar a um canto, batidos rosados e espumosos servidos em copos altos, é impossível não nos aparecerem na cabeça palhinhas às riscas vermelhas e brancas (já agora: para quando um estudo sobre as riscas brancas e vermelhas em objetos tão díspares como palhinhas, candy canes, fitas de alerta para obras na estrada, ambulâncias, chaminés das fábricas?).
Foi com essa imagem açucarada na cabeça que procurei por palhinhas nas naturezas mortas da exposição temporária do Louvre, onde levámos os miúdos depois do Natal (dica: se quiserem aguentar o Louvre com crianças, desafiem-nos a encontrar a pintura com o bebé mais feio nos corredores dedicados ao período medieval. Eu sei que é ligeiramente herético porque grande parte deles são representações do menino Jesus, mas resulta).
“Les Choses”, exposição que terminou este mês de janeiro, explorava a história da natureza morta. Uma maravilha para uma historiadora do design que tem um fraquinho por história da arte. Mas achei estranho não encontrar palhinhas (talvez lá estivessem e duas crianças inquietas não me tivessem deixado vê-las). Palhinhas, por exemplo, como aquelas pintadas por Wayne Thiebaud, mestre da representação nectarina de fatias de bolo, cheesecakes, donuts, maçãs caramelizadas, gelados e batidos. Não são todos, afinal, naturezas mortas? Tenho um especial apreço por Thiebaud, talvez porque um dos primeiros livros que comprámos para o nosso primeiro filho tenha sido um livro de contar feito com os quadros dele. 1 fatia de tarte, 2 palhaços feitos de gelado, 3 sanduíches e fatias de pickle, 4 cupcakes. Todas aquelas pinceladas de óleo em camadas de gelado a derreter, maçãs diluídas em aguarela de caramelo, coberturas de creme de manteiga engrossadas por pastel, a textura impressa num livro de páginas em cartão para bebé. O tato às vezes não precisa de nos chegar pelos nossos dedos, pode também entrar pelos nossos olhos. Thiebaud conseguia esse efeito.
Há pelo menos três quadros pintados por Thiebaud com palhinhas, todos eles com batidos (Laura Cumming chamou-lhe, certeiramente, o poeta do milkshake). Num deles, o mais recente, de 2000 (“Milkshake & Sandwiches”), está um batido cor de violeta num copo alto e alongado, decorado com uma rodela de laranja e uma palhinha de riscas vermelhas e brancas, que faz sombra a um prato com duas sanduíches de pão de forma em triângulo, acompanhadas por uma azeitona de pickle solitária. Tudo num fundo cor de menta e uma superfície azulada. Num outro, chamado “Milkshake and Sandwiches”, de 1964, Thiebaud põe o batido do lado direito. Desta vez o batido é cor de chocolate, a rodela de fruta é de limão, o copo mais anguloso, e a palhinha, a condizer com a rodela, é amarela. As sanduiches estão do lado esquerdo, também triangulares, mas desta vez são três. O cenário não é tão sacarino, apesar de cítrico – uma mesa e o fundo amarelados. O terceiro é talvez o que mais me impressiona. Chama-se apenas “Three Strawberry Shakes”, e é também de 1964. A pintura é muito simples: três copos altos de batido todos iguais, cor de creme, aparentemente descartáveis, com uma risca fina encarnada e duas riscas finas azuis, cores americanas. As palhinhas, de riscas vermelhas e brancas, convergem para o centro, o líquido, rosado e denso, aguenta-as no seu lugar. A espessura do líquido faz adivinhar o excesso: a gordura do leite e das natas, a quantidade de açúcar, a quantidade de gelado de morango usado para fazer os batidos. Os três copos são como três amigos sentados num diner enjoativo numa cidade americana qualquer, três cabeças alinhadas, a partilhar a mesma bebida mas ao mesmo tempo bebidas diferentes. As mesmas ideias, mas ideias diferentes. Não conseguiram acabar os batidos, o açúcar ardia na garganta. Ficaram ali, em cima da mesa de fórmica debruada com uma moldura metálica arredondada, a fazer lembrar um Cadillac. Eles não sabiam ainda, mas ficaram ali também os seus sonhos, dentro daqueles copos de batido, a espuma esquecida desfeita no líquido rosado. É impossível olhar para os quadros de Thiebaud e não ver neles esse abandono de quem deixou alguma coisa para trás, um abandono que está ali mesmo naquelas sombras que caem num desmaio, azuladas, na tinta. As sombras dos copos nos copos, as sombras dos copos na mesa, as sombras das palhinhas, tudo alinhado numa melancolia doce mas fria, que contrasta com o calor das cores salivantes e vibrantes da comida.
As sombras de Thiebaud fazem-me lembrar as sombras arquitetónicas de Edward Hopper, cujos quadros também têm alguma coisa de lácteo em versão mais sombria, apesar de Hopper não ter pintado nenhum batido nos seus diners desolados ou cenas domésticas. Ou então são os batidos de Thiebaud que me parecem uma espécie de arquitetura gastronómica, com as suas sombras caídas (lembro-me de Louis Kahn, que dizia que a arquitetura aparecia pela primeira vez quando os raios de sol encontram uma parede, e é mais ou menos isso que vejo nos quadros de Thiebaud). É verdade que as sombras de Hopper cortam como uma lâmina crua, caem em retas arquitetónicas que prendem as personagens em manchas solitárias de sombra ou de luz. Não têm a doçura e a textura esponjosa das sombras de bolo de Thiebaud. Mas há em ambos uma solidão projetada na sombra, um lado azul que teima em escurecer a tela.
Há um encontro entre a linguagem visual de Thiebaud e Hopper, de certa forma, nas palavras de Nicholson Baker, que em 1988 escreveu um livro chamado A Mezzanine. A Mezzanine é uma história simples, um relato solto na primeira pessoa da hora de almoço de um empregado de escritório chamado Howie, e das coisas que vão passando pela sua cabeça enquanto almoça e vai comprar atacadores, com um livro debaixo do braço. A certa altura, Howie divaga sobre palhinhas. “Pensava que o único objetivo das palhinhas”, diz ele, irritado com as palhinhas que sobem com o gás das bebidas, “era não termos de pousar a fatia de pizza para dar um gole na Coca-Cola enquanto lemos um livro”. A sua deambulação sobre palhinhas é deliciosa e rica, e ao mesmo tempo profundamente solitária. É a sombra doce de um copo de batido num quadro de Thiebaud. Aliás, a reflexão sobre palhinhas aparece nas notas de rodapé, que de certa forma são as sombras de um livro, as sombras do texto principal, palavras que ficam no escuro das páginas. Todo o livro de Baker é um batido, na verdade, aparentemente supérfluo e um pouco enjoativo nos seus detalhes espumosos, mas ao mesmo tempo denso e significativo. Não consigo deixar de imaginar Howie sentado num dos diners de Hopper, com um dos batidos de Thiebaud à frente e, nas suas mãos, o livro que está a ler na história. “Meditações”, de Marco Aurélio.
Irene Vallejo, escritora espanhola, também fala de Marco Aurélio num dos seus mais recentes livros, dedicado à história do livro e da leitura. Não como autor das Meditações, mas como leitor de livros emprestados das bibliotecas. Não há comparação possível com a obra de Baker, obviamente, apesar de haver também neste livro de Vallejo alguma coisa de fluxo de consciência. É um princípio semelhante ao de pôr leite, morangos e açúcar numa liquidificadora e carregar no botão. Mas se Baker escreveu um batido de morango, Vallejo escreveu um cocktail requintado. Vallejo põe os seus ingredientes num shaker em inox, misturando com mestria e sofisticação o relato de momentos históricos, referências literárias e filosóficas e experiências pessoais.
Esse livro de Vallejo, que se chama “O Infinito num Junco”, descreve, na verdade, como o poder imenso – e tendencialmente infinito – dos livros começou num simples junco, num papiro que crescia nas margens do rio Nilo. Fala do potencial de um objeto cuja função é preservar e contar histórias, mas cuja história e materialidade, em si mesmas, também guardam as suas próprias narrativas (sim, os historiadores do design, esses dominadores do mundo, dirão que se trata de um livro sobre história do design).
Se os meus caros leitores ainda se lembrarem do título deste artigo, verão que foi parcialmente roubado ao título do livro de Vallejo. Porque, decerto se recordarão, também as palhinhas, sobretudo no Antigo Egito, eram feitas de material vegetal, e muito provavelmente também de papiro, os mesmos juncos feitos para fazer o material de escrita. Porque o infinito está num junco que se transforma em livro, mas também está num junco que se transforma em palhinha, no seu potencial para guardar e contar histórias. Se pensarmos bem, os objetos que nos rodeiam são também eles livros abertos, prontos a ser lidos nas suas existências materiais e na forma como nos relacionamos com eles. Também há infinito no canudo de uma palhinha.
Materialista é uma série sobre memória material em que Joana Albernaz Delgado dá a voz a objetos icónicos do quotidiano. Desde que terminou o mestrado em História do Design no Victoria and Albert Museum e no Royal College of Art que Joana escreve sobre tudo e mais alguma coisa, em especial sobre coisas. É materialista, no bom sentido.