Se entrar agora na sua cozinha, o que irá encontrar?
Vou tentar adivinhar. Em cima da bancada terá uma cesta ou uma taça com alguma fruta (é melhor comer a banana, já está a ficar muito madura). Terá também uma caixa com pão fresco, que convive perigosamente com uma bola de água de há uns dias (já tem bolor, mas ainda não se vê). A seguir, é capaz de encontrar um talão de supermercado amarrotado, aqueles selos que se trocam por uma coleção de travessas em pirex, o cartão de desconto da bomba de gasolina. Mais à frente, uma lata com bolachas fora de prazo que ninguém comeu e que já devem ter aquele sabor característico a cartão mole. Ao lado da máquina do café estará a chávena que usou há umas horas e que já não cabia na máquina de lavar. Se calhar também deixou de fora do armário o açucareiro, que agora estará a fazer conversa de circunstância com o galheteiro e com o saleiro, presenças habituais ao pé do fogão. Não muito longe estará o rolo de papel de cozinha e uma torradeira, e ao lado um pano da loiça meio embrulhado, um turco puído de malmequeres garridos num fundo laranja e vermelho, com uma ponta deixada a cair dramaticamente na beira da bancada. Ou muito me engano ou terá também um pano amarelo absorvente a secar em cima da torneira, exalando aquele cheiro inconfundível de humidade podre que foi benzida, mas não eliminada, com lixívia. No micro-ondas, guardará uma daquelas tampas de plástico transparente, que tem de tirar cá para fora sempre que quer aquecer comida. É possível que a tenha deixado em cima da bancada, ainda com alguns pingos de gordura do estufado de vitela. E ei-la, a dominar a cozinha, a bimby.
Se calhar não acertei em nada. Se calhar os meus leitores têm daquelas cozinhas minimalistas de arquiteto português devoto de John Pawson ou David Chipperfield, que costumam aparecer nos quadrados do Instagram com um filtro alaranjado de verão. Armários sem pegas em branco mate imaculado, bancadas em lioz rosado, torneiras em aço escovado, chão em mosaico hidráulico. Se calhar têm superfícies arrumadas com curadoria de designer de interiores, uma jarra de cerâmica artesanal em grés cor de areia, com aquelas florzinhas secas amarelas, rosa e roxas, um jarro de esmalte para a água, uma cesta de verga pequena com três ou quatro maçãs reluzentes, empilhadas de forma a mostrar os seus melhores ângulos, um saco de rede em algodão branco cru cuidadosamente desarranjado, a fingir que foi esquecido em cima da bancada com duas ou três laranjas.
A minha cozinha deve estar a meio caminho entre estas duas. Todos os dias luto contra as quinhentas coisas que parecem brotar espontaneamente da bancada e que ameaçam as minhas vignettes domésticas (a Ellen e a Julia Lupton dizem, com ironia mas com razão, que a horizontalidade em superfícies planas potencia a criação de pontos de atração natural de tralha). Todos os dias me revolto contra panos amarelos à vista e tampas de plástico que atrapalham o uso do micro-ondas, e todos os dias me conformo com a derrota inevitável (mas nunca deixarei entrar em minha casa um robot de cozinha que parece um aspirador industrial de estofos de automóveis).
Em qualquer caso, seja na minha cozinha, na sua ou noutra qualquer, se olhar para o lava-loiças, não tenho dúvidas de que lá estará um esfregão. E, com muita probabilidade, será o clássico esfregão da loiça amarelo e verde. Hoje em dia aparece em várias cores, normalmente associadas a graus de abrasão diferentes e a funções de limpeza distintas, mas o amarelo e o verde continuam a ser as cores predominantes.
Olhando com atenção para um esfregão da loiça, vemos claramente que ele tem dupla personalidade. A parte da esponja amarela, que absorve líquidos, é macia, jovial e espessa, agradável ao toque. Resolve a imundície com suavidade e empatia: incha indolentemente em contacto com a sujidade, encolhe para se livrar dela. Não parte um prato (ou melhor, não risca um prato), mas às vezes não consegue desentranhar a sujidade mais difícil. Do outro lado, a parte verde é fina e inflexível, porque a sua função é retirar resíduos esfregando a superfície. É hostil e áspera, escura e rígida. Expulsa a sujidade com violência, esfregando-a. É eficaz, mas pode deixar marcas. Não são só duas personalidades; o esfregão da loiça tem, na verdade, duas personalidades opostas. O que a esponja atrai, a fibra repele. E nunca acaba bem. Absorver a porcaria não é bom para a esponja, que rapidamente se torna num habitat de seres microscópicos não desejados; continua alegremente amarela, mas ninguém imagina a podridão que ali se esconde. Quando finalmente começa a perder a sua vivacidade cromática, já não há nada a fazer. A fibra verde, do outro lado, não se deixa impregnar de sujidade. Mas o atrito constante que a caracteriza, a permanente fricção em que vive, desgastam a sua existência. Só sabe lidar com os problemas esfregando; mas com o tempo vai ficando mais fraca e vai desaparecendo, vítima da sua própria agressividade.
Sim, esta descrição parece saída de uma consulta de psicoterapia, mas haverá alguém que não se identifique com estas personalidades? Todos nós temos um lado mais absorvente e outro mais abrasivo, embora nem sempre os usemos da forma correta para enfrentar a porcaria que nos aparece à frente.
Essa dupla personalidade do esfregão de cozinha foi brilhantemente captada num episódio do SpongeBob, aquela personagem da Nickelodeon que entretém miúdos desde 1999. O SpongeBob é um desenho animado bem disposto e disparatado, feito de esponja como o próprio nome indica, que costuma andar de camisa branca, gravata encarnada, calças castanhas, meias brancas pelo joelho e sapatos pretos. É muito amarelo e tem uma forma retangular, tal como uma esponja de cozinha. Mas vive no fundo do mar, com os seus amigos marinhos, e os seus pais são duas esponjas marinhas. O criador do desenho animado, Stephen Hillenburg, disse uma vez que o SpongeBob é feito de celulose mas é filho de esponjas naturais, o que aumenta mais a confusão. Mas enfim, o SpongeBob vive numa casa no fundo do mar em forma de ananás, trabalha a fritar comida num restaurante gerido por um caranguejo e tem um caracol de estimação, por isso não vale a pena procurar uma explicação que faça sentido (sim, perdi várias horas de vida que ninguém me devolve a investigar a natureza do SpongeBob e a baralhar o algoritmo do meu computador, e não, não tenho especial gosto em ver o SpongeBob). Seja como for, há um episódio em que o SpongeBob nitidamente se assume como esfregão da loiça. Nesse episódio, chamado “O lado abrasivo”, conclui que não consegue dizer Não a ninguém. É demasiado mole e simpático. Para conseguir ser mais assertivo, ganha um lado áspero, que nos desenhos animados aparece como uma fina camada de fibra verde escura, com uns olhos carregados e malévolos. Com esse lado verde escuro, o SpongeBob vira as costas ao seu lado esponjoso e adorável para se tornar brusco e malcriado.
Não vou dizer como acaba a história (vejam o episódio, se quiserem, que eu já tive a minha dose de SpongeBob). Mas, tal como no desenho animado, cujo lado abrasivo não fazia parte dele inicialmente, também o esfregão da loiça nem sempre foi composto por duas partes. A esponja amarela e a fibra verde têm duas histórias diferentes, que só se cruzam quando se uniram para criar o esfregão da loiça.
A utilização de esponjas pelos seres humanos não é recente, bem pelo contrário. Nos jogos olímpicos da Antiguidade, os atletas banhavam-se e limpavam-se com esponjas naturais embebidas em azeite ou perfume. As esponjas naturais são referidas por Aristóteles e Platão, e aparecem na Odisseia como utensílios de limpeza. Quando Cristo foi crucificado, um soldado ofereceu-lhe uma esponja embebida em vinagre, na ponta da sua lança. Aliás, as esponjas eram usadas também pelos romanos, nas latrinas públicas (poupar-vos-ei a uma descrição mais detalhada deste uso).
Sim, é verdade, os seres humanos sempre gostaram de esfregar o seu corpo ou limpar as suas casas com cadáveres de animais mortos (a esponja natural é um animal marinho). Em todo o caso, a parte amarela das esponjas da loiça que conhecemos são feitas de espuma de poliuretano ou de poliéster, e não de esponjas naturais. Essas espumas resultam de uma descoberta acidental do químico alemão Otto Bayer, em 1937. Apercebendo-se da carência significativa de materiais de borracha na Europa depois da primeira guerra mundial, Bayer queria descobrir uma forma mais eficaz e económica de produzir borracha sintética, usando menos substâncias químicas. Acabou por criar uma espuma densa, que foi chamada de espuma de poliuretano, e que se considerava defeituosa por ter bolhas de ar. Poucos anos depois, a empresa norte-americana de produtos químicos Du Pont inventou a espuma de celulose.
Nos anos 40 do séc. XX, essas esponjas de poliuretano, poliéster e celulose começaram a ser usadas como utensílios de limpeza doméstica e de higiene corporal, substituindo em grande parte as esponjas naturais, cujas reservas marinhas já se encontravam praticamente esgotadas. A parte amarela dos esfregões da loiça começou, pois, por substituir as esponjas naturais.
Já a parte verde tem uma origem muito diferente. A fibra verde é feita de uma trama densa de fios de polietileno, não tecida, inventada por Alvin Boese nos anos 30 do séc. XX. Nos anos 50, Boese juntou a essa fibra alguns componentes abrasivos, como óxido de alumínio e óxido de titânio, levando à produção das primeiras fibras sintéticas abrasivas. Boese era funcionário de uma empresa norte-americana chamada Minnesota Mining and Manufacturing Co., constituída no início do séc. XX para a extração de minérios, e que graças à descoberta de materiais abrasivos nas suas minas começou a produzir lixas e outros produtos similares. A Minnesota Mining and Manufacturing Co. é hoje a gigante multinacional 3M, e aquelas fibras sintéticas abrasivas criadas por Boese deram origem nos anos 50 às primeiras fibras de polimento de pavimentos, produzidas pela 3M. Ainda nos anos 50, a 3M lançou a Scotch-Brite, marca dedicada a produtos abrasivos de limpeza doméstica que usavam a fibra de Boese como material inovador para limpar tachos e panelas, bem como outras superfícies com sujidade entranhada. Essa fibra, num tom de verde escuro, veio substituir parcialmente os esfregões de lã ou palha de metal, antes usados para o mesmo fim, que costumavam estragar-se com facilidade ou enferrujar.
No fim dos anos 60, a 3M anunciou a sua primeira “scrub ‘n sponge” da Scotch-Brite, uma fibra verde laminada em cima de uma esponja amarela. Graças às suas duas texturas diferentes, podia ser usada tanto em materiais frágeis como para esfregar superfícies mais resistentes. Nascia o primeiro esfregão da loiça amarelo e verde, que ainda hoje é comercializado com essas cores.
A pergunta que se segue é, já devem estar a adivinhar, por que razão a fibra é verde e a esponja é amarela. É óbvio que um tom verde escuro disfarça melhor a sujidade, mas o mesmo não se pode dizer da esponja amarela. A explicação mais frequente diz que estas cores pretendiam imitar as cores das esponjas naturais, para que os consumidores aderissem ao novo produto sem o estranharem visualmente. Mas não é uma história muito convincente. O amarelo e o verde dos esfregões sintéticos parecem bem mais garridos do que os tons que tingem naturalmente as esponjas marinhas. Além disso, a fibra verde surgiu primeiro sem qualquer associação às esponjas naturais, para ser usada nas ditas máquinas de polir pavimentos.
Ainda assim, o verde escuro dos esfregões domésticos pode bem vir da primeira utilização da fibra sintética de Boese. As máquinas de polir chão usavam discos de fibra em cores diferentes. Quanto mais escura a cor, mais agressiva era a sua função: o disco creme era o mais suave, o disco verde escuro era usado para polimentos de abrasividade média e o disco preto tinha uma função de lixa mais agressiva. É plausível que o verde da fibra usada para fins domésticos tenha origem nesta função intermédia das máquinas de polimento.
A carga simbólica das cores também é relevante num esfregão de cozinha. O verde escuro da fibra, cor de tropa, é sóbrio e eficaz. Um esfregão verde escuro é um soldado empenhado que leva a sua tarefa a sério. A sua cor de camuflado mostra como está focado ativamente no dever e no cumprimento marcial de uma função. Arrisco dizer que não seria tão fácil esfregar com vigor uma panela se o esfregão fosse cor-de-rosa clarinho, ou azul bebé – cores que são usadas, aliás, em esfregões para superfícies frágeis (normalmente, o rosa claro) ou superfícies que precisam de fricção sem riscar, como placas de indução ou vitrocerâmica (normalmente, o azul claro). O verde tropa contrasta, depois, com o amarelo vivo da esponja. Os esfregões da loiça são das coisas mais sujas que podemos ter em casa, pela acumulação de bactérias na sua matéria esponjosa húmida, mas sugerem limpeza e asseio, talvez por causa da cor de limão. Aliás, o limão tem ácido cítrico, que é antibacteriano e antisséptico, e tira bolores e gorduras. Era usado como produto de limpeza antes de existirem detergentes. Atualmente, não só há esfregões com aroma a limão como grande parte dos detergentes da loiça cheiram a limão e são frequentemente amarelos ou verdes claros. Não é inverosímil ver na esponja também a textura suave e limpa do limão, os poros da sua casca insinuados nas bolhas de ar da esponja amarela.
O verde escuro é vigor e determinação, o amarelo é higiene com suavidade. Mas existe outra explicação possível para as cores do esfregão da loiça.
A marca Scotch-Brite recebeu o seu nome de uma outra marca da 3M, a Scotch Tape. Apesar do nome, a Scotch Tape não parece ter nada de escocês na sua origem. Nos anos 20 do séc. XX, um funcionário da 3M, Richard Drew, inventou uma fita adesiva para ser usada na pintura de carros, que na altura eram frequentemente pintados em duas cores. A fita adesiva não arrancava tinta e permitia pintar linhas direitas e limpas. No entanto, as primeiras fitas adesivas tinham pouca cola. Diz-se que os pintores se queixaram da fita dizendo que era “Scotch tape” (na altura, “Scotch” era também sinónimo de avarento, ou de coisa mal amanhada). Noutra versão da história, os pintores devolveram a fita, dizendo que os “Scotch bosses” da empresa deviam por mais adesivo. O nome pegou, e a 3M usou-o em todas as suas fitas adesivas, que passaram a chamar-se Scotch tapes. Nos anos 40, a Scotch Tape rentabilizou o seu nome e passou a ser promovida com uma mascote chamada Scotty MacTape e a usar no seu design um padrão de xadrez escocês. O padrão usado, o famoso padrão tartan do clã Wallace, em tons de encarnado, preto e amarelo, foi claramente uma estratégia de marketing. Já no início dos anos 60, e para diferenciar os vários produtos, a Scotch Tape usou esse mesmo padrão numa fita-cola específica, a Scotch Magic Tape, mas em outros tons: verde, preto e amarelo. Este xadrez, mais escuro, é chamado de Hunting Wallace, porque faz lembrar a necessidade de usar tecidos que se camuflem com a natureza quando se vai caçar.
O padrão de xadrez escocês não se ficou pela Scotch Tape, e foi usado também por outras marcas da 3M que usavam o nome Scotch – entre as quais, a Scotch-Brite. Aliás, é possível ver o xadrez verde Hunting Wallace em algumas das embalagens iniciais da fibra verde da Scotch-Brite, ainda sem a esponja, e depois em algumas embalagens da fibra já com a esponja amarela. O xadrez verde e amarelo acabou por desaparecer da imagem da Scotch-Brite, mas as suas cores continuaram. Se olharmos para um logotipo atual da marca, lá estão o verde muito escuro, quase preto, o verde mais claro e o amarelo vivo.
É impossível olhar para este padrão de xadrez e não ver o amarelo e o verde do esfregão da loiça. E é difícil acreditar que não há uma ligação entre as duas coisas. Será, afinal, o amarelo e o verde dos nossos esfregões de cozinha resultado de um xadrez de caça escocês? A verdade é que outras empresas fabricavam esfregões com esponjas de natureza similar em várias cores, mas as da Scotch-Brite mantinham estas cores. A Du Pont, por exemplo, chegou a ter esponjas com esfregão de muitas cores, e uma delas tinha inclusivamente as cores ao contrário da Scotch-Brite: amarelo para a parte abrasiva e verde para a parte esponjosa (para o meu cérebro de canhota, usar uma esponja com as cores trocadas deve ser equivalente a tentar comer a sopa com a mão direita).
Como qualquer multinacional que se preze, a 3M não responde a perguntas triviais sobre os seus produtos, e os emails que enviei só receberam respostas vagas, assinadas por departamentos de atendimento ao cliente. É compreensível: terão mais que fazer do que responder a perguntas que parecem saídas de um livro infantil com abas para levantar, onde se explica por que razão o céu é azul, ou de que é feito o arco-íris. E, muito provavelmente, nem terão uma resposta segura. Seria preciso vasculhar documentos insuspeitos e desenterrar molhos de papéis de um arquivo remoto algures no Minesota. Duvido, por isso, que venha a obter uma resposta esclarecedora.
Devo confessar que, aparentemente, poderia ser mais interessante olhar para história do esfregão da loiça de outras perspetivas que não a da sua cor. Por exemplo, argumentando que é um objeto embebido em preconceitos históricos. Contra os escoceses, porque o nome da marca tem origem num insulto. Ou contra as mulheres, porque afinal os esfregões da loiça têm salva-unhas, aquelas depressões na parte amarela que protegem manicures impecáveis da fibra verde, indicando que é a população feminina que se dedica à limpeza doméstica. Mas não é bem assim. O significado dado à palavra “Scotch” não pode ser retirado do seu contexto histórico, ainda que isso não legitime o insulto. E, por outro lado, o nome “Scotch” pode bem ter surgido do facto de na altura o presidente da 3M se chamar William McKnight, um norte-americano ruivo que tinha um apelido de origem escocesa. Quanto aos salva-unhas, podem ser vistos, quando surgiram, como uma forma de não prejudicar as mulheres por terem de tratar das tarefas da casa. Não são, claro, instrumentos de emancipação feminina, tal como não o foram os primeiros eletrodomésticos, falsamente interpretados como libertando as mulheres da labuta doméstica (no fundo, as mulheres tinham de aprender a lidar com as máquinas e de as por a funcionar, perdendo muitas vezes mais tempo; quem já tiver visto uma das primeiras máquinas de lavar roupa saberá do que estou a falar). Mas os salva-unhas permitiriam às mulheres, pelo menos em teoria, proteger as suas mãos. Era uma estratégia de marketing inteligente, numa altura em que não só era esperado que as mulheres assegurassem a lida da casa como também, cada vez mais, que trabalhassem fora dela, mantendo uma aparência cuidada. Não será coincidência que os esfregões de cozinha e outros utensílios facilitadores da limpeza doméstica tenham tido campanhas publicitárias mais intensas, tendo como alvo as senhoras da casa, depois da segunda guerra mundial, altura em que as famílias se reduziam ao núcleo central de pais e filhos e deixavam de ter empregados (certamente que ninguém se importou que até aí as criadas desgraçassem as suas mãos a esfregar panelas com palha de aço).
Seja como for, a cor é uma das características mais impressivas do esfregão da cozinha. Na verdade, estamos tão habituados a esta combinação cromática que comprar um esfregão da loiça que não seja amarelo e verde é como comprar um Ferrari que não seja vermelho, bolas de ténis que não sejam amarelas ou um piano que não seja preto. Cumpre tudo a mesma função, mas não é a mesma coisa. A cor faz parte de alguns objetos, da sua memória e da sua história. Mudar-lhes a cor é tirar-lhes uma parte da sua identidade.
Ainda assim, pouca gente quer saber de esfregões de cozinha. Mesmo os livros sobre objetos do quotidiano, fascinados com a história dos clips, da caneta bic, da garrafa de Coca-Cola ou dos post-its (estes últimos também da 3M), não se lembram deles. Amarrotado e sujo num canto do lava-loiças, um esfregão da cozinha pode bem caber no conceito de infra-ordinário de Georges Perec. Coisas infra-ordinárias são coisas do quotidiano que nem são ordinárias nem extraordinárias, diz Perec, nem banais nem exóticas. Estão abaixo do banal. São, como descrevia Bernardo Soares no Livro do Desassossego, quando lhe tardava “a sensação de estar vivo”, aqueles “trapos húmidos de limpar coisas sujas, que se levam para a janela para secar, mas se esquecem, enrodilhados, no parapeito que mancham lentamente”. Se Fernando Pessoa tivesse escrito esta frase no fim do séc. XX, em vez de a ter escrito em 1929, tenho a certeza de que Bernardo Soares se estaria a sentir não como um pano húmido, mas como um esfregão da loiça.
Esses momentos (e objetos) infra-ordinários exigem, como explicava Perec, uma espécie de atenção quixotesca ou excessiva, porque, caso contrário, passam despercebidos. Quando lhes damos atenção, mudamos a nossa perspetiva, passamos a ver o mundo de outra maneira. Mas, sobretudo, contrariamos a passividade natural a que nos permitimos permanentemente, aquela passividade que faz com que nos deixemos impregnar apenas das saliências dos dias, das grandes manchetes, do fogo-de-artifício ofuscante que são os acontecimentos extraordinários ou os objetos singulares, daquilo que se destaca da massa granular de que é feito o tempo. Olhar para o infra-ordinário é, de certa forma, um ato subversivo, uma ação de revolta contra a apatia absorvente e esponjosa do ser humano, que se conforma com aquilo que a realidade faz sobressair e lhe enfia pelos olhos. Precisamos, caros leitores, de apelar ao nosso lado mais abrasivo. Não para nos transformarmos no Mr. Hyde do SpongeBob, mas para esfregar a poeira entranhada que não nos permite ver e apreciar as coisas que não passam no crivo da relevância ontológica do quotidiano. Por isso, e pelo menos enquanto não confirmo a minha tese sobre a origem das cores do esfregão da loiça, não vou deixar de imaginar uma dança escocesa tocada em gaitas de foles de cada vez que lavar os tachos do jantar.
Materialista é uma série sobre memória material em que Joana Albernaz Delgado dá a voz a objetos icónicos do quotidiano. Desde que terminou o mestrado em História do Design no Victoria and Albert Museum e no Royal College of Art que Joana escreve sobre tudo e mais alguma coisa, em especial sobre coisas. É materialista, no bom sentido.