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“Chanceler do povo” ou “Volkskanzler”, em alemão. Foi este o título que o líder da extrema-direita austríaco e presidente do Partido da Liberdade da Áustria (FPÖ), Herbert Kickl, se autoatribuiu. Rapidamente entrou na campanha eleitoral, como em cartazes ou em anúncios das redes sociais, querendo passar a imagem de um político que se revoltava contra as elites, os poderes instalados e que ouvia a preocupação de todos. Mas há um problema com esta designação, ainda para mais na Áustria, o país em que nasceu Adolf Hitler. No início do regime nazi, no início dos anos 30, a propaganda usou igualmente o jargão “chanceler do povo” para descrever aquele que viria a ser apenas Führer mais tarde.
Sendo um político que representa a extrema-direita, surgiram obviamente críticas a Herbert Kickl por recuperar o passado nazi da Áustria. Com outra agravante: o FPÖ é uma força partidária que foi fundada, em parte, por vários líderes destacados do regime de Adolf Hitler em território austríaco. Por exemplo, o primeiro líder do Partido da Liberdade da Áustria foi Anton Reinthaller, antigo ministro da Agricultura do governo austríaco controlado por Berlim e que foi condenado por “alta traição” após a Segunda Guerra Mundial, tendo estado preso três anos.
Apesar das críticas, Herbert Kickl recusa qualquer comparação com o regime nazi, lembrando, por exemplo, que o termo “chanceler do povo” já foi usado por outros partidos de esquerda. Em todo o caso, a designação foi pensada e não se tratou de um erro de comunicação. Isto porque, antes de se tornar o presidente do FPÖ, o político de 55 anos esteve nos bastidores: geriu as campanhas e preparou os discursos da força partidária de extrema-direita durante décadas.
“Para um político, especialmente um líder partidário, Kickl é surpreendentemente tímido e inibido. Não gosta de surpresas desagradáveis e quer reter o controlo da narrativa”, escreveram Gernot Bauer e Robert Treichler, dois autores da biografia do presidente do FPÖ. Os autores destacam a sua natureza desconfiada e solitária e contam que nunca “convidou nenhum dos seus aliados políticos a sua casa” ou a história do casamento com Petra Steger em 2018 — também política — que teve pouquíssimos convidados.
Embora a sua natureza mais introvertida, é um homem que conhece os meandros da política como poucos e que domina o marketing político. Desde que se tornou líder do FPÖ, radicalizou o partido e apostou em várias bandeiras eleitorais que o tornaram reconhecido e, para certos setores da população, bastante popular. Uma delas consistiu num discurso anti-imigração, mas o partido de centro-direita — o Partido Popular Austríaco (ÖVP) — não tem escondido uma retórica semelhante.
Para se distinguir dos seus principais rivais, Herbert Kickl apostou num tema polémico: as medidas aplicadas durante a pandemia de Covid-19. O governo austríaco — num consenso alargado desde o centro-direita até à esquerda — aplicou a vacinação obrigatória e ponderou multar quem não se vacinasse. O líder do FPÖ criticou duramente as restrições e, com isso, ganhou popularidade. E o tema, ainda que já tenha passado quase dois anos desde o final da pandemia, não foi esquecido durante esta campanha.
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Nas eleições legislativas austríacas marcadas para este domingo, as sondagens indicam que o líder da extrema-direita deverá vencê-las com cerca de 27% das intenções de voto, algo que, a acontecer, será um feito inédito na Áustria. O centro-direita (ÖVP) está muito perto, com 25% dos votos, enquanto o centro-esquerda — o Partido Social-Democrata da Áustria (SPÖ) — deverá ficar em terceiro, com 21% dos votos.
A proximidade com a Rússia e a Áustria como uma “fortaleza” contra migrantes: o que defende Herbert Kickl
Presidente do Partido da Liberdade da Áustria desde 2021, Herbert Kickl chegou ao cargo com experiência governativa — e acumulou alguns escândalos pelo meio. Há oito anos, o centro-direita, liderado pelo ex-chanceler Sebastian Kurz, venceu as eleições e formou uma coligação com o FPÖ. Esta aliança à direita não é algo novo na política austríaca: em 1999, já tinha acontecido isso e até motivou a aplicação de sanções por parte da União Europeia (UE).
Neste contexto, com grande influência dentro do FPÖ, o político de 55 anos foi escolhido como ministro da Administração Interna. Esteve apenas dois anos no cargo por conta de um escândalo que manchou a imagem do seu partido. Surgiu um vídeo, gravado numa moradia em Ibiza, do antigo líder da extrema-direita e antigo vice-chanceler, Heinz-Christian Strache, a prometer a adjudicação de contratos públicos a uma sobrinha de um oligarca russo.
As consequências deste caso? Uma moção de censura e a queda do governo de direita. Antes disso, Sebastian Kurz demitiu diretamente Herbert Kickl, devido à sensibilidade da pasta que ocupava. O mandato do agora presidente do FPÖ também ficou marcado por um assalto à sede dos serviços de informações austríacos em 2018, em que desapareceram documentos confidenciais trocados entre a Áustria e as secretas ocidentais. Desconfia-se que a Rússia esteja por trás deste assalto.
Quer por causa da polémica que ficou conhecida como Ibizagate, quer devido ao assalto às secretas, colou-se à pele de Herbert Kickl a reputação de ser pró-russo, fama essa que é transversal ao FPÖ. Na sequência do início da invasão à Ucrânia, não é surpreendente, portanto, que o político de extrema-direita tenha defendido o fim do apoio militar e financeiro a Kiev, assim como o fim das sanções aplicadas contra a Rússia. Tem ainda criticado o “belicismo” da União Europeia.
O governo austríaco, uma coligação entre o centro-direita e os Verdes, condenou a invasão russa à Ucrânia e prestou ajuda humanitária a Kiev, acolhendo ainda refugiados ucranianos. Mas nunca enviou armamento, fazendo jus à sua tradição de neutralidade adotada pela diplomacia de Viena desde o final da Segunda Guerra Mundial: apesar de pertencer à UE, a Áustria optou por nunca aderir à NATO.
Herbert Kickl deseja ir mais longe. “A ideia [dele] é que não se deve provocar os russos. Podemos não gostar de Putin, mas não vamos agravar a situação e devemos ficar quietos. É uma forma muito austríaca de lidar com o assunto”, resume Thomas Hofer, um analista político da Áustria ao jornal The Times. No contexto europeu, se a extrema-direita da Áustria aplicasse as suas ideias de política externa, seria mais um entrave da ajuda da UE à Ucrânia. E não só. O FPÖ deseja igualmente impedir a adesão de Kiev ao bloco comunitário.
Tal como aconteceu no resto da União Europeia, a guerra na Ucrânia aumentou a taxa de inflação na Áustria. Nos últimos dois anos e meio, assistiu-se ao aumento do custo de vida e à diminuição do poder de compra. Neste contexto, a extrema-direita aproveitou o estado da economia para frisar o quão importante é um acordo entre Moscovo e Kiev, mesmo que haja cedências territoriais para o governo ucraniano.
Outro dos pontos essenciais na retórica de Herbert Kickl, à semelhança de vários políticos da sua ideologia, consiste no discurso altamente crítico da imigração. Para o político de 55 anos, a Áustria adotou medidas de asilo “falhadas”. Por isso, o país deve recusar todos os pedidos de asilo, dado que já recebeu demasiados — ativando mesmo um estado de emergência.
Nesta área, o objetivo do político de extrema-direita é que a Áustria se converta numa “fortaleza” contra a “imigração desregulada”. Para os requerentes de asilo, o país deve ter condições “não desumanas, mas desconfortáveis”, de modo a evitar que os imigrantes entrem em território austríaco. Adicionalmente, Herbert Kickl pretende terminar com muitos dos apoios estatais entregues aos imigrantes. Em cima da mesa, está mesmo o retorno aos seus países de muitos “estrangeiros não convidados”.
A mensagem contra os “estrangeiros não convidados” é particularmente dura contra os imigrantes oriundos de países de maioria muçulmana. Herbert Kickl pretende que todas as atividades que se enquadrem no fortalecimento do “Islão político” na Áustria sejam proibidas. “Não somos responsáveis por afegãos, sírios ou marroquinos”, atirou, numa conferência de imprensa.
Um dos seus biógrafos, Robert Treichler, considera, ao jornal The Times, que esta é a sua “principal mensagem”. “O ponto que ele apresenta é que sucessivos governos permitiram que todos aqueles que quisessem vinham para a Áustria e agora [o país] é perigoso, está pior e nada funciona. Tudo isso é culpa dos estrangeiros.”
O líder da extrema-direita também se opõe ao que diz ser as “loucuras dos géneros”, criticando as políticas mais progressistas na área social, principalmente sobre os direitos dos trangénero. Posiciona-se igualmente contra o “comunismo climático”, isto é, medidas restritivas para impedir as alterações climáticas. Segundo o Der Spiegel, o raciocínio que o político expõe aos seus apoiantes é que o “alarmismo climático” leva à “ditadura climática” e ao “comunismo climático” — que interpreta como uma “doença do foro psicológico”.
Entre todos os assuntos, o que mais catapultou Herbert Kickl para um papel de maior destaque na política austríaca foi mesmo a pandemia de Covid-19, apesar de ter divulgado teorias da conspiração sobre a doença, como escreve a Reuters . E o político de extrema-direita não deixa cair o tema no esquecimento. Em vez disso, prometeu, se vencer as eleições, que “haverá uma investigação profunda a uma fase vergonhosa da política austríaca”.
Isso originou que se distinguisse dos seus principais adversários. Mais: foi isso que o permitiu chegar onde está hoje e quem sabe tornar-se o “chanceler do povo”. Segundo analisou ao Der Spiegel um dos senadores do FPÖ, Andreas Mölzer, o “facto de Kickl ser capaz de liderar o partido teve a ver com as suas aparições em manifestações contra as medidas da Covid-19″.
O bom aluno que desistiu e se revoltou na faculdade até a chegada aos holofotes
Nascido em 1968 no estado da Caríntia, no sul da Áustria, Herbert Kickl foi um excelente aluno e era relativamente popular. Nasceu numa família de classe média apolítica. Como relata o Der Spiegel, pôde escolher o que queria estudar na Universidade de Viena. Primeiro optou por jornalismo, mas abandonou o curso. Depois, estudou filosofia e ciência política, mas também não acabou.
Um dos motivos que levou o jovem de Caríntia a desistir prendeu-se com o facto de não se enquadrar na ideologia mais à esquerda da universidade que frequentava, o que contrastava com as suas ideias mais conservadoras. O fascínio pela política não morreu e acabou por se associar e depois afiliar no FPÖ. Desde 1995 que ficou conhecido por preparar os discursos de diferentes líderes do partido.
A carreira política de Herbert Kickl aconteceu praticamente nos bastidores. Mas o homem que desistiu da universidade de Viena por incompatibilidades ideológicas não se importava. “Se a política fosse um submarino, então eu preferia ficar na casa das máquinas do que na sala do capitão”, afirmou. A razão não era propriamente por modéstia ou por não querer aparecer em público. Era porque, atrás das cortinas, sentia que tinha mais poder. “Na casa das máquinas é onde está a sala de torpedos.”
Mesmo assim, durante a pandemia, decidiu assumir o papel de protagonista na política austríaca. Com uma grande vantagem por conta do seu passado nos bastidores: “É um estrategista muito focado. Como vemos todos os dias, ele está sempre ao ataque e até é agressivo”, realça Thomas Hofer à Reuters. Ainda assim, não é particularmente um político carismático — e até tem uma das taxas mais baixas de aprovação na Áustria.
O desejo do político de extrema-direita é tornar-se “chanceler do povo”.Porém, não será fácil para Herbert Kickl. O FPÖ, segundo as sondagens, está longe de uma maioria e precisará de formar uma coligação. A parceria mais natural, como aconteceu no passado, estaria no centro-direita. Contudo, o atual chanceler e líder do ÖVP, Karl Nehammer, já afastou a possibilidade de acordo com o político de 55 anos.
“É impossível fazer um governo com alguém que adora teorias da conspiração”, atirou Karl Nehammer, lembrando a divulgação dessas “teorias de conspiração” durante a pandemia de Covid-19. “É alguém que descreve a Organização Mundial de Saúde como o próximo governo mundial e o fórum económico de Davos como algo que tem como objetivo o domínio global”, atacou ainda o chanceler austríaco.
Uma aliança com FPÖ poderá ser possível, admitiu Karl Nehammer, mas com uma condição: Herbert Kickl não poderá integrar o novo governo. Caso contrário, o centro-direita vai procurar formar uma aliança com o centro-esquerda, com os Verdes ou com os liberais. Ainda assim, o homem reservado e pouco carismático não vai desistir do seu objetivo. E, se os austríacos derem a vitória pela primeira vez à extrema-direita, terá argumentos suficientes para provar aos mais moderados que merece ser o “chanceler do povo”.